quinta-feira, 23 de julho de 2015

16


Jonas não queria voltar. Não queria as lembranças, não queria a honra nem a sabedoria, não
queria mais a dor. Queria sua infância de volta, seus joelhos esfolados, queria jogar bola.
Ficava sozinho em sua residência olhando pela janela, vendo crianças brincando, cidadãos
voltando de bicicleta para casa depois de um dia rotineiro de trabalho, vidas comuns livres de
angústia, porque ele havia sido escolhido, como outros antes dele, para carregar nos ombros o
fardo de todos.
Mas não lhe cabia escolher. Voltava todos os dias ao aposento do Anexo.
O Doador foi bondoso com ele durante muitos dias depois de compartilharem a terrível
lembrança da guerra.
– Há muitas lembranças boas também – o Doador lembrou a Jonas. E era verdade. Até
então, Jonas já tinha vivenciado muitos momentos de felicidade, coisas de cuja existência
nunca soubera antes.
Assistira a uma festa de aniversário, vira uma criança em destaque sendo homenageada em
seu dia, de modo que agora compreendia a alegria de ser um indivíduo, especial, único e
orgulhoso disso. Visitara museus e contemplara pinturas repletas de todas as cores que ele
passara a reconhecer e dar nome.
Numa fascinante lembrança, montara um reluzente cavalo castanho num campo que cheirava
a capim molhado e desmontara junto a um pequeno riacho em que ele e o cavalo beberam
água, uma água fria e cristalina. Agora sabia sobre animais; e quando o cavalo acabou de
beber e empurrou de leve o ombro de Jonas com a cabeça, ele entendeu como eram os laços
que ligavam os homens aos animais.
Caminhara através de bosques e sentara-se diante de uma fogueira de acampamento à noite.
Embora, através das lembranças, tivesse aprendido sobre a dor da perda e sobre a solidão,
agora também compreendia o isolamento e seus prazeres.
– Qual é a sua lembrança favorita? – Jonas perguntou ao Doador. – Não precisa se desfazer
dela ainda – acrescentou depressa. – Basta me falar a respeito para que eu possa ter prazer em
esperá-la, já que um dia terei de recebê-la mesmo, quando seu trabalho terminar.
O Doador sorriu.
– Deite-se – disse. – Fico feliz em dá-la a você.
Jonas sentiu alegria assim que a lembrança começou. Às vezes levava um certo tempo até
ele se situar, encontrar seu lugar. Mas, naquela vez, fez parte da cena imediatamente e
percebeu a felicidade que permeava aquela lembrança.
Encontrava-se numa sala cheia de gente, bem aquecida pelo fogo que brilhava na lareira.
Por uma janela, via que era noite e nevava. Havia luzes coloridas – vermelhas, verdes e
amarelas – cintilando numa árvore que, estranhamente, estava dentro da sala. Em cima de uma
mesa, velas acesas num reluzente suporte dourado produziam uma claridade suave que
tremeluzia. Pairava um aroma de coisas cozinhando e ele escutou uma leve risada. Um
cachorro de pelo amarelo dormia no chão. Espalhados por perto havia pacotes embrulhados
em papel de cores vivas e amarrados com fitas brilhantes. Jonas viu uma criança pequena
começar a pegar os embrulhos e distribuí-los pela sala: para outras crianças, para adultos, que
obviamente eram os pais, e para um casal mais velho e sossegado, um homem e uma mulher,
sentados juntos num sofá, sorridentes.
Enquanto Jonas assistia, as pessoas começaram a desatar as fitas dos pacotes, tirar os
papéis de embrulho coloridos e abrir caixas que continham brinquedos, roupas e livros.
Ouviam-se exclamações de prazer. Eles se abraçavam uns aos outros.
A criança pequena foi sentar-se no colo da mulher idosa, que a acalentou e encostou sua
face na dela.
Jonas abriu os olhos e permaneceu deitado na cama, satisfeito, ainda se deliciando com a
calorosa e reconfortante lembrança. Estavam todas juntas lá, todas as coisas que ele aprendera
a prezar.
– O que você apreendeu? – perguntou o Doador.
– Calor humano – respondeu Jonas – e felicidade. E… deixe ver… família. Era uma
comemoração qualquer, uma festa. E mais alguma coisa… mas não sei a palavra certa para
definir o que é.
– Vai lhe ocorrer.
– Quem eram as pessoas idosas? Por que estavam lá?
Jonas ficara intrigado com a presença deles na sala. Os Idosos da comunidade nunca saíam
de seu lugar específico, a Casa dos Idosos, onde eram muito bem tratados e respeitados.
– Eram chamados de Avós.
– Avós?
– Avós. Num outro tempo significava pais dos pais.
– Muito tempo atrás? E atrás do atrás, e atrás desse atrás? – Jonas pôs-se a rir. – Então quer
dizer que poderia haver pais dos pais dos pais dos pais?
O Doador também riu.
– Isso mesmo. Mais ou menos como olhar a si mesmo olhando-se num espelho, olhando para
si, olhando-se num espelho.
Jonas franziu a testa.
– Sendo assim, meus pais deviam ter pais! Nunca pensei nisso antes. Quem são os pais dos
meus pais? Onde estão eles?
– Você pode ir procurar na Seção dos Registros Abertos. Encontraria os nomes deles. Mas
pense bem, filho. Se você requerer filhos, quem serão os pais dos pais deles? Quem serão os
avós deles?
– Minha mãe e meu pai, é claro.
– E onde estarão eles?
Jonas refletiu.
– Ah – disse ele lentamente. – Quando eu terminar meu treinamento e me tornar um adulto
formado, vou ganhar minha própria residência. E quando chegar a vez de Lily, alguns anos
mais tarde, ela também vai ter sua residência e talvez um cônjuge, e filhos, se os requerer, e aí
a Mãe e o Pai…
– Pois é.
– Enquanto estiverem trabalhando e contribuindo para a comunidade, irão morar com os
outros Adultos Sem Filhos. Daí em diante não farão mais parte da minha vida. E, depois disso,
quando chegar a hora, irão para a Casa dos Idosos – prosseguiu Jonas, pensando em voz alta.
– E serão bem tratados, respeitados, e quando forem dispensados haverá uma celebração.
– À qual você não estará presente – assinalou o Doador.
– Não, claro que não, porque nem vou saber a respeito. Na ocasião, já vou estar ocupado
com minha própria vida. E Lily também. Portanto, nossos filhos, se os tivermos, também não
vão saber quem eram os pais dos pais deles. E funciona muito bem desse jeito, não é? Do jeito
de nossa comunidade? – perguntou Jonas. – A questão é que eu não imaginava que pudesse
haver uma outra maneira até receber aquela lembrança.
– É, funciona – concordou o Doador.
Jonas hesitou.
– É certo que, no entanto, gostei muito da lembrança. Dá para entender por que é a sua
favorita. Não consegui encontrar uma palavra para definir a sensação predominante de tudo, o
sentimento tão forte que havia no ambiente.
– Amor – disse o Doador.
Jonas repetiu:
– Amor – a palavra e o conceito eram novos para ele.
Ambos ficaram em silêncio por um minuto. Então Jonas falou:
– Doador?
– Sim?
– Eu me sinto muito bobo dizendo isso. Muito, muito bobo mesmo.
– Não ligue para isso. Nada é bobo aqui. Confie nas lembranças e no que elas fazem você
sentir.
– Bem – começou Jonas, baixando os olhos –, sei que o senhor não tem mais a lembrança
porque a passou para mim, portanto é capaz de não compreender…
– Vou compreender, sim. Tenho uma vaga recordação dela; e ainda me restam muitas outras
lembranças de famílias, de festas e de felicidade. De amor.
Num impulso, Jonas expressou abruptamente o que estava sentindo.
– O que eu pensei foi… bem, claro que sei que não era a forma mais prática de viver, com
os Idosos lá, todos juntos no mesmo lugar, onde pode ser que não fossem tão bem cuidados
como são hoje em dia, e que temos um jeito mais organizado de fazer as coisas. Mas, de
qualquer maneira, o que eu pensei, quer dizer, o que senti, na verdade, foi que de certo modo
aquilo era bom. E que eu gostaria que pudéssemos ser daquele jeito e que o senhor fosse meu
avô. A família da lembrança parecia um pouco mais… – e ele gaguejou, incapaz de encontrar
a palavra desejada.
– Um pouco mais completa – sugeriu o Doador.
Jonas fez que sim.
– Gostei do sentimento do amor – confessou. Em seguida, olhou rapidamente para o altofalante
na parede, nervoso, certificando-se de que ninguém estaria escutando. – Gostaria que
ainda tivéssemos isso – murmurou. – Ah, é claro – acrescentou depressa –, concordo que não
funcionaria muito bem. E que é muito melhor estarmos organizados do modo como estamos
agora. Deu para notar que aquele modo de viver era perigoso.
– O que quer dizer com isso?
Jonas hesitou. Não tinha realmente muita certeza do que quisera dizer. Pressentia que havia
um risco qualquer envolvido, embora não soubesse bem qual.
– Bem – disse afinal, tentando encontrar uma explicação –, eles tinham fogo dentro daquela
sala. Havia fogo aceso na lareira. E velas em cima da mesa. Entendo muito bem por que essas
coisas foram banidas. Mas, ainda assim – completou ele, falando devagar, quase para si
mesmo –, gostei muito da claridade que produziam. E do calor.

                                                                               ...
– Pai? Mãe? – Jonas perguntou, relutante, depois da refeição da noite. – Queria fazer uma
pergunta a vocês.
– O que é, Jonas? – perguntou seu pai.
Jonas se forçou a pronunciar as palavras, embora sentisse que enrubescia de
constrangimento. Ensaiara a frase em sua cabeça durante todo o percurso de volta do Anexo.
– Vocês me amam?
Seguiu-se um silêncio embaraçoso por um momento. Então o Pai deu uma risadinha.
– Jonas, logo você! Precisão de linguagem, por favor!
– Como assim? – perguntou Jonas. Risadas não eram absolutamente o que havia esperado.
– Seu pai está querendo dizer que você se expressou de forma muito generalizada, com uma
palavra tão sem sentido que já se tornou quase obsoleta – explicou-lhe sua mãe em tom
cuidadoso.
Jonas os fitou. Sem sentido? Ele nunca havia vivenciado nada mais significativo e tão cheio
de sentido do que aquela lembrança.
– E é claro que nossa comunidade não pode funcionar direito se as pessoas não usarem uma
linguagem precisa. Você poderia perguntar: “Vocês gostam de mim?” A resposta é “Sim” –
disse sua mãe.
– Ou, então – sugeriu o seu pai –, “Vocês se orgulham dos meus talentos?”. E a resposta é,
com toda a convicção, “Sim”.
– Compreende por que é inconveniente usar uma palavra como “amor”? – perguntou a Mãe.
Jonas balançou a cabeça.
– Sim, obrigado, compreendo – respondeu lentamente.
Foi sua primeira mentira para os pais.
                                                                            ...
– Gabriel? – cochichou Jonas naquela noite para a criança-nova.
O berço estava mais uma vez no seu quarto. Depois de Gabriel dormir ali profundamente
por quatro noites seguidas, os pais de Jonas declararam que a experiência havia sido um
sucesso e que Jonas era um herói. A criança crescia rapidamente, ria e engatinhava pelo
quarto, tentando ficar de pé. Poderia ser promovida no Centro de Criação, afirmou o Pai todo
contente, agora que dormia a noite toda; poderia ser oficialmente nomeada e entregue à sua
família em dezembro, dali a dois meses.
Quando foi levada para lá, porém, voltou a ficar acordada à noite e a chorar.
Por isso foi devolvida ao quarto de Jonas. Dariam um pouco mais de tempo, decidiram. Já
que Gabe parecia gostar do seu quarto, dormiria lá à noite por mais uns dias, até o hábito do
sono ininterrupto se formar por completo. Os Criadores estavam muito otimistas com relação
ao futuro de Gabriel.
O cochicho de Jonas ficou sem resposta. Gabriel dormia profundamente.
– As coisas podiam mudar, Gabe – Jonas continuou a falar. – Podiam ser diferentes. Não sei
como, mas deve haver um jeito qualquer para fazê-las ficar diferentes. Poderia haver cores. E
avós – acrescentou, fitando o teto de seu dormitório através da penumbra. – E todo mundo
teria as lembranças. Você sabe das lembranças – murmurou, virando-se para o berço.
A respiração de Gabriel soava regular e profunda. Jonas gostava de tê-lo ali, apesar de se
sentir culpado por causa do segredo. Toda noite dava lembranças a Gabriel: lembranças de
passeios de barco e piqueniques ao sol; de chuva caindo suave nas vidraças; de dançar
descalço na grama úmida.
– Gabe?
A criança-nova se mexeu ligeiramente. Jonas olhou na direção dela.
– Poderia haver amor – sussurrou Jonas.
                                                                             ...
Na manhã seguinte, pela primeira vez, Jonas não tomou sua pílula. Algo em seu íntimo, algo
que crescera dentro dele através das lembranças, disse-lhe para jogá-la fora.
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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