– Você quer dizer na minha própria ou na dispensa de modo geral?
– As duas, acho. Peço des… Bem, eu deveria ter sido mais preciso. Mas não sei exatamente
o que quero dizer.
– Sente-se. Não precisa ficar deitado enquanto conversamos.
Jonas, que já havia se estendido na cama quando a pergunta lhe veio à cabeça, voltou a
sentar-se.
– De fato, penso nisso de vez em quando – disse o Doador. – Penso na minha própria
dispensa quando estou sofrendo muita dor. Gostaria de requerê-la às vezes. Mas estou
impedido de fazê-lo antes que o novo Recebedor esteja treinado.
– Eu – disse Jonas com uma voz desanimada. Ele não via com bons olhos o fim do
treinamento, quando se tornaria o novo Recebedor. Percebia claramente que, apesar da honra,
teria uma vida terrivelmente difícil e solitária.
– Também não posso requerer dispensa – observou Jonas. – Consta da minha lista de regras.
O Doador deu uma risada amarga.
– Sei disso. Insistiram em incluir essa regra depois do fracasso de 10 anos atrás.
Jonas àquela altura já escutara inúmeras referências ao fracasso do Recebedor anterior, mas
ainda não sabia o que acontecera de fato na ocasião.
– Doador – pediu –, conte o que houve. Por favor.
O Doador deu de ombros.
– À primeira vista foi bastante simples. Um futuro Recebedor foi selecionado, como você
foi. O processo de seleção transcorreu sem problemas. Realizou-se a Cerimônia, a escolha foi
feita. A multidão aplaudiu, como fizeram com você. O novo Recebedor ficou perplexo e um
pouco assustado, como você também ficou.
– Meus pais me disseram que era uma menina.
O Doador confirmou.
Jonas pensou em sua menina favorita, Fiona, e sentiu um arrepio. Não gostaria que sua doce
amiga sofresse como ele havia sofrido, recebendo as lembranças.
– Como era ela? – perguntou.
O Doador pareceu entristecer-se pensando a respeito.
– Era uma mocinha extraordinária. Muito segura e serena. Inteligente, ávida por aprender. –
Ele sacudiu a cabeça e deu um suspiro fundo. – Sabe, Jonas, quando ela veio ao meu encontro
neste aposento, quando se apresentou para iniciar seu treinamento…
Jonas o interrompeu com uma pergunta:
– Não pode me dizer o nome dela? Meus pais disseram que não deveria mais ser
pronunciado na comunidade. Mas o senhor não poderia contar só para mim?
O Doador hesitou penosamente, como se pronunciar o nome em voz alta lhe causasse um
sofrimento excruciante.
– Ela se chamava Rosemary – disse, por fim.
– Rosemary. Gosto desse nome.
O Doador continuou:
– Quando ela veio aqui pela primeira vez, sentou-se ali, naquela cadeira onde você também
se sentou no primeiro dia. Estava ansiosa, agitada e um pouco amedrontada. Nós
conversamos. Tentei explicar-lhe as coisas da melhor maneira que pude.
– Como fez comigo.
O Doador esboçou um riso melancólico.
– As explicações são difíceis. A coisa toda está tão além da experiência de qualquer um…
mas eu tentei. E ela escutou com toda a atenção. Seus olhos eram muito luminosos, eu lembro.
– Levantou a cabeça de repente. – Jonas, dei a você uma lembrança que disse ser a minha
favorita. Ainda me resta um fragmento dela. A sala com a família e os avós, sabe?
Jonas fez que sim. É claro que se lembrava.
– Sei. – disse – Na qual se distinguia aquele sentimento maravilhoso. O senhor me disse que
era amor.
– Vai poder entender então. Era o que eu sentia por Rosemary – explicou o Doador. – Eu a
amava. – E acrescentou. – Também sinto isso por você.
– O que aconteceu com ela? – perguntou Jonas.
– O treinamento dela começou. Ela recebia bem as lembranças, como você. Era tão
entusiasmada! Ficava encantada com as novas experiências. Lembro-me da sua risada…
A voz dele falhou e se extinguiu.
– O que houve? – Jonas indagou novamente depois de um instante. – Por favor, conte.
O Doador fechou os olhos.
– Partiu meu coração, Jonas, ter de transferir sofrimento para ela. Mas era minha função.
Era o que eu tinha de fazer, da maneira como tive de fazer com você.
O quarto ficou mergulhado em silêncio. Enfim, o Doador continuou com seu relato.
– Cinco semanas. Foi só. Dei a ela lembranças felizes: um passeio de carrossel; um gatinho
para brincar; um piquenique. Às vezes escolhia alguma só porque sabia que a faria rir, e eu
adorava o som daquela risada neste quarto que sempre foi tão silencioso. Mas ela era como
você, Jonas. Queria experimentar tudo. Sabia que era sua responsabilidade. E por isso pediu
que lhe transmistisse lembranças mais difíceis.
Jonas prendeu a respiração um momento.
– O senhor não deu a guerra a ela, não é? Depois de somente cinco semanas de
treinamento?
O Doador sacudiu a cabeça e suspirou.
– Não. Muito menos dor física. Mas dei-lhe solidão. E perda também. Transferi para ela a
lembrança de uma criança tirada de seus pais. Essa foi a primeira. Ela parecia aturdida
quando terminou.
Jonas engoliu em seco. Rosemary e seu riso começavam a parecer reais e ele a imaginava
na cama de lembranças olhando para o alto, abismada.
O Doador continuou seu relato.
– Eu voltei atrás, proporcionei-lhe outros pequenos prazeres. Mas tudo mudou a partir do
momento em que ela conheceu a dor. Dava para ver em seus olhos.
– Ela não era corajosa o suficiente? – sugeriu Jonas.
O Doador não respondeu à pergunta.
– Ela insistiu para que eu continuasse, que não a poupasse. Dizia que era seu dever. E eu
sabia, evidentemente, que Rosemary tinha razão. Não consegui me obrigar a infligir-lhe dor
física. Mas dei-lhe angústia de muitos tipos. Pobreza, fome, terror. Tinha de fazer isso, Jonas,
era meu trabalho. E ela fora escolhida para isso. – O Doador olhou para ele suplicante. Jonas
acariciou-lhe as mãos.
– Por fim, numa tarde, terminamos uma sessão que havia sido muito pesada. Procurei
encerrar, como faço com você, transferindo-lhe alguma coisa feliz e alegre. Mas, àquela
altura, o tempo das risadas se acabara. Ela se levantou, muito calada, a testa franzida, como se
estivesse tomando uma decisão. Então aproximou-se de mim e abraçou-me. Beijou meu rosto.
Jonas viu o Doador afagar a própria face, rememorando o toque dos lábios de Rosemary ali,
10 anos antes.
– Ela saiu daqui naquele dia, saiu daqui deste quarto e não voltou para sua residência. Fui
notificado pelo Locutor, através do alto-falante, que ela fora diretamente à Anciã-Chefe e
pedira para ser dispensada.
– Mas é contra as regras! O Recebedor-em-treinamento não pode requerer dispen…
– Isso está escrito nas suas regras, Jonas. Não estava nas dela. Ela requereu dispensa e eles
tiveram de dar. Nunca mais a vi.
Então o fracasso fora esse, pensou Jonas. Obviamente, era algo que entristecia
profundamente o Doador. Mas não parecia uma coisa tão terrível assim, afinal de contas. E
ele, Jonas, nunca teria feito o mesmo – nunca teria requerido dispensa, por mais difícil que seu
treinamento se tornasse. O Doador necessitava de um sucessor e ele fora escolhido.
Ocorreu-lhe um pensamento. Rosemary fora dispensada logo no início de seu treinamento. E
se algo acontecesse com ele – Jonas –, que já possuía um ano inteiro de lembranças?
– Doador, não posso requerer dispensa, sei disso. Mas, e se alguma coisa acontecesse
comigo, um acidente, por exemplo? E se eu caísse no rio como o pequeno Quatro, o Caleb?
Bem, isso não faz muito sentido porque sei nadar bem. Mas, e se eu não soubesse nadar,
caísse no rio e sumisse? Então não haveria um novo Recebedor, mas o senhor já teria passado
adiante uma porção de lembranças importantes e, portanto, mesmo depois que eles
escolhessem um Recebedor novo, as lembranças teriam se perdido, com exceção dos
fragmentos delas que o senhor ainda conserva. E aí, se… – Jonas caiu na risada de repente. –
Estou parecendo a minha irmã Lily quando começa a falar – explicou, achando graça de si
mesmo.
O Doador olhou para ele com ar sério.
– Mantenha-se longe do rio, meu caro – disse. – A comunidade perdeu Rosemary depois de
apenas cinco semanas e foi um desastre para todos. Não sei o que a comunidade faria se
perdesse você.
– E se acontecesse uma desgraça, um acidente?
– Acho que já contei a você uma vez – lembrou o Doador – que, quando ela se foi, as
lembranças voltaram para as pessoas. Se você se perdesse no rio, Jonas, suas lembranças não
se perderiam com você. As lembranças existem para sempre. Rosemary teve apenas as que
recebeu naquelas cinco semanas, e a maioria delas era boa. Mas havia aquelas poucas
terríveis, as que a mortificaram. E, durante um certo tempo, essas lembranças mortificaram a
comunidade. Todos aqueles sentimentos! Eles nunca tinham vivenciado nada igual antes.
Fiquei tão abatido pela minha própria tristeza com a perda de Rosemary e a sensação de
fracasso que nem sequer tentei ajudá-los a superar essa fase. Além disso, eu estava com muita
raiva.
O Doador se calou um instante, obviamente envolvido em seus pensamentos.
– Sabe – disse, afinal –, se perdessem você, depois de todo esse treinamento que recebeu
até agora, eles teriam todas essas lembranças outra vez.
Jonas fez uma careta.
– Eles iriam detestar.
– Com certeza. Não saberiam como lidar com elas, não conseguiriam aguentar.
– Eu só consigo aguentar porque o senhor está aqui para me ajudar – observou Jonas com
um suspiro.
O Doador concordou, balançando a cabeça.
– Acho que eu poderia… – disse ele vagarosamente.
– Poderia o quê?
O Doador continuou imerso em pensamentos. Até que disse:
– Se você fosse levado pelo rio, imagino que eu pudesse ajudar a comunidade toda da
maneira como ajudei você. É um conceito interessante. Preciso refletir sobre isso mais um
pouco. Talvez conversemos a respeito outra vez um dia desses. Mas não agora. Ainda bem
que você é bom nadador, Jonas. Mas fique longe do rio.
Riu um pouco, mas o riso não soou despreocupado. Seus pensamentos pareciam estar
distantes e seu olhar, muito inquieto.
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