terça-feira, 11 de agosto de 2015

CAPÍTULO XIII


Os fugitivos permaneceram dois meses ausentes; nesses dois meses, a
Sra. Linton atravessou e venceu a pior crise do que se chamava uma febre
cerebral. Nenhuma mãe teria cuidado mais devotadamente de uma filha única
do que Edgar cuidou dela. Dia e noite, ele não saía do seu lado, suportando
pacientemente todos os caprichos e os aborrecimentos que os seus nervos
irritadiços e a sua razão abalada lhe ditavam; e, embora o Dr. Kenneth
observasse que o que ele estava salvando lhe iria pagar os cuidados
constituindo-se numa fonte de futura e constante preocupação — realmente,
a sua saúde e a sua força estavam, sendo sacrificadas para preservar uma
simples ruína humana —, ele ficou quase louco de alegria e felicidade quando
Catherine foi declarada fora de perigo; hora após hora, ele ficava sentado ao
lado dela, vendo o seu corpo voltar ao que era e entretendo a ilusão de que a
sua mente acabaria também por recuperar o equilíbrio e de que ela voltaria a ser o que era antes.
A primeira vez em que a Sra. Linton saiu do quarto foi no mês de
março seguinte. O Sr. Linton depusera-lhe no travesseiro, logo de manhã, um
ramo de flores de açafrão; e os seus olhos, de havia muito alheios a qualquer
brilho de prazer, deram com o ramo, ao despertar, e reluziram de satisfação.
— São as primeiras flores da primavera, no Morro — exclamou. —
Recordam-me brisas suaves, o sol quente e a neve quase derretida. Edgar, o
vento não está soprando do sul e a neve não está quase desaparecendo?
— A neve já desapareceu aqui, querida — respondeu-lhe o marido. —
Só vejo duas manchas brancas em toda a extensão da charneca; o céu está azul, as cotovias cantam e os córregos e os riachos estão transbordando.
Catherine, na primavera passada, por esta altura, eu estava ansioso por tê-la
aqui, debaixo deste teto, mas agora desejaria que você estivesse lá em cima,
naqueles morros: o ar sopra tão suavemente ali que tenho a certeza de que
você se curaria.
— Nunca mais hei de voltar lá, a não ser para sempre — retrucou a
enferma —, e então você me deixará lá até a eternidade. Na próxima
primavera você desejará novamente ter-me aqui, debaixo deste teto.
Recordará este dia e achará que era feliz.
Linton prodigalizou-lhe os maiores carinhos e tentou animá-la de todas
as maneiras; mas, olhando vagamente para as flores, ela deixou que as
lágrimas se juntassem em seus cílios e lhe deslizassem livremente pelas faces.
Sabíamos que ela estava realmente melhor e, conseqüentemente, decidimos
que um longo confinamento naquele quarto devia ser responsável por grande
parte do seu pessimismo e que talvez melhorasse com uma mudança de
ambiente. O Sr. Linton mandou-me acender a lareira na sala há tanto deserta
e colocar uma poltrona ao sol, junto à janela; depois levou-a para baixo, e ela
ficou um bom tempo gozando aquele suave calor, reanimada, conforme
esperávamos, pelos objetos que a cercavam, os quais, embora familiares, não
lhe traziam as mesmas tristes recordações do seu detestado quarto de
enferma. Ao cair da noite parecia exausta; mas não houve argumentos que a
persuadissem a voltar para o quarto e tive de fazer-lhe a cama no sofá da sala,
até que se pudesse preparar outro quarto para ela. A fim de poupar-lhe o
cansaço de subir e descer a escada, escolhemos este, em que o senhor agora
está: no mesmo andar da sala; e não tardou que ela estivesse suficientemente forte para andar de um aposento para outro, apoiada ao braço de Edgar.
"Ah", pensei, "é bem possível que fique boa, tão bem cuidada está." E havia
uma dupla razão para desejar isso, pois da vida dela dependia outra vida:
todos nós acalentávamos a esperança de que, não demoraria muito, o coração
do Sr. Linton teria a grande alegria de constatar que as suas terras não
passariam para um estranho, mas continuariam na família, pelo nascimento de um filho.
Devo mencionar que, umas seis semanas após a sua fuga, Isabella
enviou ao irmão uma pequena nota, anunciando o seu casamento com
Heathcliff. A nota parecia seca e fria; mas havia no final, a lápis, um obscuro
pedido de desculpa e de reconciliação, caso o seu procedimento o tivesse
ofendido, afirmando que na ocasião não o pudera evitar e que, uma vez o fato
consumado, não tinha agora poder para voltar atrás. Linton, segundo creio,
não respondeu; e, uma quinzena depois, recebi uma longa carta, que me
pareceu bem estranha para ser de uma noiva recém-saída da lua-de-mel. Vou
lê-la, pois ainda a tenho. Todas as relíquias dos mortos são preciosas, quando
em vida eles foram estimados.

Querida Ellen,
Cheguei ontem à noite ao Morro dos Ventos Uivantes e fiquei sabendo que
Catherine esteve, e ainda está, muito doente. Não devo escrever-lhe, creio, e meu irmão está
demasiado zangado ou demasiado preocupado para responder ao que lhe mandei. Tenho,
porém, de escrever a alguém, e a única pessoa a quem posso fazê-lo é você. 

Diga a Edgar que eu daria a vida para voltar a ver o seu rosto — que o meu
coração voltou à Granja Thrushcross vinte e quatro horas depois que a deixei e agora
mesmo está aí, cheio de amor por ele e por Catherine! Não posso, porém, seguir o
meu coração — estas palavras estão sublinhadas; — não precisam esperar-me e
podem tirar as conclusões que quiserem, desde que não ponham as culpas na minha falta de
força de vontade ou no meu pouco afeto.
O resto da carta é só para você. Quero lhe fazer duas perguntas. A primeira é: como
foi que você conseguiu preservar os seus sentimentos humanos quando vivia aqui? Não vejo
nenhum sentimento naqueles que me rodeiam.
A segunda pergunta interessa-me profundamente; ê a seguinte: o Sr. Heathcliff é um
homem? Se é, estará louco? Se não, será um demônio? Não lhe direi as minhas razões para
lhe fazer essas perguntas, mas peço-lhe que me explique, se puder, com quem me casei: isto
é, quando você vier visitar-me, o que tem de ser breve, Ellen, muito breve. Não escreva,
venha e traga-me algo de Edgar.
Agora, vou lhe contar como fui recebida no meu novo lar, o que penso que o Morro
dos Ventos Uivantes será. Ê só para me distrair que menciono assuntos tais como a falta
de conforto material: nunca penso nisso, exceto quando sinto falta dele. Mas cantaria e
dançaria de alegria se descobrisse que a sua ausência era a única coisa que me apoquentava
e o resto apenas um pesadelo!
O sol se punha por trás da granja, quando partimos em direção à charneca; a julgar
por isso, creio que eram seis horas. Meu companheiro demorou-se bem uma meia hora a
inspecionar o parque, os jardins e, provavelmente, a própria casa, o melhor possível, por isso
já estava escuro quando desmontamos no pátio da casa do Morro e o seu velho colega,
Joseph, saiu para nos receber, à luz de uma candeia. Fê-lo com uma cortesia que honrou a
sua reputação. Seu primeiro ato foi levantar a candeia até o meu rosto, semicerrar os olhos 

malevolamente, espichar o lábio inferior e dar meia-volta. Depois pegou nos dois cavalos e
levou-os para a cavalariça, voltando para trancar o portão, como se vivêssemos num castelo antigo.
Heathcliff deteve-se a falar com ele e eu entrei na cozinha, um buraco sujo e
desarrumado, a tal ponto que aposto que você não a reconheceria, tão mudada está desde
quando estava a seu cargo. Ao lado do fogão estava uma criança de má catadura, forte e
suja, com algo de Catherine nos olhos e na boca.
"Este é o sobrinho de Edgar", pensei. "Meu sobrinho, até certo ponto. Tenho de lhe
dar a mão e, sim, tenho de beijá-lo. Ê bom estabelecer uma boa amizade desde o início."
Aproximei-me e, tentando tomar-lhe a mão gorducha, perguntei:
— Como vai você, querido?
Ele respondeu num linguajar que não compreendi.
— Vamos ser amigos, Hareton? — tentei de novo. Uma praga e uma ameaça de
atiçar Throttler contra mim, se eu não "caísse fora", recompensaram a minha perseverança.
— Aí, Throttier, pega! — falou a pestezinha, despertando um buldogue arraçado
que dormia a um canto. — Então, você cai fora ou não cai? — perguntou-me ele,
triunfante.
O instinto de conservação obrigou-me a obedecer. Recuei até a porta, esperando que
os outros entrassem. O Sr. Heathcliff não aparecia; e Joseph, a quem segui até a cavalariça
e pedi que me acompanhasse, após olhar fixo para mim e murmurar não sei o quê para si
mesmo, torceu o nariz e retrucou:
— Ora, ora, ora! Onde já se ouviu uma coisa dessas? Como é que eu posso entender
o que você diz?
— Estou lhe dizendo que me acompanhe até a casa! — gritei, julgando-o surdo,
embora chocada com a sua rudeza. 

— Eu não! Tenho mais o que fazer — respondeu ele, continuando no seu trabalho,
enquanto me examinava o traje e o rosto (o primeiro, demasiado fino, mas, quanto ao
último, tenho a certeza de que tão triste quanto ele poderia desejar) com soberano desprezo.
Dei volta ao pátio e cheguei, através de uma cancela, a uma outra porta, à qual
tomei a liberdade de bater, na esperança de que alguém mais educado aparecesse. Após uma
curta demora a porta foi aberta por um homem alto e muito magro, sem lenço ao pescoço e
extremamente desmazelado; suas feições perdiam-se sob quantidades de cabelo maltratado,
que lhe chegava até os ombros; e os olhos dele eram também como os de uma
fantasmagórica Catherine, cuja beleza tivesse sido inteiramente aniquilada.
— Que está fazendo aqui? — perguntou, asperamente. — Quem é você?
— Meu nome era Isabella Linton — respondi. — O senhor me conhece. Acabei
de casar com o Sr. Heathcliff e ele me trouxe para cá, suponho que com sua permissão.
— Quer dizer que ele voltou, então? — perguntou o eremita, os olhos brilhantes
como os de um lobo faminto.
— Sim. Acabamos de chegar — repliquei. — Mas ele me deixou junto à porta da
cozinha e, quando quis entrar, o seu filho obrigou-me a recuar, com a ajuda de um
buldogue.
— Ainda bem que esse demônio cumpriu a palavra! — rosnou o meu futuro
anfitrião, procurando, na escuridão atrás de mim, ver se descobria Heathcliff. Quando viu
que não, lançou-se num solilóquio de execrações e ameaças do que teria feito, caso o "diabo"
o tivesse enganado.
Arrependi-me de ter tentado aquela segunda porta e estava quase inclinada a ir
embora antes que ele acabasse de praguejar, mas, como se percebesse a minha intenção,
ordenou que eu entrasse, fechando e trancando a porta. O fogo crepitava, alto, mas essa era
toda a luz que havia no aposento, cujo chão estava agora de um cinza uniforme. Os outrora 

brilhantes pratos de estanho, que me atraíam o olhar quando eu era criança, eram agora
igualmente cinzentos, de azinhavre e de poeira. Perguntei se poderia chamar a criada e
pedir-lhe que me levasse a um quarto, mas o Sr. Earnshaw não deu resposta. Andava de
um lado para outro, as mãos nos bolsos, aparentemente esquecido da minha presença; a sua
abstração era tão profunda e todo o seu aspecto tão misantrópico, que não mais procurei
incomodá-lo.
Acho que você não se surpreenderá, Ellen, de que eu tenha me sentido tão
desanimada, ali sentada, pior do que se estivesse só, naquela casa hostil e, ainda por cima,
lembrando-me de que, a quatro milhas de distância, estava o meu querido lar, com as
únicas pessoas a quem amava no mundo, mas que era como se o oceano nos separasse, em
vez de apenas quatro milhas, já que não podia vencê-las! Perguntei a mim mesma onde
poderia procurar um pouco de conforto. E (repare bem, não o diga a Edgar ou a
Catherine), acima de tudo, sentia-me desesperada por não ter ninguém que pudesse ou
quisesse aliar-se a mim contra Heathcliff! Aceitara, quase de bom grado, viver no Morro
dos Ventos Uivantes, porque lá, pelo menos, eu não teria de viver a sós com ele; mas ele
conhecia bem as pessoas com quem viveríamos e não temia que se intrometessem.
Fiquei ali sentada, pensando, um tempo enorme: o relógio deu oito horas, depois
nove, e o meu anfitrião continuava a caminhar de um lado para outro, a cabeça inclinada
sobre o peito e em perfeito silêncio, quebrado apenas por uma imprecação ou um rosnar.
Procurei distinguir uma voz de mulher na casa e, finalmente, vencida pelo arrependimento,
pela saudade e pelas sombrias perspectivas, comecei a suspirar e a chorar. Não me tinha
dado conta de que chorava, até que Earnshaw parou, de repente, e me lançou um olhar de
surpresa. Tirando partido da sua atenção, exclamei:
— Estou cansada da viagem e quero me deitar! Onde está a criada? Diga-me onde
a posso encontrar, já que ela não vem ter comigo! 

— Não temos nenhuma criada — respondeu ele. — Você tem de se valer sozinha!
— Onde vou dormir, então? — solucei. Já não me importava manter a dignidade,
arrasada como estava pela fadiga e pela desilusão.
— Joseph lhe indicará o quarto de Heathcliff — respondeu ele. — Abra essa
porta. Ele está aí dentro.
Ia obedecer, quando subitamente ele me deteve, acrescentando, num tom muito
estranho:
— Faça o favor de trancar a porta e fechar o ferrolho. Não se esqueça!
— Está bem — respondi. — Mas por quê, Sr. Earnshaw? — Não me agradava
a idéia de me trancar no quarto com Heathcliff.
— Olhe aqui! — replicou ele, puxando do colete uma pistola curiosamente
construída, com uma faca de dois gumes presa ao cano. — Isto é uma grande tentação para
um homem desesperado, não acha? Não posso resistir a subir a escada, esta mesma noite, e
tentar abrir a porta dele. Se alguma noite a encontrar aberta, era uma vez aquele demônio!
Tento sempre, mesmo que um minuto antes eu tenha me lembrado de uma centena de razões
para não o jazer: parece que há um diabo que me impele a frustrar os meus próprios planos
para matá-lo. Você pode lutar, por amor, com esse diabo o tempo que quiser; quando a
hora chegar, nem todos os santos do céu terão poder para salvá-lo!
Olhei, curiosa, para a arma e uma horrível idéia me passou pela cabeça: que poder
eu teria se possuísse um tal instrumento! Tirei-a da sua mão e toquei na lâmina. Ele
pareceu atônito, diante da expressão que o meu rosto tomou, durante um breve segundo: não
de horror, e sim de cobiça. Arrancou-me a pistola, desconfiado; e fechou a mola da faca e
ocultou-a. 

— Não me importo com o que você lhe disser — falou. — Ponha-o em guarda e
guarde-o. Você sabe em que termos estamos, pelo que vejo: o perigo que ele corre não a
espanta.
— Que foi que Heathcliff lhe fez? — perguntei. — Em que é que ele o prejudicou,
para que o senhor o odeie tanto? Não seria melhor ordenar-lhe que saísse de casa?
— Não! — trovejou Earnshaw. — Se ele tiver a idéia de me deixar pode
considerar-se morto: convença-o a fazer isso e você será uma assassina! Iria eu perder tudo,
sem ter uma oportunidade de reaver o que perdi? Hareton ficaria transformado num mendigo!
Com mil diabos, hei de reaver tudo! E hei de ter também o dinheiro dele; e depois o
seu sangue; e o inferno terá a sua alma danada! Ficará dez vezes mais infernal, com ele, do
que era antes!
Você me tinha falado, Ellen, dos estranhos hábitos do seu antigo amo. Ele está,
claramente, à beira da loucura — pelo menos estava, ontem à noite. Tremia de estar perto
dele e até a insolência do criado me pareceu comparativamente agradável. Assim que ele
recomeçou d caminhar de um lado para outro, levantei a tranca e fugi para a cozinha.
Joseph estava curvado sobre o fogo, olhando para dentro de uma grande caçarola que
balançava por cima do lume; um recipiente de madeira, cheio de aveia, estava pousado no
banco, junto ao fogão. O conteúdo da caçarola começou a ferver e ele se virou, para
mergulhar a mão no recipiente. Imaginei que aqueles preparativos deviam ser para a ceia e,
cheia de fome, resolvi que seria algo comestível; assim, gritando "eu faço o mingau!", removi
o recipiente de perto dele e pus-me a tirar o chapéu e o capote de viagem. — O Sr.
Earnshaw — expliquei — diz que eu tenho de me valer a mim mesma: é o que farei. Não
vou fazer papel de senhora junto de vocês, ou acabarei morrendo de fome.
— Meus Deus! — murmurou ele, sentando-se e alisando as meias do joelho para
baixo. — Se vai ter mais gente mandando. . . Logo agora, que eu estava me acostumando 

com dois patrões, vou ter uma patroa para me confundir as idéias! Acho que está na hora
de ir embora. Nunca pensei que ia chegar o dia de ter que ir embora, mas acho que agora
está chegando!
Fingi não ouvir essas lamentações e meti mãos à obra, suspirando ao me lembrar de
que outrora tudo aquilo teria sido divertido, mas tratando de afastar essas lembranças. Não
queria recordar a passada felicidade e, quanto maior o perigo de conjurar essas recordações,
tanto mais depressa a colher de pau remexia na caçarola e os punhados de aveia caíam dentro
dela. Joseph contemplava a minha maneira de cozinhar com crescente indignação.
— Pronto! — exclamou. — Hareton, você não vai comer o seu mingau esta noite;
não vai ter senão aveia encaroçada. Se eu fosse você jogava logo a panela no fogo! Com tanto
mexer, não sei como é que o fundo não se soltou!
Realmente, confesso que o mingau tinha um aspecto horrível quando o servi nas
tigelas; dava para quatro, e um jarro cheio de leite acabado de tirar foi trazido da leiteria
para Hareton, que o agarrou sem mais demora e começou a beber, derramando leite pelo
bico. Protestei e disse-lhe que bebesse o leite na caneca, pois não poderia prová-lo se ele
continuasse a beber pelo jarro. Ao ouvir isso, o velho cínico mostrou-se muito ofendido ante
tais escrúpulos, garantindo-me, repetidamente, que "o garoto era tão bom" quanto eu "e até
mais saudável", dizendo que não podia com gente tão prosa. Enquanto isso, o moleque
continuava a beber do jarro e a encarar-me desafiadoramente.
— Vou cear em outro lugar — declarei. — Onde é a sala?
— A sala! — repetiu, desdenhosamente, o velho.
— A sala! Não, a gente não tem sala. Se a senhora não gosta da nossa companhia,
tem a do patrão; e se não gosta do patrão, tem nós aqui.
— Então vou comer no quarto! — respondi. — Mostre-me um quarto. 

Coloquei a minha tigela numa bandeja e fui eu mesma buscar um pouco mais de
leite. Com grandes resmungos, o sujeito levantou-se e precedeu-me escada acima. Subimos até
as águas-furtadas; de vez em quando ele abria uma porta, olhando para dentro dos
aposentos pelos quais passávamos.
— Aqui tem um quarto — disse ele, por fim, escancarando uma porta empenada e
rangente. — Está muito bom para se comer mingau. No canto tem um saco de milho, bom
para sentar; se está com medo de sujar o seu belo vestido de seda estenda o lenço por cima do
saco.
O "quarto" era uma espécie de despensa, cheirando a malte e a cereais; à sua volta
estavam empilhados sacos, deixando no meio um espaço vazio.
— Homem! — exclamei, furiosa. — Isto não é lugar para se dormir. Quero que
você me mostre o meu quarto.
— O seu quarto! — repetiu ele, em tom de deboche. — Você já viu todos os
quartos que tem. . . aquele ali é o meu.
E apontou para uma outra mansarda, diferente daquela apenas por ter menos coisas
encostadas às paredes e uma grande cama, baixa e sem cortinado, com uma coberta azul.
— Que me interessa o seu quarto? — retruquei.
— Suponho que o Sr. Heathcliff não durma no topo da casa.
— Oh! Ê o quarto do Sr. Heathcliff que a senhora quer! — exclamou ele, como
se acabasse de fazer uma descoberta. — Podia ter falado isso antes, não podia? E então eu
não precisava ter tido tanto trabalho, só lhe dizer que o quarto dele é que você não pode ver.
. . está sempre trancado e ninguém pode entrar lá, só ele mesmo.
— Você mora numa bela casa, Joseph — não pude evitar de comentar. — E com
belos habitantes. Acho que toda a loucura deste mundo deve ter se encarnado em mim no 

dia em que uni o meu destino ao deles! Contudo, isso agora não tem importância. Há
outros quartos; pelo amor de Deus, ande depressa e arranje-me um!
Ele não respondeu; apenas continuou a descer os degraus de madeira, parando diante
de um aposento que, pela sua atitude e pela superior qualidade da mobília, concluí que
devia ser o melhor. Tinha um tapete, um bom tapete, embora a poeira não deixasse ver-lhe
o desenho; uma lareira, protegida com papel recortado, caindo aos pedaços; uma bela cama
de carvalho com amplos cortinados escarlate, de material caro e novo, mas que,
evidentemente, tinham sido maltratados: os babados pendiam, em rasgões, arrancados das
argolas, e o trilho de ferro que os suportava estava dobrado em arco num dos lados, fazendo
com que o planejamento arrastasse pelo chão. As cadeiras também estavam danificadas,
muitas delas severamente, e profundos golpes deformavam os painéis das paredes. Eu estava
hesitando em entrar e apossar-me do quarto, quando o imbecil do meu guia anunciou: —
Este aqui ê o quarto do patrão. — A minha ceia já estava fria, o meu apetite tinha
desaparecido e a minha paciência estava gasta. Insisti para que ele me providenciasse,
imediatamente, um lugar de refúgio e de repouso.
— Onde diabos vou arranjar isso? — começou o velho. — Benza-nos Deus! Que o
Senhor me perdoe! Eh, diabo, onde posso meter você? J á viu todos os quartos, menos o de
Hareton. Não tem mais lugar para se dormir nesta casa!
Fiquei tão furiosa que joguei a bandeja e o seu conteúdo no chão; depois, sentandome
no alto da escada, escondi o rosto nas mãos e desatei a chorar.
— Credo! — exclamou Joseph. — Muito bem-feito, Srta. Cathy! Muito bem-feito!
O patrão vai tropeçar nesses pedaços de louça e o barulho vai ser grande. . . muito grande!
Sua desastrada! Merece jejuar daqui até o Natal, jogando no chão a preciosa comida que
Deus dá para a gente! Mas acho que você não vai ter dessas raivas por muito tempo. Está 

pensando que Heathcliff vai deixar você ter desses ataques? Deus queira que ele pegue você
fazendo uma dessas. Deus queira!
E assim foi, resmungando e imprecando, para o seu antro, levando a vela com ele e
deixando-me no escuro. O período de reflexão que se sucedeu àquela ação ridícula levou-me
a admitir a necessidade de abafar o orgulho e engolir a raiva, procurando limpar a sujeira
que fizera. Uma ajuda inesperada surgiu na forma de Throttler, a quem agora reconhecia
como sendo filho do nosso velho Skulker: passara os seus primeiros tempos na granja e fora
dado por meu pai ao Sr. Hindley. Creio que me reconheceu: encostou o focinho ao meu
nariz, à maneira de saudação, e depois apressou-se a devorar o mingau, enquanto eu
tateava de degrau em degrau, recolhendo a louça partida e enxugando com meu lenço os
respingos de leite que tinham caído no corrimão. O nosso trabalho estava quase acabado,
quando ouvi os passos de Earnshaw no corredor; o meu ajudante encolheu o rabo e
encostou-se à parede; eu entrei pela porta mais próxima. A tentativa do cão em evitá-lo foi
mal sucedida, a julgar pelo barulho e por um prolongado e lastimoso ganir. Eu tive mais
sorte! Ele passou, entrou no seu quarto e fechou a porta. Pouco depois, Joseph subiu com
Hareton, a fim de deitá-lo. Eu procurara refúgio no quarto do garoto e, ao ver-me, o velho
declarou: — Acho que agora tem lugar para você e para o seu orgulho. O quarto está
vazio: você pode ter ele todo para você, junto com o Senhor, que está sempre presente, mesmo
em má companhia!
De bom grado aceitei a oferta; e, assim que me joguei numa poltrona, ao lado da
lareira, adormeci. O meu sono foi gostoso e profundo, mas durou pouco. O Sr. Heathcliff
acordou-me; acabava de entrar em casa e perguntou, na sua maneira carinhosa, o que eu
estava fazendo ali. Expliquei-lhe a razão — ele tinha a chave do nosso quarto no bolso. A
palavra "nosso" pareceu insultá-lo terrivelmente. Jurou que não era, nem jamais seria, meu,
e que ele. . . Mas não vou repetir aqui o que ele disse, nem descrever o seu comportamento 
habitual: basta dizer que se empenha em ganhar o meu ódio! Por vezes fico tentando
compreendê-lo e isso amortece um pouco o meu medo; mas asseguro-lhe que nem um tigre
nem uma serpente venenosa poderiam causar-me mais pavor do que ele me suscita. Contoume
que Catherine estava doente e acusou o meu irmão de ser o culpado, prometendo que me
faria sofrer até conseguir se vingar de Edgar.
Odeio-o. . . Sou uma desgraçada. . . Que louca eu fui! Mas não conte nada disso a
ninguém aí da granja. Espero a sua visita — não me decepcione!
ISABELLA. 
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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