pela casa. Na primeira noite, pedi a Catherine que lesse para mim, pois tinha a
vista fraca. Estávamos na biblioteca e o meu amo já se retirara. Ela acedeu, se
bem que me parecesse a contragosto; e, pensando que talvez não gostasse do
meu tipo de leituras, disse-lhe que escolhesse entre os livros dela. Selecionou
um dos seus favoritos e leu mais ou menos durante uma hora; depois
começou a fazer perguntas.
— Ellen, você não está cansada? Não seria melhor deitar-se? Pode ter
uma recaída, Ellen, ficando de pé até tão tarde.
— Não, minha querida, não estou cansada — respondi.
Vendo que não conseguia nada, tentou outra maneira de me mostrar
que não gostava daquela ocupação. Pôs-se a bocejar e a espreguiçar-se,
dizendo:
— Ellen, estou cansada.
— Pare de ler, então, e vamos conversar — sugeri.
Aquilo foi pior ainda: começou a suspirar e a mostrar-se impaciente, de
vez em quando consultando o relógio, até que, às oito horas, foi para o seu
quarto, tonta de sono, a julgar pelo seu olhar pesado e o constante esfregar de
olhos. Na noite seguinte pareceu-me ainda mais impaciente; e na terceira
noite queixou-se de uma dor de cabeça e recolheu-se. Achei aquele
comportamento muito estranho e, após ter ficado muito tempo sozinha,
resolvi ir ver se ela estava melhor e perguntar-lhe se não preferia descer e
315
deitar-se no sofá, em vez de ficar às escuras, no quarto. Mas não achei
Catherine, nem em seu quarto, nem em lugar nenhum da casa. Os criados
afirmavam que não a tinham visto. Encostei o ouvido à porta do quarto do
Sr. Linton: silêncio completo. Voltei para o quarto dela, apaguei a vela e
sentei-me à janela.
Era uma noite de luar; uma neve fina cobria o chão e pensei que talvez
ela pudesse ter tido a idéia de dar uma volta pelo jardim, para desanuviar a
cabeça. Vi um vulto esgueirar-se ao longo da cerca interna do parque, mas
não era a minha jovem ama: à luz de uma lanterna, não tardei a reconhecer
um dos cavalariços. Ficou um tempo considerável olhando para a estrada que
atravessava o parque e depois começou a andar rapidamente, como se tivesse
visto alguma coisa, e voltou dali a pouco, puxando pela rédea o pônei de
Catherine; não tardou que ela aparecesse ao seu lado, em roupa de montaria.
O homem levou o animai silenciosamente pela grama, em direção à
cavalariça. Cathy entrou pela janela envidraçada da sala de visitas e subiu, sem
fazer barulho, até o quarto, onde eu a esperava. Fechou cuidadosamente a
porta, tirou os sapatos cobertos de neve, desatou o chapéu e estava tratando,
sem suspeitar da minha presença, de despir a capa, quando de repente me
levantei e lhe revelei minha presença. A surpresa petrificou-a, durante um
instante: ela deixou escapar uma exclamação de espanto e ficou como que
presa ao chão.
— Minha querida Srta. Catherine — comecei, demasiado agradecida
pela sua recente meiguice para me pôr a zangar com ela. — Onde é que você
foi, a esta hora? E por que tentar enganar-me, contando-me uma mentira?
Onde foi que esteve? Fale.
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— Fui até o fundo do parque — gaguejou ela. — Não lhe contei
nenhuma mentira.
— Não foi a nenhum outro lugar? — perguntei.
— Não — foi a resposta murmurada.
— Oh, Catherine! — exclamei, tristemente. — Você bem sabe que não
andou procedendo direito, ou não seria obrigada a me dizer uma mentira. Isso
é que me entristece. Preferia ficar três meses doente a ouvi-la inventar uma
mentira.
Ela rompeu em lágrimas e abraçou-me.
— Ellen, tenho tanto medo de que você se zangue! — disse. —
Prometa que não se zanga e lhe contarei a verdade: detesto ter de esconde-la.
Sentamo-nos junto à janela; garanti-lhe que não ralharia com ela, fosse
qual fosse ou seu segredo — de que, naturalmente, suspeitava —, e ela
começou:
— Fui ao Morro dos Ventos Uivantes, Ellen, e não deixei de ir nem um
dia, desde que você caiu doente; a não ser três dias antes e dois depois que
você se levantou. Dei a Michael livros e gravuras em troca de aprontar Minny
todas as noites e de pô-la de volta na cavalariça: mas você também não deve
ralhar com ele. Chegava ao Morro às seis e meia e geralmente ficava até as oito
e meia; depois, galopava para casa. Não ia lá para me divertir: quase sempre
me sentia muito infeliz. Só de vez em quando me sentia feliz: uma vez por
semana, talvez. A princípio, pensei que ia ser muito difícil convencê-la a me
deixar cumprir a palavra dada a Linton, pois prometera voltar no dia seguinte,
quando viemos embora; mas você não desceu, facilitando-me as coisas.
Enquanto Michael consertava a fechadura do portão do parque, naquela
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tarde, apossei-me da chave e contei-lhe que o meu primo queria que eu fosse
visitá-lo, porque estava doente e não podia vir à granja; e que papai não me
queria deixar ir. . . e negociei com ele a respeito do pônei. Michael gosta
muito de ler e está pensando em deixar o emprego para se casar; de modo que
me propôs que lhe emprestasse livros da biblioteca, em troca de fazer o que
eu quisesse; mas preferi emprestar-lhe dos meus livros, o que ele ainda achou
melhor.
"Na minha segunda visita, encontrei Linton bem-humorado. Zillah (a
governanta deles) preparou-nos um aposento limpo e um bom fogo e dissenos
que Joseph estava na igreja e Hareton Earnshaw saíra com os cães (para
caçar faisões nos nossos bosques, conforme ouvi dizer mais tarde), de modo
que podíamos fazer o que quiséssemos. Trouxe-me vinho licoroso e pão de
mel, parecendo-me muito solícita. Linton sentou-se na poltrona e eu na
cadeirinha de balanço, junto à lareira, e rimos e conversamos e falamos de
muitas coisas: planejamos aonde iríamos e o que faríamos no verão. Não vou
repetir o que combinamos, porque você acharia isso tolo.
"Por pouco, porém, não discutimos. Ele disse que a melhor maneira de
passar um dia quente de julho era ficar deitado, da manhã à noite, numa moita
de urzes, no meio da charneca, com as abelhas zumbindo de flor em flor e as
cotovias cantando bem alto, sobre as nossas cabeças, e o céu azul e o sol
brilhando sem parar e sem nuvens. Essa era a sua idéia da perfeita ventura
celestial: a minha era balançar-me numa árvore verde e rumorejante, com o
vento de oeste soprando nas folhas e nuvens brancas esvoaçando no céu; e
não só cotovias, mas também tordos e melros e pintarroxos e cucos
derramando música por todos os lados e a charneca vista a distância e
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quebrada em ravinas frescas e nebulosas; perto, grandes massas de erva alta,
ondulando à brisa; e bosques e água cantante e o mundo inteiro desperto e
triunfante de alegria. Ele queria jazer num êxtase de paz; eu queria que tudo
resplandecesse e dançasse em gloriosa aleluia. Disse-lhe que o seu paraíso não
teria vida, e ele retrucou que o meu pareceria ébrio; disse-lhe que, no dele, eu
adormeceria, e ele, que não poderia respirar no meu, e começou a ficar muito
irritado. Finalmente, concordamos em experimentar ambos, tão logo chegasse
o bom tempo; e nos beijamos e fizemos as pazes.
"Após termos ficado sentados uma hora inteira, olhei para a grande
sala, com seu soalho liso e sem tapetes, e pensei que bom seria inventarmos
uma brincadeira, se tirássemos a mesa do lugar; e pedi a Linton que fosse
chamar Zillah, para brincarmos de cabra-cega; ela tentaria pegar-nos — como
você costumava fazer, Ellen. Mas ele não quis: disse que aquilo não tinha
graça. Concordou, porém, em jogar bola comigo. Encontramos duas bolas
num armário, entre um monte de brinquedos velhos, arcos, piões, raquetes e
pelas. Uma delas tinha marcado um C, a outra, um H; quis ficar com a C, pois
era a inicial de Catherine, ao passo que H podia significar Heathcliff, seu
sobrenome; mas a bola H tinha o farelo saindo e Linton reclamou. Venci-o
sempre e ele ficou novamente zangado; começou a tossir e voltou para a sua
poltrona. Essa noite, porém, recuperou facilmente o bom humor: ficou
encantado com duas ou três canções que lhe cantei — as suas canções, Ellen;
e, quando tive de me vir embora, suplicou-me que voltasse na noite seguinte.
Prometi-lhe que voltaria e vim a galope para casa. Sonhei com o Morro dos
Ventos Uivantes e com o meu querido primo até de manhã cedo.
319
"Passei o dia seguinte triste: em parte por você estar doente e em parte
por desejar que meu pai soubesse das minhas visitas e as aprovasse. Mas,
depois do chá, o luar cobriu tudo; e, enquanto eu galopava, a tristeza foi se
dispersando. 'Terei outro belo serão', pensava comigo mesma; 'e, o que é
melhor, o meu querido Linton também o terá.' Subi o jardim deles e ia dar a
volta pelos fundos, quando o tal Earnshaw me apareceu, pegou nas rédeas e
convidou-me a entrar pela frente. Acariciou o pescoço de Minny, dizendo que
era um belo animal e que parecia querer falar com ele. Disse-lhe que largasse
o meu cavalo ou se arriscaria a receber um coice. Ele respondeu, na sua
pronúncia vulgar: 'Não pode fazer muito estrago', e examinou as patas de
Minny com um sorriso. Tive vontade de fazê-lo experimentar, mas ele se
afastou para abrir a porta e, ao levantar a tranca, olhou para a inscrição, em
cima, e disse, com uma estúpida mistura de timidez e orgulho:
" 'Srta. Catherine! Já sei ler aquilo'.
" 'Ótimo!', exclamei. 'Vamos ouvir, então. Você ficou inteligente!'
"Ele soletrou e leu, sílaba por sílaba, o nome 'Hareton Earnshaw'.
" 'E os números?', perguntei, encorajando-o, ao perceber que ele tinha
parado.
" 'Ainda não sei ler eles', respondeu.
" 'Puxa, que burro!', exclamei, com uma risada.
"O pateta ficou me olhando, com um sorriso pairando nos lábios e uma
ruga entre os olhos, como se hesitasse em rir também: como se não soubesse
ao certo se a minha risada fora fruto de uma agradável familiaridade ou — o
que realmente era — expressão de desprezo. Acabei-lhe com as dúvidas
recuperando a gravidade e dizendo-lhe que fosse embora, pois viera visitar
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Linton, e não a ele. O bobo corou — o luar bastava para que se pudesse ver
isso —, deixou cair a mão da tranca e foi-se embora, o retrato vivo da vaidade
ferida. Julgava-se no mesmo pé de igualdade de Linton, só por conseguir ler o
seu próprio nome — e ficou tremendamente desapontado por eu não achar o
mesmo."
— Um momento, Srta. Catherine! — interrompi. — e levou-me, ou,
melhor, quase me carregou para dentro de casa.
"Ellen, eu estava completamente desesperada! Solucei e chorei tanto,
que quase fiquei cega; enquanto isso, o rufião por quem você demonstra tanta
simpatia permanecia de pé, à minha frente, atrevendo-se, de vez em quando, a
me mandar calar e negando que tivesse tido a culpa; finalmente, assustado
pela minha promessa de contar tudo a papai e fazer com que ele fosse preso e
enforcado, começou também a gaguejar e saiu correndo, para esconder a sua
covarde agitação. Mesmo assim, não consegui ver-me livre dele: quando, por
fim, me convenceram a partir e eu já estava a umas cem jardas da
propriedade, ele de repente emergiu das sombras da estrada, deteve Minny e
impediu-me de continuar.
" 'Srta. Catherine, estou muito aflito', começou, 'mas acho que a culpa. .
.'
"Dei-lhe uma chicotada, temendo que talvez ele me quisesse matar.
Soltou as rédeas, explodindo numa das suas horríveis pragas, e eu voltei para
casa a galope, quase fora de mim.
"Nessa noite não vim dar boa-noite a você e no dia seguinte não fui ao
Morro: desejava muito ir, mas estava terrivelmente excitada e temia receber a
notícia de que Linton morrera; por outro lado, estremecia, só de pensar que
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encontraria Hareton. No terceiro dia tomei coragem: de qualquer modo, não
agüentava mais aquela ansiedade e novamente resolvi ir até lá. Saí às cinco,
caminhando, pois pensava que poderia entrar na casa e subir ao quarto de
Linton sem que ninguém me visse. Entretanto, os cães anunciaram a minha
aproximação. Zillah veio receber-me e, dizendo que 'o rapaz estava quase
fino', fez-me entrar numa salinha toda atapetada e bem-arrumada, onde, para
minha enorme alegria, deparei com Linton deitado num pequeno sofá, lendo
um dos meus livros. Mas, durante uma hora inteira, recusou-se a falar comigo
ou mesmo a olhar para mim, Ellen. Tem um gênio tão difícil! E o que mais
me espantou, quando finalmente resolveu abrir a boca, foi ouvi-lo dizer a
mentira de que eu fora a causadora de tudo e Hareton não tivera a menor
culpa! Incapaz de responder, a não ser exaltada, levantei-me e saí da sala. Ele
me chamou logo com um débil 'Catherine!' Não contava com a minha reação,
mas não me virei e, no dia seguinte, não voltei lá, determinada a não mais
visitá-lo. Só que era tão horrível ir para a cama e acordar sem ter notícias dele,
que a minha decisão dissolveu-se antes mesmo de estar bem assente. Antes
parecera-me malfeito ir até lá; agora parecia mal não ir. Michael veio
perguntar-me se devia encilhar Minny. Respondi que sim e achei que estava
cumprindo um dever, à medida que me aproximava do Morro. Tive de passar
pelas janelas da frente para chegar ao terreiro: não adiantava esconder a minha
presença.
" 'O patrãozinho está em casa', disse Zillah, vendo-me andar na direção
da salinha de estar. Entrei; Earnshaw também lá estava, mas saiu
imediatamente. Linton estava sentado na poltrona grande, meio adormecido.
322
Encaminhando-me para a lareira, comecei, num tom sério, desejando que
soasse verdadeiro:
" 'Como você não gosta de mim, Linton, e como pensa que vim de
propósito para aborrecê-lo e prejudicá-lo, esta será a última vez que nos
vemos: vim para me despedir. Diga ao Sr. Heathcliff que você não tem a
mínima vontade de me ver e que ele não deve inventar mais mentiras a
respeito'.
" 'Sente-se e tire o chapéu, Catherine', respondeu ele. 'Você é tão mais
feliz do que eu, que deveria ser melhor. Papai fala tanto nos meus defeitos e
mostra tanto desprezo por mim, que é natural que eu seja inseguro. Fico pensando
se não serei mesmo tão desprezível como ele diz que eu sou — e fico
tão amargurado, que odeio todo o mundo! Sou desprezível e quase sempre
tenho mau gênio e maus pensamentos; se você quiser, pode se despedir de
mim: ficará livre de um aborrecimento. Só lhe peço, Catherine, para me fazer
justiça: acredite que, se pudesse ser bom e gentil como você é, eu o seria: e
feliz e saudável. E acredite, também, que a sua bondade fez com que eu a
amasse mais profundamente do que merecia: e, embora eu não pudesse e não
possa deixar de lhe mostrar como sou, lamento muito e sinto-me
arrependido; hei de sentir-me arrependido e lamentar isso até o dia da minha
morte!'
"Senti que ele falava a verdade e que devia perdoá-lo, embora
pudéssemos brigar logo a seguir. Reconciliamo-nos; mas choramos, choramos
ambos, durante o tempo todo em que lá fiquei: não inteiramente de pena,
embora eu tivesse pena de que Linton tivesse aquela triste maneira de ser.
Nunca fará com que os seus amigos se sintam bem e ele próprio nunca se
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sentirá bem! A partir daquela noite fui sempre para a salinha dele, pois seu pai
voltou no dia seguinte.
"Três vezes apenas, se não me engano, passamos um serão alegre,
fazendo planos e rindo, como na primeira noite; as demais visitas foram
pouco agradáveis, ora pelo egoísmo e mau gênio dele, ora pelos seus
queixumes: mas eu aprendi a suportar aqueles quase com tanta paciência
quanto estes. O Sr. Heathcliff evita-me propositadamente: pode-se dizer que
não o tenho visto. Este último domingo, tendo chegado mais cedo do que de
hábito, ouvi-o ralhar de maneira cruel com o pobre Linton, pelo seu
comportamento na noite anterior. Não sei como foi que ele soube, a menos
que escutasse. Realmente, Linton comportara-se bastante mal. Mas só a mim
dizia respeito e interrompi a reprimenda do Sr. Heathcliff para lhe dizer isso.
Ele caiu na risada e saiu, dizendo estar satisfeito por eu levar a coisa assim.
Desde então, tenho dito a Linton que, quando quiser dizer coisas
desagradáveis, fale baixo. Pronto, Ellen, você está a par de tudo. Não posso
deixar de ir ao Morro, a menos que faça sofrer duas pessoas: ao passo que, se
você não contar nada a papai, o fato de eu ir lá não prejudicará ninguém.
Você não vai contar, não é? Seria horrível da sua parte."
— Decidirei isso até amanhã, Srta. Catherine — respondi. — Preciso
pensar bem; vou deixá-la agora, para poder meditar.
Meditei sobre o assunto em voz alta, na presença do meu amo, pois fui
direto ao quarto dele e contei-lhe toda a história, com exceção das conversas
dela com o primo e de fazer menção a Hareton. O Sr. Linton ficou mais alarmado
e preocupado do que me demonstrou. Na manhã seguinte, Catherine
soube da minha traição e soube também que as suas visitas secretas tinham
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chegado ao fim. Em vão chorou e suplicou ao pai que tivesse pena de Linton:
tudo o que conseguiu foi a promessa de que ele escreveria, dando-lhe licença
de vir à granja sempre que quisesse, mas explicando que não esperasse mais
visitas de Catherine. Se ele soubesse do temperamento do sobrinho e do seu
estado de saúde, talvez os tivesse privado até mesmo desse leve consolo.
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