encruzilhada. Lá chegando, porém, um pastorzinho, enviado como
mensageiro, anunciou-nos:
— O Sr. Linton está do lado do Morro e pede para avisá-los de que têm
de andar um pouco mais.
— Então ele esqueceu a primeira condição que o tio impôs — observei.
— Mandou-nos ficar dentro dos limites da granja e não vamos transgredi-los.
— Ora, podemos virar as cabeças dos nossos cavalos, quando
chegarmos ao lugar onde ele está — retrucou Cathy. — Assim, ficaremos
voltados para casa.
Mas, ao chegarmos junto dele, a menos de um quarto de milha do
Morro, vimos que não trouxera cavalo e fomos obrigadas a desmontar,
deixando os nossos animais a pastar. Ele jazia sobre as urzes, à nossa espera, e
só se levantou quando chegamos a poucos metros de distância. Encaminhouse
para nós de maneira tão cambaleante e com ar tão pálido, que logo
exclamei:
— Oh, Sr. Heathcliff, está com um aspecto tão mau! Não me parece que esteja bom para dar um passeio a pé.
Catherine olhou para ele com um misto de dor e espanto; mudou a
exclamação de alegria já em seus lábios para outra, de alarma, e as
congratulações pelo encontro de ambos para uma pergunta aflita sobre a
saúde dele — acaso estava pior do que de hábito?
— Não, melhor. . . muito melhor! — arquejou ele, tremendo e
segurando a mão dela como se necessitasse de apoio, enquanto os seus
grandes olhos azuis erravam timidamente; as olheiras que os cercavam
transformavam em abatimento a lânguida expressão que antes possuíam.
— Mas você está pior — persistiu a prima. — Pior do que da última
vez que o vi; está mais magro e. . .
— Estou cansado — interrompeu ele, apressado. — Faz demasiado
calor para andar, vamos ficar aqui mesmo. E, de manhã, às vezes sinto-me
tonto. Papai diz que estou crescendo. . . muito rápido.
Mal satisfeita, Cathy sentou-se e ele se deitou ao lado
dela.
— Isto até parece o seu paraíso — comentou ela, esforçando-se por
criar um ambiente de animação. — Lembra-se dos dois dias que combinamos
passar num lugar e da maneira que cada qual achasse mais agradável? Sem
dúvida aqui tem você o seu, com a exceção apenas de que há nuvens; mas são
tão macias, que está quase melhor do que se houvesse sol. Na semana que
vem, se você puder, iremos a cavalo até o parque da granja, experimentar o
meu paraíso.
Linton não parecia lembrar-se do que ela estava falando e tinha,
evidentemente, grande dificuldade em sustentar qualquer espécie de conversa.
Sua falta de interesse pelos assuntos que ela começava e a sua incapacidade de
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contribuir com qualquer outro assunto eram tão óbvias, que Cathy não
conseguiu esconder o seu desapontamento. Uma indefinida alteração se
processara na pessoa e na atitude dele. O seu ar caprichoso e mimado dera
lugar à indiferença e à apatia; havia nele menos das artimanhas de uma criança
que se queixa e provoca os outros para lhes atrair propositadamente a
atenção, e mais do obstinado egocentrismo de um doente pronto a repelir
qualquer consolo e a considerar o bom humor dos outros como um insulto.
Catherine apercebeu-se, tanto quanto eu, de que a nossa companhia era para
ele mais um castigo do que uma satisfação e não teve escrúpulos em propor
que nos fôssemos. Essa proposta, inesperadamente, despertou Linton da sua
letargia, pondo-o num estado de estranha agitação. Olhou, apavorado, na
direção do Morro, suplicando-lhe que ficasse pelo menos outra meia hora.
— Mas eu acho — retrucou Cathy — que você estaria melhor em casa
do que sentado no chão, aqui; e estou vendo que não o posso distrair, hoje,
com as minhas histórias, as minhas canções e a minha conversa: você se
tornou mais adulto do que eu, nestes seis meses. . . Pouco lhe interessa o que
eu digo. Se eu visse que estava interessado ficaria de bom grado.
— Fique para descansar um pouco — replicou ele. — E, Catherine,
não pense ou diga que eu estou muito mal: é este tempo abafado, este calor,
que me fazem assim; e, antes de você chegar, andei demais para o meu hábito.
Diga ao meu tio que estou passando razoavelmente, está bem?
— Vou lhe dizer que você acha que está, Linton. Não poderia afirmar
que isso é verdade — observou a minha jovem ama, espantada com a
insistência dele em algo que se via não ser verdade.
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— E volte na próxima quinta-feira — continuou ele, evitando o olhar
dela. — Agradeça-lhe por ter permitido que você viesse. . . agradeça-lhe da
minha parte, Catherine. E. . . e se por acaso encontrar o meu pai e ele lhe
perguntar a meu respeito, não lhe diga que estive tão calado; não fique com
esse ar triste e desanimado. . . ele ficará furioso.
— Não me importa nada que ele fique furioso! — exclamou Catherine,
imaginando ser ela mesma a vítima dessa fúria.
— Mas a mim importa — retrucou o primo, estremecendo. — Não o
irrite contra mim, Catherine. Você não sabe como ele é.
— Por acaso o maltrata, Sr. Heathcliff? — perguntei. — Ter-se-á
cansado de ser indulgente e seu ódio terá passado de passivo a ativo?
Linton olhou para mim, mas não respondeu; e, após ter ficado sentada
ao lado do primo mais dez minutos, durante os quais ele deixou pender a
cabeça sobre o peito e só fez soltar gemidos mal contidos de dor e exaustão,
Cathy levantou-se e começou a procurar amoras, dividindo-as comigo; não
lhe ofereceu nenhuma, pois viu que só faria aborrecê-lo e cansá-lo.
— Já terá passado meia hora, Ellen? — cochichou ela no meu ouvido,
por fim. — Não sei por que nos pediu que ficássemos. Adormeceu e papai já
deve estar à nossa espera.
— Bem, não devemos deixá-lo dormindo — respondi. — Espere até
que ele acorde, tenha paciência. Você estava muito ansiosa por vir, mas
parece que o seu desejo de ver o seu pobre primo logo se evaporou!
— Por que foi que ele me quis ver? — retrucou Catherine. — Mesmo
nos seus piores dias, gostava mais dele do que como ele está agora. Parece até
que este nosso encontro é uma tarefa que ele foi obrigado a cumprir por
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temor a que seu pai ralhasse com ele. Mas eu não vou vir até aqui só para dar
prazer ao Sr. Heathcliff, seja qual for a razão que ele tiver para forçar Linton a
tal penitência. E, embora me alegre de que ele esteja melhor de saúde, acho
que está muito pior de gênio e muito menos afetuoso para comigo.
— Você acha que ele está melhor de saúde? — volvi.
— Acho — respondeu ela —, porque ele sempre fez um bicho de sete
cabeças dos seus padecimentos. Acho que ele não está apenas melhor,
conforme me pediu para dizer a papai, mas muito melhor.
— Nisso não concordamos, Srta. Cathy — observei. — Eu acho que
ele está muito pior.
Nesse ponto, Linton acordou do seu cochilo e, com uma expressão de
terror, perguntou se alguém tinha chamado o seu nome.
— Não — respondeu Catherine. — Só se tiver sido em sonhos. Não
posso entender como é que você pode cochilar no meio do campo, e de
manhã.
— Pareceu-me ouvir o meu pai — arquejou ele. — Tem certeza de que
ninguém me chamou?
— Certeza absoluta — replicou sua prima. — Só eu e Ellen é que
estávamos falando, sobre o seu estado de saúde. Você está mesmo melhor do
que da última vez em que nos vimos, no inverno? Sente-se mais forte? Porque
uma coisa, pelo menos, não me parece mais forte. . . o seu afeto por mim.
Diga-me. . . Você está mesmo melhor?
As lágrimas brotaram dos olhos de Linton, ao mesmo tempo em que
ele respondia: — Estou, sim, estou! — E, ainda sob o impacto da voz imaginária, seu olhar errava para cima e para baixo, à procura de quem falara.
Cathy levantou-se. — Por hoje, temos de ir embora — declarou. — Não
escondo que fiquei muito decepcionada com este nosso encontro, embora
não vá dizer nada a ninguém. . . e olhe que não tenho medo do Sr.
Heathcliff!
— Fale baixo! — murmurou Linton. — Pelo amor de Deus, fale baixo!
Ele está vindo. — E agarrou-se ao braço de Catherine, tentando detê-la; mas,
ao ouvir aquilo, ela se apressou a chamar Minny, que lhe obedecia como se
fosse um cão.
— Voltarei na próxima quinta-feira! — gritou, pulando para a sela. —
Até lá! Depressa, Ellen!
E assim o deixamos, quase sem se dar conta da nossa partida, tão aflito
estava ele com a aproximação do pai.
Antes de chegarmos a casa, a frustração de Catherine já se transformara
num perplexo sentimento de pena e de dúvida quanto ao estado físico e social
de Linton — dúvida que também eu partilhava, embora a aconselhasse a não
fazer comentários, pois um segundo encontro nos daria melhores bases para
julgar. Meu amo pediu que lhe relatássemos o encontro. Cathy transmitiu-lhe
os agradecimentos do primo e pouco falou do resto; eu também, pois não
sabia o que ocultar e o que revelar.
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