Eu me sentei no calor sufocante do meu carro diante da casa de Desi, as janelas abertas, e
verifiquei meu telefone. Uma mensagem de Gilpin: “Oi, Nick. Precisamos bater um papo hoje,
atualizar você sobre algumas coisas, fazer umas perguntas. Encontre conosco em sua casa às
quatro horas, certo? Hã... Obrigado.”
Era a primeira vez que eu recebia uma ordem. Nada de Poderíamos, adoraríamos, se você
não se importar. Mas Precisamos. Encontre conosco...
Conferi meu relógio de pulso. Três horas. Melhor não me atrasar.
* * *
O show aéreo de verão — um desfile de jatos e aviões a hélice rodopiando pelo Mississippi,
zumbindo nos barcos a vapor dos turistas, fazendo dentes tremer — seria em três dias, e os
treinamentos estavam a toda quando Gilpin e Rhonda apareceram. Estávamos todos de volta à
minha sala de estar pela primeira vez desde O Dia Do.
Minha casa ficava bem no caminho dos voos; o barulho era algo entre uma britadeira e uma
avalanche. Meus amigos policiais e eu tentamos conversar nos intervalos entre os rugidos.
Rhonda parecia mais um passarinho do que de costume — apoiando-se em uma perna, depois na
outra, virando a cabeça para todos os lados enquanto o olhar pousava em diferentes objetos,
ângulos —, uma gralha tentando forrar o ninho. Gilpin estava junto a ela, mordendo o lábio,
batendo um dos pés. Mesmo a sala parecia impaciente: o sol vespertino iluminava uma nuvem
atômica de partículas de poeira. Um jato disparou por cima da casa, aquele som medonho de céu
se rasgando.
— Certo, duas coisas aqui — disse Rhonda quando o silêncio voltou. Ela e Gilpin se
sentaram como se de repente tivessem decidido ficar mais um pouco. — Algumas coisas a
esclarecer, algumas coisas para lhe contar. Tudo rotina. E, como sempre, caso queira um
advogado...
Mas eu sabia pelos meus programas de TV, meus filmes, que só caras culpados pediam
advogados. Maridos reais, sofridos, preocupados, inocentes, não faziam isso.
— Não quero, não, obrigado — disse. — Na verdade tenho algumas informações para dar a
vocês. Sobre o antigo perseguidor de Amy, o cara que ela namorou no ensino médio.
— Desi... hã, Collins — começou Gilpin.
— Collings. Sei que vocês falaram com ele, sei que por alguma razão vocês não estão muito
interessados nele, então eu mesmo fui visitá-lo hoje. Para ter certeza de que ele parecia...
tranquilo. E não acho que pareça tranquilo. Acho que ele é alguém que vocês deveriam
investigar. Realmente investigar. Quero dizer, ele se muda para St. Louis...
— Ele já morava em St. Louis três anos antes de vocês virem para cá — informou Gilpin.
— Legal, mas ele está em St. Louis. Uma viagem fácil, de carro. Amy comprou uma arma
porque estava com medo...
— Desi é tranquilo, Nick. Um cara legal — declarou Rhonda. — Você não acha? Na
verdade, ele me lembra você. Garoto de ouro, o bebê da família.
— Sou gêmeo. Não o bebê. Na verdade sou três minutos mais velho.
Rhonda claramente estava tentando me provocar, ver se conseguia uma explosão, mas mesmo
sabendo disso eu não conseguia evitar a descarga de raiva no meu sangue correr para meu
estômago toda vez que ela me acusava de ser um bebê.
— Enfim — interrompeu Gilpin. — Ele e a mãe negam que ele tenha perseguido Amy, ou
mesmo que tenha tido muito contato com ela nesses últimos anos, a não ser por meio de bilhetes
eventuais.
— Minha esposa lhes diria algo diferente. Ele escreveu para Amy durante anos, anos, e
depois ele aparece aqui para a busca, Rhonda. Você sabia disso? Ele esteve aqui no primeiro
dia. Vocês falaram sobre ficar de olho em homens se metendo na investigação...
— Desi Collings não é um suspeito — interrompeu ela, erguendo uma das mãos.
— Mas...
— Desi Collings não é um suspeito — repetiu.
A notícia me feriu. Eu quis acusá-la de estar sendo influenciada por Ellen Abbott, mas
provavelmente era melhor não mencionar Ellen Abbott.
— Está bem, e quanto a todos aqueles, aqueles caras que bloquearam a linha telefônica da
investigação? — perguntei, indo até a mesa da sala de jantar e pegando a folha com nomes e
números que eu jogara ali sem cuidado. Comecei a ler nomes. — Intrometendo-se na
investigação: David Samsom, Murphy Clark, esses são antigos namorados, Tommy O’Hara,
Tommy O’Hara, Tommy O’Hara, são três ligações, Tito Puente, esse é só uma piada sem graça.
— Você telefonou para algum deles? — perguntou Boney.
— Não. Esse não é o trabalho de vocês? Não sei quais valem a pena e quais são malucos.
Não tenho tempo para ligar para algum babaca fingindo ser Tito Puente.
— Eu não daria muita atenção à linha telefônica, Nick — disse Rhonda. — É uma situação
meio complicada. Quer dizer, recebemos muitos telefonemas de suas antigas namoradas. Só
queriam dizer oi. Ver como você está. As pessoas são estranhas.
— Talvez devêssemos começar com nossas perguntas — cutucou Gilpin.
— Certo. Bem, acho que é bom começarmos por onde você estava na manhã em que sua
esposa desapareceu — disse Boney, de repente se desculpando, me tratando com deferência.
Ela estava posando de policial boazinha, e ambos sabíamos que ela estava posando de
policial boazinha. A menos que realmente estivesse do meu lado. Parecia possível que algumas
vezes um policial simplesmente estivesse do seu lado. Certo?
— Quando eu estava na praia.
— E ainda não se lembra de ninguém ter visto você lá? — perguntou Boney. — Ajudaria se
pudéssemos eliminar essa coisinha de nossa lista.
Ela permitiu um silêncio compreensivo. Rhonda não apenas conseguia ficar quieta, ela
conseguia inundar a sala com o clima que escolhia, como um polvo com sua tinta.
— Acredite, eu gostaria disso tanto quanto você. Mas não. Não me lembro de ninguém.
Boney sorriu um sorriso preocupado.
— É estranho, nós mencionamos para algumas pessoas, apenas de passagem, que você estava
na praia, e todas elas disseram... Todas ficaram surpresas, digamos assim. Disseram que não era
muito a sua cara. Que você não era uma pessoa de praia.
Dei de ombros.
— Bom, eu vou à praia e fico deitado o dia inteiro? Não. Mas para tomar meu café, de
manhã? Certamente.
— Ei, isso pode ajudar — disse Boney, se animando. — Onde você comprou o café naquela
manhã? — perguntou, se virando para Gilpin como se buscasse aprovação. — Poderia pelo
menos reduzir o espaço de tempo, certo?
— Eu fiz aqui — respondi.
— Ah — exclamou ela, franzindo a testa. — Isso é estranho, porque você não tem café aqui.
Em nenhum lugar da casa. Lembro-me de achar isso estranho. Uma viciada em cafeína repara
nessas coisas.
Certo, apenas algo que você notou por acaso, pensei. Conheci uma policial chamada Bony
Moronie... As armadilhas dela são tão óbvias que são claramente falsas...
— Eu tinha uma xícara de café sobrando na geladeira que esquentei — disse, dando de
ombros novamente: Nada de mais.
— Hã. Devia estar lá havia muito tempo; não tinha embalagem de café no lixo.
— Alguns dias. O gosto ainda fica bom.
Ambos sorrimos um para o outro. Eu sei e você sabe. Manda ver. Eu realmente pensei nestas
palavras idiotas: Manda ver. Mas de certa forma fiquei contente: a parte seguinte estava
começando.
Boney se virou para Gilpin, mãos nos joelhos, e acenou de leve com a cabeça. Gilpin mordeu
o lábio mais um pouco e finalmente apontou: para o divã, a mesa de canto, a sala de estar agora
arrumada.
— Veja, o nosso problema é o seguinte, Nick — começou. — Já vimos dezenas de invasões
de residências.
— Dezenas e dezenas e dezenas — interrompeu Boney.
— Muitas invasões de residência. Isto, toda esta área bem aqui, na sala de estar, lembra? O
divã virado, a mesa virada, o vaso no chão. — Colocou uma foto da cena na minha frente. —
Toda esta área deveria parecer uma briga, certo?
Minha cabeça se expandiu e depois voltou ao lugar. Fique calmo.
— Deveria?
— Tinha alguma coisa errada — continuou Gilpin. — Assim que nós vimos. Para ser sincero,
a coisa toda parecia encenada. Para começar, há o fato de que tudo estava concentrado nesse
único lugar. Por que nada mais estava bagunçado na casa a não ser esta sala? Isso é estranho. —
Ele pegou outra foto, um close. — E veja aqui, esta pilha de livros. Eles deveriam estar na frente
da mesa lateral; a mesa lateral é onde eles ficavam, certo?
Confirmei com um gesto de cabeça.
— Então, quando a mesa lateral foi derrubada, eles deveriam ter se espalhado principalmente
na frente dela, seguindo a trajetória da mesa em queda. Em vez disso, estão atrás dela, como se
alguém os tivesse empurrado antes de derrubar a mesa.
Fiquei olhando abobado para a foto.
— E veja isto. Isto me parece muito curioso — continuou Gilpin. Ele apontou para três finas
molduras antigas sobre a lareira. Bateu o pé com força, e todas tombaram imediatamente. — Mas
de alguma forma elas permaneceram de pé enquanto tudo caía.
Ele mostrou a foto com as molduras de pé. Eu estava esperando — mesmo após terem notado
meu deslize com o jantar no Houston’s — que fossem policiais tapados, policiais de filmes,
caipiras locais procurando agradar, confiando no sujeito da cidade: Como você quiser, parceiro .
Eu não ganhei policiais tapados.
— Não sei o que querem que eu diga — murmurei. — Isso é totalmente... não sei o que
pensar. Só quero encontrar minha esposa.
— Nós também, Nick, nós também — disse Rhonda. — Mas há outra coisa. O divã. Lembra
como estava virado de cabeça para baixo?
Ela deu um tapinha no divã baixo, apontou para suas quatro pernas cilíndricas, cada uma com
apenas dois centímetros e meio de comprimento.
— Veja, esta coisa é pesada e estável por causa das perninhas minúsculas. O assento está
praticamente no chão. Tente virá-lo.
Eu hesitei.
— Vamos lá, tente — incentivou Boney.
Dei um empurrão, mas ele deslizou pelo carpete em vez de virar. Balancei. Concordei. Era
estável.
— Sério, abaixe se for preciso e vire essa coisa de cabeça para baixo — ordenou Boney.
Ajoelhei, empurrei de ângulos cada vez mais baixos, finalmente coloquei uma mão sob o divã
e o impeli. Mesmo então ele levantou, um lado pairando, e caiu de volta no mesmo lugar;
finalmente tive de virá-lo à força.
— Esquisito, né? — questionou Boney, não soando assim tão intrigada.
— Nick, você fez alguma faxina no dia em que sua esposa sumiu? — perguntou Gilpin.
— Não.
— Certo, porque o perito fez uma varredura com Luminol, e lamento dizer que o chão da
cozinha acendeu. Uma boa quantidade de sangue foi derramada lá.
— Do tipo de Amy: B positivo — interrompeu Boney. — E não estou falando de um pequeno
corte, estou falando de sangue.
— Ai, meu Deus. — Um coágulo de calor surgiu no meio do meu peito. — Mas...
— Sim, então sua esposa conseguiu sair desta sala — disse Gilpin. — Teoricamente, de
alguma forma, conseguiu chegar à cozinha; sem deslocar nenhuma daquelas quinquilharias na
mesa bem na frente da cozinha; e então desabou lá, onde perdeu muito sangue.
— E depois alguém o limpou cuidadosamente — completou Rhonda, me observando.
— Esperem. Esperem. Por que alguém iria querer esconder sangue, mas depois bagunçar a
sala de estar...?
— Vamos descobrir isso, não se preocupe, Nick — afirmou Rhonda em voz baixa.
— Eu não entendo, simplesmente não...
— Vamos nos sentar — sugeriu Boney. Ela apontou uma cadeira na sala de jantar. — Você já
comeu? Quer um sanduíche, alguma coisa?
Balancei a cabeça em um gesto negativo. Boney estava se revezando na interpretação de
diferentes personagens femininos: mulher poderosa, ajudante carinhosa, para ver qual produzia
melhor resultado.
— Como vai seu casamento, Nick? — perguntou Rhonda. — Quer dizer, cinco anos, isso é
perto da crise dos sete anos.
— O casamento estava bem — repeti. — Está bem. Não perfeito, mas bom, bom.
Ela torceu o nariz: você está mentindo.
— Você acha que ela poderia ter fugido? — perguntei, esperançoso demais. — Fez isso
parecer uma cena de crime e foi embora? Tipo esposa em fuga?
Boney começou a dar razões para negar essa hipótese:
— Ela não usou o celular, não usou cartões de crédito, não sacou dinheiro. Não fez grandes
retiradas em dinheiro nas semanas anteriores.
— E há o sangue — acrescentou Gilpin. — Quer dizer, novamente, não quero soar bruto, mas
o volume de sangue derramado? Isso exigiria um sério... Quer dizer, eu não poderia ter feito isso
a mim mesmo. Estou falando de ferimentos profundos. Sua esposa tem nervos de aço?
— Sim. Ela tem.
Também tinha uma profunda fobia de sangue, mas eu preferi esperar e deixar que os
brilhantes detetives descobrissem isso.
— Parece bastante improvável — disse Gilpin. — Caso ela ferisse a si mesma tão
gravemente, por que iria limpar depois?
— Então, de verdade, sejamos sinceros, Nick — falou Boney, se apoiando nos joelhos para
fazer contato visual comigo enquanto eu olhava para o chão. — Como estava seu casamento?
Estamos do seu lado, mas precisamos da verdade. A única coisa que o deixa mal é esconder
coisas de nós.
— Tivemos problemas.
Eu vi Amy no quarto naquela última noite, o rosto tomado pelas manchas vermelhas que
ganhava quando estava com raiva. Ela estava cuspindo as palavras — palavras maldosas, brutais
—, e eu estava escutando, tentando aceitar as palavras porque elas eram verdadeiras, eram
tecnicamente verdadeiras, tudo o que ela disse.
— Descreva os problemas para nós — pediu Boney.
— Nada específico, apenas desentendimentos. Quer dizer, Amy é uma pessoa explosiva. Ela
acumula um monte de pequenas coisas e bum! Mas então passa. Nunca fomos para a cama com
raiva.
— Nem na noite de quarta-feira? — perguntou Boney.
— Nunca — menti.
— É principalmente sobre dinheiro que vocês discutem?
— Nem sei sobre o que discutimos. Coisas aleatórias.
— Que coisa foi na noite em que ela sumiu? — indagou Gilpin com um sorriso torto, como se
tivesse pronunciado o mais inacreditável peguei você.
— Como eu disse, foi a lagosta.
— O que mais? Tenho certeza de que vocês não gritaram por causa da lagosta durante uma
hora inteira.
Naquele momento Bleecker desceu meio lance de escadas e espiou entre as grades.
— Outras coisas de casa. Coisas de casal-casado. A caixa de areia do gato — falei. — Quem
ia limpar a caixa do gato.
— Vocês estavam discutindo aos gritos por causa de uma caixa de gato — afirmou Boney.
— Sabe, o princípio da coisa. Eu trabalho muitas horas, Amy não, e acho que seria bom para
ela se fizesse alguma manutenção doméstica básica. Apenas faxina básica.
Gilpin deu um pulo, como um inválido sendo acordado de um cochilo vespertino.
— Você é um cara das antigas, certo? Eu também. Eu digo o tempo todo à minha esposa:
“Não sei passar roupa, não sei lavar pratos. Não sei cozinhar. Então, amorzinho, eu prendo os
vilões, porque isso eu sei fazer, e você joga umas roupas na máquina de lavar de tempos em
tempos.” Rhonda, você foi casada: fazia tarefas domésticas?
Boney parecia convincentemente aborrecida.
— Eu também prendo vilões, idiota.
Gilpin revirou os olhos na minha direção; quase achei que ele fosse fazer uma piada —
parece que alguém está naqueles dias — de tanto que o cara estava pegando pesado.
Gilpin coçou seu queixo vulpino.
— Então você só queria uma dona de casa — concluiu, fazendo a ideia parecer razoável.
— Eu queria... Eu queria o que Amy quisesse. Eu realmente não me importava — disse,
apelando então para Boney, a detetive Rhonda Boney, com o ar compreensivo que parecia pelo
menos em parte autêntico. (Não é, lembrei a mim mesmo.) — Amy não conseguia resolver o que
fazer aqui. Não conseguia encontrar um emprego, e não se interessava pel’O Bar. O que não é um
problema, se você quer ficar em casa, tudo bem, eu disse. Mas quando ela ficava em casa
também se sentia infeliz. E ficava esperando que eu consertasse isso. Era como se eu estivesse
encarregado da felicidade dela.
Boney não disse nada, me mostrou um rosto inexpressivo como água.
— E, quer dizer, é divertido ser o herói durante um tempo, ser o cavaleiro branco, mas isso
na verdade não funciona por muito tempo. Eu não conseguia fazê-la feliz. Ela não queria ser
feliz. Então eu achei que se ela começasse a cuidar de algumas coisas práticas...
— Como a caixa do gato — disse Boney.
— É, limpar a caixa do gato, fazer compras, chamar um bombeiro para resolver o vazamento
que a deixava louca.
— Uau, parece um plano de felicidade e tanto. Que maravilha.
— O que eu queria dizer era faça algo. Seja lá o que for, faça algo. Tire algum proveito da
situação. Não fique sentada esperando que eu resolva tudo por você.
Eu me dei conta de que estava falando alto, e soava quase irritado, certamente moralista, mas
era um grande alívio. Eu começara com uma mentira — a caixa de areia do gato — e
transformara aquilo em uma explosão surpreendente de pura verdade, e entendi por que os
criminosos falavam demais, porque é bom contar sua história a um estranho, alguém que não irá
dizer que é besteira, alguém obrigado a escutar o seu lado. (Alguém fingindo escutar o seu lado,
corrigi.)
— E a mudança para o Missouri? — perguntou Boney. — Você trouxe Amy para cá contra a
vontade dela?
— Contra a vontade dela? Não. Fizemos o que tínhamos de fazer. Eu não tinha emprego,
Amy não tinha emprego, minha mãe estava doente. Eu faria o mesmo por Amy.
— Gentil de sua parte — murmurou Boney.
E de repente ela soou exatamente como Amy: as malditas respostas quase inaudíveis ditas no
volume perfeito para que eu tivesse quase certeza de ter ouvido mas não pudesse jurar. E se eu
perguntava o que devia perguntar — O que você disse? —, ela sempre respondia a mesma coisa:
Nada. Olhei furioso para Boney, minha boca apertada, e então pensei: Talvez isso seja parte do
plano dela, ver como você age com mulheres irritadas, insatisfeitas. Tentei me obrigar a sorrir,
mas isso só pareceu lhe causar mais repulsa.
— E você pode bancar isso, Amy trabalhando, não trabalhando, tanto faz, você podia dar
conta das finanças? — indagou Gilpin.
— Tivemos alguns problemas de dinheiro recentemente — respondi. — Quando nos
casamos, Amy era rica, tipo extremamente rica.
— Certo — disse Boney —, aqueles livros da Amy Exemplar.
— É, eles fizeram uma tonelada de dinheiro nos anos oitenta e noventa. Mas a editora
cancelou a série. Disse que Amy já tinha dado o que devia dar. E tudo desmoronou. Os pais dela
tiveram de pegar dinheiro emprestado conosco para não falirem.
— Com sua esposa, você quer dizer?
— Certo, isso. E depois usamos a maior parte do restante do pecúlio de Amy para comprar o
bar, e eu tenho nos sustentado desde então.
— Então quando você se casou com Amy ela era muito rica? — perguntou Gilpin.
Confirmei com um gesto de cabeça. Estava pensando na história do herói: o marido que fica
ao lado da esposa durante a horrível decadência da situação financeira da família dela.
— Então vocês tinham um belo estilo de vida.
— É, era ótimo, era sensacional.
— E agora ela está quase falida, e você tem um estilo de vida muito diferente daquele que
tinha quando se casou. Daquele com o qual você concordou.
Eu me dei conta de que minha história estava totalmente errada.
— Porque, certo, nós examinamos suas finanças, Nick, e, caramba, elas não parecem nada
bem — começou Gilpin, quase transformando a acusação em uma preocupação, uma inquietude.
— O Bar está indo bem, até — falei. — Normalmente demora dois ou três anos para que
novos negócios saiam do vermelho.
— Foram aqueles cartões de crédito que chamaram minha atenção — comentou Boney. —
Duzentos e doze mil dólares em dívidas de cartões de crédito. Quer dizer, eu fiquei sem fôlego.
— Exibiu uma pilha de extratos vermelhos.
Meus pais eram radicais em relação a cartões de crédito — usados apenas para fins
especiais, quitados todo mês. Não compramos o que não podemos pagar. Era o lema da família
Dunne.
— Nós não... Pelo menos eu não... Mas não acho que Amy iria... Posso dar uma olhada?
Gaguejei bem no momento em que um bombardeiro voando baixo sacudiu as janelas. Uma
planta na cornija da lareira imediatamente perdeu cinco belas folhas roxas. Forçados ao silêncio
por dez segundos de sacudir o cérebro, todos assistimos às folhas flutuarem até o chão.
— Toda essa briga que deveríamos acreditar que aconteceu aqui, mas nenhuma pétala estava
no chão então — murmurou Gilpin com desgosto.
Peguei os papéis com Boney e vi meu nome, apenas meu nome, versões dele — Nick Dunne,
Lance Dunne, Lance N. Dunne, Lance Nicholas Dunne, em uma dúzia de cartões de crédito
diferentes, débitos de sessenta e dois dólares e setenta e oito centavos até quarenta e cinco mil,
seiscentos e dois dólares e trinta e três centavos, todos em diferentes graus de atraso, grandes
ameaças impressas em letras sinistras no alto: PAGUE AGORA.
— Porra! Isso é, tipo, falsidade ideológica ou algo assim! — exclamei. — Eles não são
meus. Quer dizer, olhem para algumas dessas coisas, caramba: eu nem jogo golfe.
Alguém havia pagado mais de sete mil dólares por um conjunto de tacos.
— Qualquer um pode dizer a vocês: eu realmente não jogo golfe.
Tentei fazer com que soasse modesto — mais uma coisa na qual não sou bom —, mas os
detetives não estavam caindo.
— Sabe Noelle Hawthorne? — perguntou Boney. — A amiga de Amy que você nos mandou
investigar?
— Espere, eu quero falar sobre as contas, porque elas não são minhas — interrompi. — Quer
dizer, por favor, falando sério, precisamos rastrear isto.
— Vamos rastrear, sem problemas — disse Boney, inexpressiva. — Noelle Hawthorne?
— Certo. Eu disse para vocês darem uma investigada nela porque ela tem circulado por toda
a cidade se lamentando por causa de Amy.
Boney ergueu uma sobrancelha.
— Você parece bravo com isso.
— Não, como eu disse, ela parece um pouco abalada demais, meio que de modo falso.
Ostensivo. Buscando atenção. Um pouco obsessivo.
— Conversamos com Noelle — explicou Boney. — Ela diz que sua esposa estava muito
perturbada com o casamento, chateada com a coisa do dinheiro, com medo de que você tivesse
casado com ela por causa do dinheiro. Diz que sua esposa se preocupava com seu temperamento.
— Não sei por que Noelle diria isso; não acho que ela e Amy tenham trocado mais de cinco
palavras na vida.
— Engraçado, porque a sala de estar dos Hawthorne está cheia de fotos de Noelle e sua
esposa — disse Boney, franzindo a testa.
Eu também franzi a testa: fotos reais dela e Amy?
Boney continuou:
— No zoológico de St. Louis em outubro passado, em um piquenique com os trigêmeos, em
um fim de semana de junho passeando de bote. Junho no sentido de mês passado.
— Amy nunca pronunciou o nome de Noelle durante todo o tempo que moramos aqui. Estou
falando sério.
Revirei meu cérebro pensando em junho passado e esbarrei em um fim de semana em que
viajei com Andie, dizendo a Amy que faria uma viagem com os rapazes a St. Louis. Voltei para
casa e a encontrei com bochechas rosadas e com raiva, reclamando de um fim de semana de
coisas ruins na TV a cabo e leituras tediosas no cais. E ela estivera em um passeio pelo rio?
Não. Não podia pensar em nada que interessasse menos Amy do que o típico passeio de bote do
Meio-Oeste: cerveja boiando em recipientes amarrados a canoas, música alta, jovens bêbados,
acampamentos salpicados de vômito.
— Vocês têm certeza de que era minha esposa nas fotos?
Eles trocaram olhares que diziam: ele está falando sério?
— Nick — chamou Boney. — Não temos razão para crer que a mulher nas fotos, que é
exatamente igual à sua esposa, e que Noelle Hawthorne, mãe de três filhos, melhor amiga de sua
esposa na cidade e que diz que é sua esposa, não seja sua esposa.
— A esposa com quem, devo dizer, segundo Noelle, você se casou por dinheiro —
acrescentou Gilpin.
— Não estou brincando — falei. — Atualmente qualquer um pode montar fotos em um
laptop.
— Certo, então há um minuto você tinha certeza de que Desi Collings estava envolvido, e
agora passou para Noelle Hawthorne — concluiu Gilpin. — Parece que você está mesmo
procurando alguém para culpar.
— Além de mim? Sim, estou. Olhe, não me casei com Amy por dinheiro. Vocês realmente
deveriam conversar mais com os pais dela. Eles me conhecem, conhecem meu caráter.
Eles não conhecem tudo, pensei, meu estômago dando um nó. Boney estava me observando;
ela parecia estar meio com pena de mim. Gilpin nem sequer parecia prestar atenção.
— Você aumentou o seguro de vida de sua esposa para um milhão e duzentos mil — disse
Gilpin com cansaço fingido. Até passou uma das mãos sobre o rosto comprido de maxilar
estreito.
— Foi a própria Amy quem fez isso! — expliquei rapidamente. Os policiais apenas olharam
para mim e esperaram. — Quer dizer, eu preenchi a papelada, mas a ideia foi de Amy. Ela
insistiu. Eu juro, eu não estava nem aí, mas Amy disse... Ela disse que, considerando a mudança
em sua renda, se sentia mais segura ou algo assim, ou era uma decisão de negócios inteligente.
Porra, não sei, não sei por que ela quis fazer isso. Não perguntei a ela.
— Há dois meses alguém fez uma busca em seu laptop — continuou Boney. — Corpo
flutuando no rio Mississippi. Pode explicar isso?
Respirei fundo duas vezes, nove segundos para me controlar.
— Deus do céu, foi apenas uma ideia idiota para um livro — respondi. — Eu estava pensando em escrever um livro.
— Humm — retrucou Boney.
— Olhe, o que eu acho que está acontecendo é o seguinte — comecei. — Acho que muita
gente assiste a esses noticiários em que o marido é sempre o cara horrível que mata a esposa, e
está me vendo dessa forma, e algumas coisas muito inocentes e normais estão sendo distorcidas.
Isso está se transformando em uma caça às bruxas.
— É assim que você explica essas faturas de cartão de crédito? — perguntou Gilpin.
— Eu já disse, não consigo explicar a porra das faturas de cartão de crédito porque não tenho
nada a ver com elas. É o trabalho de vocês descobrir de onde elas vieram, porra!
Eles ficaram sentados em silêncio, lado a lado, esperando.
— O que está sendo feito para encontrar minha esposa? — perguntei. — Que pistas vocês
estão seguindo, além de mim?
A casa começou a tremer, o céu foi rasgado, e pudemos ver pela janela dos fundos um jato
em disparada sobre o rio, zumbindo.
— F-10 — disse Rhonda.
— Não, pequeno demais — retrucou Gilpin. — Só pode ser um...
— É um F-10.
Boney se inclinou na minha direção, mãos entrelaçadas.
— Nosso trabalho é ter certeza de que você está cem por cento limpo, Nick. Sei que você
também quer isso. Agora, se você puder simplesmente nos ajudar com algumas complicações...
porque é o que elas são, e elas ficam nos fazendo tropeçar.
— Talvez seja a hora de eu arranjar um advogado.
Os policiais trocaram outro olhar, como se tivessem encerrado uma aposta.
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