sexta-feira, 4 de setembro de 2015

CAPÍTULO VI


Ao ouvir essas palavras, senti um arrepio percorrer todo o meu corpo, mas me
contive. Resolvi até parecer tranqüilo. Somente argumentos científicos poderiam
deter o professor Lidenbrock. Ora, havia muitos e bons contra a possibilidade de
tal viagem. Ir ao centro da Terra! Que loucura! Guardei minha dialética para o
momento oportuno e tratei de comer.
Inútil mencionar as imprecações de meu tio contra a refeição pobre, mas acabou
acatando as explicações. A boa Marthe foi libertada. Ela correu ao mercado e
abasteceu tão bem a casa que uma hora depois, já sem fome, voltei e consegui
pensar em todas as implicações da situação.
Meu tio estava quase alegre durante a refeição; soltava algumas piadinhas de
cientista que nunca são demasiadamente perigosas. Após a sobremesa, fez-me
um sinal para que o acompanhasse ao gabinete. Obedeci. Ele sentou-se numa
ponta de sua mesa de trabalho, eu na outra.
- Axel - disse-me, numa voz bastante suave-, você é um rapaz muito esperto.
Prestou-me um grande favor quando eu, extenuado, ia abandonar as pesquisas.
Para onde eu seria levado? Ninguém sabe! Nunca me esquecerei disso, meu
filho, e você terá sua parte em nossa glória.
"Vamos!", pensei, "ele está de bom humor. Está na hora de discutirmos essa glória".
- Antes de mais nada - continuou meu tio -, peço-lhe que guarde segredo de
nossa descoberta. Não faltam invejosos no mundo da ciência, e muitos deles
gostariam de fazer essa viagem, da qual só tomarão conhecimento após nosso
retorno.
- O senhor acha que o número de audaciosos é tão grande assim? - perguntei.
- Claro, quem hesitaria em conquistar tamanha celebridade?
Se esse documento fosse divulgado, todo um exército de geólogos correria para
seguir os rastros de Arne Saknussemm!
- Não estou tão certo disso, meu tio, pois nada comprova a autenticidade do
documento.
- O quê! E o livro em que o descobrimos?
- Bom, concordo que Saknussemm tenha escrito essas linhas, mas será que
realmente fez essa viagem? Quem sabe se esse documento não passa de uma
mistificação?
Quase lamentei ter pronunciado a última palavra, um tanto arriscada. O
professor franziu suas espessas sobrancelhas e temi ter comprometido o resto da
conversa. Mas não. Meu severo interlocutor esboçou uma espécie de sorriso e
respondeu:
- É o que veremos.
- Ah - balbuciei, um tanto melindrado -, permita-me esgotar a série de objeções
relativas ao documento.
- Fale, meu filho, à vontade. Dou-lhe toda a liberdade de exprimir sua opinião.
Você não é mais meu sobrinho, mas meu colega. Fale.
- Antes de mais nada, gostaria de saber o que são esses Yocul, Sneffels e
Scartaris, dos quais nunca ouvi falar.
- Nada mais simples. Por coincidência, recebi há algum tempo um mapa de meu amigo Augustos Peterman de Leipzig, que vem a calhar. Pegue o terceiro atlas
na segunda prateleira da biblioteca grande, série Z, prancha 4.
Levantei-me e, graças às indicações precisas, encontrei rapidamente o atlas.
Meu tio abriu-o e disse:
- Esse é um dos melhores mapas da Islândia, o de Handerson, e creio que
poderá resolver todas as suas dúvidas.
Debrucei-me sobre o mapa.
- Veja essa linha formada de vulcões - disse o professor - e observe que todos
têm o nome de Yocul, palavra que significa "geleira" em islandês. Sob a latitude
alta da Islândia, a maioria das erupções atravessa camadas de gelo. Daí o nome
de Yocul, comum a todos os montes ignívomos da ilha.
- Bem - respondi -, e o que é Sneffels?
Achei que ele não teria resposta a essa pergunta, no que estava enganado. Meu
tio continuou:
- Acompanhe-me pela costa ocidental da Islândia. Está vendo Rey kjavik, a
capital? Muito bem, suba pelos inúmeros fiordes dessa região corroída pelo mar e
pare um pouco abaixo do sexagésimo quinto grau de latitude. O que você vê ali?
- Uma espécie de península parecida com um osso descarnado, arrematado por
uma rótula enorme.
- É uma comparação bastante correta, meu filho; e o que há nessa rótula?
- Um monte que parece ter brotado do mar.
- É o Sneffels.
- O Sneffels?
O próprio, uma montanha de cinco mil pés de altura, uma das mais notáveis da
ilha e, com certeza, a mais célebre do mundo se a sua cratera terminar no centro
do globo.
- Mas é impossível! - exclamei, erguendo os ombros e revoltado com tal
suposição.
- Impossível? - retorquiu o professor Lidenbrock num tom severo. - Por quê?
- Porque com certeza essa cratera está obstruída por lavas, rochas
incandescentes e então...
- E se for uma cratera extinta?
- Extinta?
- Exatamente. Atualmente só há trezentos vulcões em atividade na superfície do
globo, mas há uma quantidade bem maior de vulcões extintos. Ora, inclui-se o
Sneffels nessa última categoria, e desde os tempos históricos só entrou em
erupção uma única vez, em 1219. A partir de então, foi acalmando-se e não é
mais um vulcão em atividade.
Não me era possível contestar tais afirmações; lancei-me então nas outras
dúvidas levantadas pelo documento.
- O que significa a palavra Scartaris - perguntei - e o que tem tudo isso a ver com
as calendas de julho?
Meu tio refletiu por alguns instantes. Tive um momento de esperança, mas só
um, pois logo ele me respondeu nestes termos:
- O que você chama de dúvidas, para mim são soluções, que provam os cuidados
engenhosos com os quais Saknussemm quis precisar sua descoberta. O Sneffels é
formado por muitas crateras; era, portanto, necessário indicar qual delas leva ao
centro do globo. O que fez o sábio islandês? Observou que próximo às calendas
de julho, ou seja, nos últimos dias de junho, um dos picos da montanha, o
Scartaris, projetava a sua sombra na abertura da cratera em questão e anotou o
fato em seu documento. Que indicação poderia ser mais exata? E, assim que
chegarmos ao topo do Sneffels, creio que não hesitaremos quanto à direção a
seguir.
Decididamente, meu tio tinha resposta para tudo. Percebi que seria impossível
atacá-lo com as palavras do velho pergaminho.
Parei, portanto, de atormentá-lo a esse respeito, e como era preciso, antes de
mais nada, demovê-lo da idéia da viagem, passei às objeções científicas que
achava bem mais graves.
- Tudo bem - disse -, a frase de Saknussemm é clara e não deixa qualquer
dúvida. Concordo até que o documento pareça autêntico. Esse cientista foi ao
fundo do Sneffels, viu a sombra do Scartaris acariciar as bordas da cratera antes
das calendas de julho; até ouviu lendas de seu tempo que afirmavam a cratera
dar no centro da Terra, mas que ele próprio tenha ido ao centro da Terra e
voltado, não acredito, não acredito mesmo!
- E por quê? - quis saber meu tio num tom de mofa.
- Todas as teorias da ciência demonstram que tal aventura é impraticável!
- As teorias provam isso? - respondeu o professor com um ar de benevolência. -
Ah, que teorias malvadas! Como essas teorias nos atrapalham!
Percebi que estava zombando de mim, mas assim mesmo continuei:
- Claro! Está provado que o calor aumenta em um grau a cada setenta pés de
profundidade da superfície do globo; admitindo-se essa proporcionalidade
constante, e sendo o raio terrestre de mil e quinhentas léguas', a temperatura no
centro passa de duzentos mil graus. As matérias do interior da Terra estão,
portanto, em estado de gás incandescente, pois os metais, o ouro, a platina, as
rochas mais duras, não resistem a tamanho calor. Tenho então motivos para
questionar a possibilidade de penetrar-se em tal ambiente!
- Então o seu problema é o calor, Axel?
- Claro, chegando a uma profundidade de apenas dez léguas, já teríamos
alcançado o limite da crosta terrestre, e a temperatura já seria superior a mil e
trezentos graus.
- E você tem medo de entrar em fusão?
- Cabe ao senhor resolver esse problema - respondi com humor.
- Resolvo da seguinte forma - replicou o professor Lidenbrock, assumindo ares de
grande sábio : nem você, nem ninguém tem certeza do que acontece no interior
do globo, já que se conhece apenas doze milésimos de seu raio; a ciência é
eminentemente perfectível e cada nova teoria destrói uma velha. Não se
acreditou até Fourier que a temperatura dos espaços planetários diminuía todo o
tempo, e hoje está provado que a temperatura das regiões etéreas não ultrapassa
quarenta ou cinqüenta graus abaixo de zero? Por que não aconteceria o mesmo
com o calor interno? Por que, numa determinada profundidade, não atingiria um
limite intransponível em vez de aumentar até o grau de fusão dos minerais mais
refratários?
Como meu tio colocou a questão no campo das hipóteses, não tive o que responder.
- Muito bem, digo-lhe que verdadeiros sábios, entre outros, Poisson, provaram
que, se existisse um calor de duzentos mil graus no interior do globo, o gás
incandescente das matérias fundidas adquiriria tamanha elasticidade que a crosta
terrestre não resistiria e estouraria como as paredes de uma caldeira sob a
pressão do vapor.
- É apenas a opinião de Poisson, meu tio...
- Está certo, mas outros geólogos célebres também acreditam que o interior do
globo não é formado nem de gases, nem de água, nem das pedras mais pesadas
que conhecemos, pois, nesse caso, o peso da Terra seria duas vezes menor.
- Ora, com números podemos provar tudo o que quisermos!
- E com fatos não? O número dos vulcões não diminuiu consideravelmente desde
os primeiros dias do mundo numa proporção constante? E se é que existe esse
calor central, será que não tende a diminuir?
- Meu tio, se o senhor entrar no campo das suposições, não teremos mais como discutir.
- Mas eu digo que gente muito competente é da mesma opinião que eu.
Lembrase de quando o célebre químico inglês Humphry Davy me visitou em
1825?
- Não posso lembrar, só nasci dezenove anos depois.
- Bem, Humphry Davy veio me visitar quando passou por Hamburgo. Ficamos
conversando por um bom tempo e, entre outros problemas, discutimos a hipótese
da liquidez do interior da Terra. Ambos concordávamos que essa liquidez não
podia existir por uma razão que a ciência nunca conseguiu encontrar.
- Qual?
- Essa massa líquida estaria sujeita, como o oceano, à atração da Lua, e,
conseqüentemente, duas vezes por dia existiriam marés internas que, ao
erguerem a crosta terrestre, provocariam terremotos periódicos!
-É, no entanto, certo que a superfície do globo foi submetida à combustão, e
é possível supor que a crosta exterior resfriou antes, enquanto o calor se refugiou
no centro.
- Errado - respondeu meu tio; - a Terra foi aquecida pela combustão de sua
superfície e não por qualquer outro meio.
Sua superfície era composta de uma grande quantidade de metais, como o
potássio e o sódio, que têm a propriedade de incendiar-se apenas ao contato com
a terra e a água; esses metais pegaram fogo quando os vapores atmosféricos precipitaram-se como chuva no solo; pouco a pouco, quando as águas
penetraram nas fissuras da crosta terrestre, determinaram novos incêndios com explosões e erupções. Daí os inúmeros vulcões dos primeiros dias do mundo.
- Que hipótese engenhosa! - Exclamei um pouco contra a minha vontade.
- Que Humphry Davy comprovou, aqui mesmo com uma experiência muito
simples. Fez uma bola metálica, que representava nosso globo, com os metais
que acabei de falar: quando vertíamos um pouco de orvalho em sua superfície,
ela se dilatava, oxidava e formava uma pequena montanha, com uma cratera
em cima; ocorria uma erupção que transmitia à bola inteira tanto calor que se
tornava impossível segurá-la com as mãos.
Eu estava começando a convencer-me com os argumentos do professor,
temperados, aliás, por seu ardor e entusiasmo habituais.
- Como você vê, Axel - acrescentou -, o estado do núcleo central inspirou muitas
hipóteses aos geólogos; nada menos comprovado que o calor interno; eu acho que
não existe, nem poderia; é o que veremos, e, como Arne Saknussemm,
saberemos em que nos basear a respeito desse grande problema.
- É claro - respondi, sentindo-me atingido pelo entusiasmo - veremos se
enxergarmos...
- Por que não enxergaríamos? Podemos contar com fenômenos elétricos para
iluminar nosso caminho e até com a atmosfera que sua pressão pode tornar
luminosa à aproximação do centro.
- Claro, Claro! - concordei - Afinal, isso bem pode ser possível.
- É mais do que certo! - respondeu triunfalmente meu tio.
- Mas silêncio, entendeu? Silêncio sobre tudo isso para que ninguém tenha a idéia
de descobrir o centro da Terra antes de nós
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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