Ainda hoje, quando dela me lembro, o coração salta em meu peito. A partir
daquele momento, nossa razão, nosso julgamento e nossa engenhosidade
perderam qualquer autoridade e transformamo-nos em joguetes dos fenômenos
da Terra.
Às seis horas, estávamos de pé. Aproximava-se o momento de, com a pólvora,
abrirmos caminho através da crosta de granito. Solicitei a honra de atear fogo
à mina. Feito isso, deveria unir-me a meus companheiros na jangada, que não
descarregáramos; singraríamos para não sofrer os perigos da explosão, cujos
efeitos poderiam não se concentrar no interior do maciço. De acordo com nossos
cálculos, a mecha deveria arder por dez minutos antes de incendiar a câmara de
explosivo. Dispunha, portanto, do tempo necessário para alcançar a jangada.
Preparava-me para fazer meu trabalho, não sem uma certa emoção. Após uma
rápida refeição, meu tio e o caçador embarcaram, enquanto eu ficava na praia.
Eu levava uma lanterna acesa, que me serviria para atear fogo à mecha.
- Vá, meu filho - disse-me meu tio -, mas volte imediatamente.
- Pode ficar tranqüilo - respondi -, não me distrairei no caminho.
Dirigi-me para o orifício da galeria. Acendi minha lanterna e peguei a
extremidade da mecha.
O professor mantinha o cronômetro na mão.
- Você está pronto? - gritou-me.
- Estou.
- Então, fogo, meu rapaz!
Mergulhei rapidamente a mecha na chama, que faiscou com o contato, e voltei
correndo à beira do mar.
- Embarque - apressou-me meu tio - e larguemos.
Com um impulso vigoroso, Hans nos levou para o mar. A jangada afastou-se
umas vinte toesas. Era um momento palpitante. O professor seguia com os olhos
a agulha do cronômetro.
- Ainda cinco minutos - dizia. - Ainda quatro! Ainda três! Meu pulso marcava os
meios segundos.
- Ainda dois! Um!... Desabem, montanhas de granito!
O que aconteceu então? Acho que não ouvi o ruído da detonação. Mas vi a forma
dos rochedos modificar-se de repente; abriram-se como uma cortina. Vi cavarse
em plena praia um abismo insondável. Sofrendo uma vertigem, o mar não
passou de uma vaga enorme, em cujo dorso a jangada ergueu-se
perpendicularmente. Nós três fomos derrubados. Em menos de um segundo, a
escuridão tomou o lugar da luz. Senti a falta de um apoio sólido, não para meus
pés, mas para a jangada. Achei que estávamos naufragando. Não era nada disso.
Quis dirigir-me a meu tio, mas o mugido das águas impediria que o professor me
ouvisse. Apesar das trevas, do barulho, da surpresa e da emoção, compreendi o
que acontecera. Atrás da rocha que acabara de explodir existia um abismo. A
explosão provocara uma espécie de tremor de terra naquele solo sulcado de
fissuras, abrira-se um abismo, e o mar, transformado em torrente, arrastava-nos
com ele.
Senti que estava perdido. Uma hora, duas horas, sei lá! passaram-se assim.
Agarrávamo-nos pelos cotovelos, pelas mãos, para não ser jogados para fora da
jangada. Quando a embarcação batia nas muralhas, aconteciam choques de
extrema violência. Os choques, porém, eram raros, daí eu concluir que a galeria
se alargava consideravelmente. Tratava-se, com certeza, do caminho de
Saknussemm; mas, em vez de descermos só nós, por ele, tínhamos. com nossa
imprudência, arrastado todo o mar.
É possível compreender que essas idéias se apresentavam de forma vaga e
obscura. Associava-as com dificuldade durante aquela corrida vertiginosa, que
mais parecia uma queda. Pelo ar que me fustigava o rosto, a velocidade devia
ultrapassar a dos trens mais rápidos. Era, portanto, impossível acender uma tocha
naquelas condições, e nosso último aparelho elétrico quebrara-se no momento da
explosão.
Qual a minha surpresa então ao ver uma luz brilhar de repente perto de mim. A
figura calma de Hans iluminou-se. O hábil caçador conseguira acender a
lanterna, e embora a chama vacilasse a ponto de quase apagar-se, lançou alguns
clarões na aterrorizante escuridão.
A galeria era ampla. Estava certo em minha avaliação. A insuficiência de luz
não nos permitia ver suas duas muralhas ao mesmo tempo. A inclinação das
águas que nos levava ultrapassava a das correntezas mais intransponíveis da
América. Sua superfície parecia feita de um feixe de flechas líquidas disparadas
com muita força. Impossível transmitir minha impressão por uma comparação
mais correta. Passando certos redemoinhos, por vezes a jangada corria girando.
Quando se aproximava das paredes da galeria, eu nelas projetava a luz da
lanterna e conseguia avaliar a velocidade da embarcação vendo as saliências das
rochas transformarem-se em traços contínuos, de forma que parecíamos encerrados numa rede de linhas moventes. Estimava nossa velocidade em trinta
léguas por hora.
Eu e meu tio trocávamos olhares desvairados, agarrados ao resto do mastro, que
no momento da catástrofe quebrara-se. Dávamos as costas para o mar, para não
ser sufocados pela rapidez de um movimento que nenhuma força humana
poderia deter.
As horas passavam. A situação não mudava, mas um incidente veio complicá-la.
Ao tentarmos colocar o carregamento em ordem, vi que a maioria dos objetos
embarcados desaparecera no momento da explosão, quando o mar nos assaltou
tão violentamente. Quis saber exatamente com que recursos contar, e, lanterna
na mão, comecei a examinar. De nossos instrumentos, só restavam a bússola e o
cronômetro. As escadas e as cordas reduziam-se a um pedaço de cabo enrolado
ao redor do mastro. Nenhuma pá, nenhuma picareta, nenhum martelo e,
desgraça irreparável, só tínhamos víveres para mais um dia.
Perscrutei os interstícios da jangada, todos os cantinhos formados pelas vigas e
junção de pranchas. Nada! Nossas provisões consistiam unicamente em um
pedaço de carne-seca e uns biscoitos. Olhava com um ar de estupidez! Não
queria compreender E, no entanto, com que perigo estava me preocupando?
Mesmo que os víveres fossem suficientes para meses, anos, como sair dos
abismos para onde aquela torrente irresistível nos arrastava? Para que temer as
torturas da fome, quando a morte já se oferecia sob tantas outras formas? Será
que teríamos tempo para morrer de inanição?
Contudo, por uma inexplicável estranheza da imaginação, esquecia-me do perigo
imediato, e as ameaças do futuro apareciam diante de mim com todo o seu
horror. Além disso, talvez pudéssemos escapar dos furores da torrente e voltar
à superfície do globo. Como? Não sei. Onde? Que importância teria? Uma
chance em mil é sempre uma chance, enquanto a morte por fome não nos
deixava qualquer tipo de esperança, por menor que fosse.
Pensei em dizer tudo ao meu tio, em mostrar-lhe a que penúria estávamos
reduzidos e em fazer o cálculo exato do tempo de vida que nos restava. Mas tive
coragem para calar-me. Queria que ele mantivesse todo o seu sangue-frio.
Naquele momento, a luz da lanterna diminuiu gradualmente até apagar-se por
completo. A mecha ardera até o fim. A escuridão voltou a ser absoluta. Não era
o caso de pensar em dissipar as trevas impenetráveis. Restava ainda uma tocha,
mas não conseguiríamos mantê-la acesa. Então, como uma criança, fechei os
olhos para não ver toda aquela escuridão.
Após um espaço de tempo bastante longo, a velocidade de nossa corrida
duplicou, fato que pude perceber pela reverberação do ar em meu rosto. A
inclinação das águas tornava-se excessiva.
Acho que não mais escorregávamos, caíamos. A impressão era a de uma queda
praticamente vertical. As mãos de Hans e de meu tio, agarradas a meus braços,
detinham-me com vigor.
De repente, após um tempo impossível de avaliar, senti como que um choque; a
jangada não batera num corpo duro, mas fora subitamente detida em sua queda.
Uma tromba d'água, uma imensa coluna líquida desabou sobre sua superfície.
Senti-me sufocado. Estava me afogando... No entanto, a inundação súbita não
durou muito. Em alguns segundos, senti que voltava ao ar livre, que inspirei a
plenos pulmões. Meu tio e Hans apertavam-me o braço a ponto de quase
quebrálo e ainda estávamos os três na jangada
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