quinta-feira, 8 de outubro de 2015

CAPÍTULO XVIII


Às oito horas da manhã, fomos acordados por um raio de luz. As mil facetas da
lava das paredes recolhiam-no à sua passagem e distribuíam-no como uma
chuva de faíscas. A claridade era forte o suficiente para que distinguíssemos os
objetos que nos rodeavam.
- Então, Axel, o que você me diz de tudo isso? - exclamou meu tio, esfregando as
mãos. - Você já passou uma noite tão tranqüila assim em nossa casa da
Königstrasse? Nada de barulho de charretes, nada de gritos dos comerciantes
nem vociferações dos barqueiros!
- É verdade que tudo está bem calmo no fundo desse poço, mas essa calma tem
algo de assustador.
- Vamos - gritou meu tio -, guarde seu medo para mais tarde. Só penetramos
uma polegada nas entranhas da terra!
- O que o senhor quer dizer com isso?
- Que alcançamos apenas o solo da ilha. Esse longo tubo vertical que dá na
cratera do Sneffels termina mais ou menos no nível do mar.
- O senhor tem certeza?
- Absoluta. Consulte o barômetro.
De fato, após ter voltado a subir no instrumento à medida que descíamos, o
mercúrio parara em vinte e nove polegadas.
- Como você vê - continuou o professor -, só temos ainda a pressão de uma
atmosfera, e estou impaciente para que o manômetro substitua o barômetro.
O instrumento iria tornar-se realmente inútil assim que o peso do ar ultrapassasse
sua pressão, calculada no nível do oceano.
- Mas essa pressão sempre crescente não pode se tornar penosa?
- Não. Estamos descendo lentamente, e nossos pulmões irão acostumar-se a
respirar uma atmosfera mais comprimida. Falta ar aos aeronautas que sobem
alto demais nas camadas superiores. Nós teremos provavelmente ar demais.
Prefiro assim. Não percamos mais tempo. Onde está o pacote que nos precedeu?
Lembrei-me então que o procuráramos em vão na véspera à noite. Meu tio fez a
mesma pergunta a Hans, que, após ter perscrutado com seus olhos de caçador,
respondeu:
- Der huppe!
- Lá em cima.
De fato, o pacote ficara pendurado numa saliência de rocha, cerca de cem pés
acima de nós. Imediatamente o ágil islandês subiu até lá como um gato. e em
poucos minutos o pacote estava ao nosso lado.
- Agora - disse meu tio - comamos, mas comamos como pessoas que podem ter
uma longa jornada pela frente.
O biscoito e a carne seca foram regados com alguns goles de água com genebra.
Terminada a refeição, meu tio tirou do bolso um bloco destinado às observações;
pegou sucessivamente seus vários instrumentos e anotou os seguintes dados:
Segunda-feira, 1º de julho
Cronômetro: 8hr7min da manhã
Barômetro: 29 p. 7 l.
Termômetro: 6"
Direção: L-S-L
A última observação concernia à galeria obscura e foi indicada pela bússola.
- Agora, Axel - exclamou o professor com entusiasmo -, vamos embrenhar-nos
de verdade nas entranhas do globo. É nesse preciso momento que nossa viagem
vai começar.
Com essas palavras, meu tio pegou com uma mão o aparelho de Ruhmkorff
pendurado em seu pescoço; com a outra, provocou o contato da corrente elétrica
com a serpentina da lanterna, e uma luz bastante viva dissipou as trevas da
galeria.
Hans carregava o segundo aparelho, igualmente ativado. Essa aplicação
engenhosa da eletricidade permitia-nos caminhar por muito tempo, criando um
dia artificial, mesmo no meio dos gases mais inflamáveis.
- Em frente! - ordenou meu tio.
Cada um de nós pegou seu fardo. Hans encarregou-se de empurrar o pacote com
as cordas e as roupas. Entramos na galeria, eu em terceiro lugar. No momento
de submergir naquele corredor estreito, ergui a cabeça e vi, pela última vez, no
final do tubo imenso, o céu da Islândia "que jamais voltaria a ver". Na última
erupção de 1229, a lava abrira um caminho para si por aquele túnel. Revestia o
seu interior com um verniz espesso e brilhante, onde a luz elétrica se refletia,
tornando-se cem vezes mais intensa.
O problema do percurso consistia em não escorregar depressa demais por uma
vertente com inclinação de mais ou menos quarenta e cinco graus; felizmente
algumas erosões, alguns inchaços faziam as vezes de degraus, e nós só tínhamos
de descer, deixando nossas bagagens, amarradas a uma longa corda, caírem.
Mas aquilo que formava degraus para nossos pés, tornava-se estalactite nas
outras paredes. Porosa em alguns sítios, a lava apresentava pequenas ampolas
arredondadas: cristais de quartzo opacos, enfeitados por límpidas gotas de vidro e
suspensos na abóbada como lustres, pareciam acender-se quando passávamos.
Era como se os espíritos do abismo estivessem iluminando seu palácio para
receber os hóspedes da terra.
- É maravilhoso! - gritei involuntariamente. - Meu tio, que espetáculo! Veja os
matizes da lava, que vão do vermelho amarronzado ao amarelo-brilhante através
de graduações insensíveis! E esses cristais que parecem globos luminosos!
- Ah, finalmente você está entrando no espírito da expedição! - respondeu meu
tio.
- Se você já acha isso maravilhoso, imagine o resto! Vamos, vamos!
Deveria ter dito "escorreguemos", pois largávamos nossos corpos pelas vertentes
inclinadas. Era a Facilis descensus Averni de Virgílio. A bússola, que eu
consultava com freqüência, indicava a direção sudeste com um rigor
imperturbável. Aquela corrente de lava não obliquava nem numa direção nem
noutra. Tinha a inflexibilidade da linha reta.
Entretanto, o calor não aumentara de maneira sensível. O que dava razão às
teorias de Davy , e por mais de uma vez consultei o termômetro com surpresa.
Duas horas depois da partida, continuava marcando dez graus, ou seja, um
aumento de quatro graus, o que me autorizava a pensar que nossa descida era
mais horizontal do que vertical. Quanto a saber exatamente a nossa profundidade,
nada mais fácil, o professor media exatamente os ângulos de desvio e de
inclinação do percurso, mas guardava para si o resultado de suas observações.
Por volta de oito horas da noite, mandou que parássemos. Hans sentou-se
imediatamente.
Penduramos as lâmpadas numa saliência de lava. Estávamos numa espécie de
caverna onde não faltava ar. Muito pelo contrário.
Éramos atingidos por certos sopros. O que os produzia? A que agitação
atmosférica atribuir sua origem? Era um problema que não tentava resolver
naquele momento. A fome e o cansaço tornavam-me incapaz de raciocinar. Não
é possível descer por sete horas consecutivas sem gastar energia. Eu estava
exausto. Foi com grande prazer, portanto, que ouvi a ordem de parada. Hans
espalhou algumas provisões sobre um bloco de lava, e todos comemos com
apetite. Havia algo que me preocupava: já consumíramos metade de nossa
reserva de água. Meu tio contava reabastecer-se nas nascentes subterrâneas, mas
até então não havíamos encontrado nenhuma. Não consegui evitar chamar sua
atenção para o problema.
- Essa ausência de nascentes o surpreende? - disse ele.
- Claro, e até me preocupa. Só temos água para mais cinco dias.
- Fique tranqüilo, Axel, garanto-lhe que encontraremos água e muito mais do que
necessitamos.
- Quando?
- Assim que saírmos desse invólucro de lava. Como você quer que as nascentes
jorrem através dessas paredes?
- E se essa corrente se prolongar por muito tempo? Parece que ainda não
descemos muito na vertical.
- Por que essa suspeita?
- Porque, se tivéssemos avançado bastante para dentro da crosta terrestre o calor
seria mais forte.
- Segundo a sua opinião - respondeu meu tio. - Qual a temperatura que o
termômetro está indicando?
- Apenas quinze graus, o que indica que a temperatura só aumentou nove graus
desde a nossa partida.
- Conclua.
- Eis a minha conclusão. De acordo com as observações mais precisas, a
temperatura aumenta um grau a cada cem pés no interior do globo. Mas algumas
condições de localidade podem modificar esses números. Assim, em Iacusca, na
Sibéria, observou-se que a temperatura aumentava um grau a cada trinta e seis
pés. É claro que essa diferença depende da condutibilidade das rochas.
Acrescentaria também que, nas proximidades de um vulcão extinto e através do
gnaisse, observou-se que a temperatura aumentava apenas um grau a cada cento
e vinte e cinco pés.
Tomemos, portanto, essa última hipótese, que é a mais favorável, e façamos
nossos cálculos.
- Calcule, meu filho.
- Nada mais fácil - disse, dispondo os números em meu caderninho: - nove vezes
cento e vinte e cinco pés dá mil cento e vinte e cinco pés de profundidade.
- Corretíssimo.
- E então?
- Então que, segundo minhas observações, já estamos a dez mil pés abaixo do
nível do mar.
- Seria possível?
- Claro, ou os números não são mais números!
Os cálculos do professor estavam corretos. Já ultrapassáramos em seis mil pés as
maiores profundezas alcançadas pelo homem, como as minas de Kitz-Bahl, no
Tirol, e as de Württemberg, na Boêmia. A temperatura, que deveria ser de
oitenta e um graus naquele lugar, era de apenas quinze. O que provocava
reflexões.
XIX
No dia seguinte, terça-feira, 30 de junho, recomeçamos a descer.
Continuávamos a seguir a galeria de lava, verdadeira rampa natural, suave como
os planos inclinados que ainda substituem as escadas nas velhas casas. Isso até
meio-dia e dezessete, instante preciso em que nos reunimos a Hans, que acabara
de parar.
- Ah! - exclamou meu tio. - Chegamos à extremidade da chaminé.
Olhei ao meu redor. Estávamos no centro de uma encruzilhada, onde
terminavam dois caminhos, ambos escuros e estreitos. Por qual deveríamos
seguir? Era difícil resolver. Meu tio, entretanto, não quis parecer hesitante diante
de mim ou do guia; designou o túnel do leste, e logo estávamos os três dentro
dele.
Além disso, qualquer hesitação diante dos dois caminhos teria se prolongado
indefinidamente, pois nenhum indício poderia determinar a opção por um ou por
outro. Tínhamos de colocar-nos nas mãos do acaso.
A inclinação da nova galeria era pouco sensível, e seu perfil bastante desigual.
Por vezes, uma sucessão de arcos de abóbada desenvolvia-se diante de nós como
nas naves de uma catedral gótica. Os artistas da Idade Média teriam podido
estudar ali todas as formas daquela arquitetura religiosa cujo gerador é a ogiva.
Um pouco além, tivemos de nos inclinar para atravessar os arcos rebaixados de
estilo romano, e grandes pilares encastrados no maciço dobravam-se sobre o
assento das abóbadas. Em certos trechos, essa disposição era substituída por
substrucções baixas, que pareciam obras de castores, e rastejávamos por
passagens estreitas. O calor era suportável. Involuntariamente pensava em sua
intensidade quando as lavas vomitadas pelo Sneffels precipitavam-se por aquele
caminho hoje tão tranqüilo. Imaginava as torrentes de fogo quebradas pelos
ângulos da galeria e o acúmulo de vapores superaquecidos naquele ambiente tão
estreito!
"Contanto que o velho vulcão não resolva se recuperar", pensava.
Não comuniquei minhas reflexões ao tio Lidenbrock, que não as compreenderia.
Seu único pensamento era seguir em frente. Caminhava, escorregava e
até descambava, com a convicção de que, afinal de contas, era melhor admirar.
Às seis da tarde, após um passeio um tanto extenuante, havíamos percorrido mais
duas milhas para o sul, mas só descêramos um quarto de légua em profundidade.
Meu tio deu o sinal de descanso, comemos sem conversar muito, e dormimos
sem pensar demais.
Nossas disposições para a noite eram bem simples; um cobertor de viagem, no
qual nos enrolávamos, era toda a nossa roupa de cama. Não tínhamos por que
temer o frio ou visitas inoportunas. Os viajantes que se embrenham pelos
desertos da África, ou pelas florestas do Novo Mundo, são obrigados a montar
guarda durante as horas de sono. Aqui, solidão absoluta e segurança completa.
Não precisávamos ter medo de nenhuma raça malfeitora, selvagem ou de
animais ferozes.
No dia seguinte, acordamos restabelecidos e dispostos. Continuamos a andar.
Seguíamos por um caminho de lava como na véspera. Impossível reconhecer a
natureza dos terrenos que atravessava. Em vez de penetrar nas entranhas do
globo, o túnel tendia a ficar completamente horizontal. Achei que estávamos
voltando para a superfície da terra. Essa disposição tornou-se tão manifesta por
volta das dez da manhã, e, conseqüentemente tão cansativa, que fui obrigado a
moderar nossa marcha.
- O que houve, Axel? - perguntou o professor, impaciente.
- Acontece que não agüento mais - respondi.
- O quê! Depois de três horas de passeio num caminho tão fácil!
- Não estou dizendo que não é fácil, mas é extenuante.
- Como! Estamos descendo!
- Se o senhor me permite, estamos subindo!
- Subindo! - resmungou meu tio dando de ombros.
- É claro! Faz uma meia hora que as inclinações se modificaram, e se
continuarem assim, com certeza voltaremos à terra da Islândia.
O professor abanou a cabeça como alguém que não quer ser convencido. Tentei
reencetar a conversa. Ele não me respondeu e deu o sinal de partida. Reparei que
seu silêncio não passava de mau humor concentrado.
Peguei meu fardo com coragem e segui com rapidez atrás de Hans, que
precedia meu tio. Fazia questão de não me afastar.
Minha grande preocupação era não perder meus companheiros de vista. Tremia
ao pensamento de extraviar-me nas profundezas daquele labirinto. Além disso,
embora o caminho ascendente se tornasse mais penoso, consolavame pensar que
me aproximava da superfície da terra. Era uma esperança. Cada passada
confirmava-o, e gozava antecipadamente a idéia de rever minha pequena
Grauben.
Ao meio-dia, as paredes da galeria mudaram de aspecto, o que percebi pelo
enfraquecimento da luz elétrica refletida nas muralhas. A rocha viva substituía o
revestimento de lava. O maciço era composto de camadas inclinadas,
geralmente dispostas na vertical. Estávamos em plena época de transição, em
pleno período siluriano.
- É evidente - exclamei - que os sedimentos das águas formaram, na segunda era
da Terra, esses xistos, esses calcários e esses grés!
Estamos deixando o maciço granítico! Parecemos com as pessoas de Hamburgo
que pegam a estrada de Hanôver para ir a Liebeck! Devia ter guardado essas
observações para mim. Mas meu temperamento de geólogo foi maior que a
prudência, e o tio Lidenbrock ouviu minhas exclamações.
- O que há com você? - perguntou.
- Veja! - respondi, mostrando-lhe a sucessão variada de grés, calcários e os
primeiros vestígios dos terrenos cobertos de ardósia.
- E daí?
- Acabamos de chegar ao período em que apareceram as primeiras plantas e os
primeiros animais!
- Ah, você acha?
- Mas olhe, examine, observe!
Obriguei o professor a passear sua lanterna pelas paredes da galeria. Esperava
que exclamasse algo. Mas ele nada disse e continuou a andar. Será que me
entendera? Será que não queria concordar por amor-próprio de tio e cientista que
errara ao optar pelo túnel do leste, ou insistia em reconhecer aquela passagem
até o fim? Era evidente que abandonáramos a rota das lavas e que aquele
caminho não nos levaria ao centro do Sneffels.
No entanto, perguntava-me se não estava dando importância demais
à modificação dos terrenos. Não estava enganando a mim mesmo? Será que
estávamos realmente atravessando as camadas de rocha sobrepostas ao maciço
granítico?
"Se eu tiver razão", pensava, "tenho de encontrar algum vestígio de planta
primitiva; e então ele terá de dar o braço a torcer. Vou procurar".
Não andara nem cem passos quando encontrei provas incontestáveis. Era isso
mesmo, pois, na época siluriana, os mares abrigavam mais de mil e quinhentas
espécies vegetais ou animais.
Acostumados com o solo duro das lavas, meus pés pisaram de repente numa
poeira composta de restos de plantas e conchas.
Nas paredes, distinguiam-se claramente marcas de algas e licopódios. Não
enganariam o professor Lidenbrock. Mas acho que ele não queria ver e
prosseguia num passo invariável.
Era teimosia demais. Não consegui mais me conter. Peguei uma concha em
perfeito estado, que provavelmente pertencera a um animal semelhante ao
bichode-conta atual, fui até meu tio e disse:
- Veja!
- O que é que tem? - respondeu tranqüilamente. - É a concha de um crustáceo da
ordem desaparecida dos trilobites.
Nada além disso.
- Mas o senhor não conclui que...
- O mesmo que você? Claro. Sem dúvida. Abandonamos a camada de granito e o
caminho das lavas. É possível que eu tenha me enganado. Mas só terei certeza do
meu erro quando chegarmos ao final desta galeria.
- O senhor tem razão em agir dessa forma, meu tio, e eu não hesitaria em
aproválo se não tivéssemos de temer um perigo cada vez mais ameaçador.
- Qual?
- A falta de água.
- Muito bem. Racionaremos, Axel.

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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