Minha mão foi até a parte de trás de minha cabeça e tenho certeza de que senti o chip sob a pele.
Mas é claro que não o senti; ele estava instalado bem abaixo da placa de metal. Era apenas o
tecido cicatrizado após a cirurgia, impiedoso e duro.
Tentei não tocá-lo, no entanto, isso havia se tornado uma obsessão, como cutucar uma farpa
enfiada na pele da palma da mão ou tentar arrancar uma unha lascada. Aquilo me assombrava o
tempo todo, até aqui, preparando sanduíches na cozinha. Na cozinha de Helena.
Embora ela estivesse morta e houvesse deixado sua mansão para mim, eu lembrava, dia após
dia, que tudo era dela. Todas as escolhas, desde os azulejos verde-mar à elaborada ilha no centro
da cozinha gourmet, eram dela. Até a governanta, Eugenia, havia sido governanta dela.
Sim, foi Helena quem bolou o plano maluco para deter o Velho, usando meu corpo para
assassinar o senador Harrison. Tenho que dizer que me ofereci como voluntária para doar meu
corpo. A culpa foi minha. Na época, eu estava desesperada para salvar meu irmão mais novo,
Tyler. Agora eu não podia mais voltar no tempo, nem me livrar desse chip horrível instalado em
minha cabeça. Como eu odiava essa coisa! Era como um telefone no qual o Velho poderia me
ligar a qualquer momento. Era a linha direta entre ele e eu, Callie Woodland.
A última vez que o ouvi foi há dois dias, enquanto observava sua preciosa Prime Destinations
ser demolida. Sua voz se parecia com a de meu pai, e ele até usava as mesmas palavras de
código: Quando os gaviões gritam, é hora de voar. Desde aquele dia, não consigo parar de pensar
nisso. Porém ao ficar em frente ao balcão da cozinha, espalhando a última porção de manteiga
de amendoim no pão integral, decidi que o Velho só queria brincar comigo. Uma brincadeira
cruel, é claro, mas não era surpresa, vindo daquele monstro.
— Terminou? — perguntou Eugenia.
Sua voz encarquilhada de Ender cortou meus pensamentos. Não a ouvi se aproximar. Há
quanto tempo ela estaria me observando? Virei-me para encarar o olhar de reprovação que ela
trazia no rosto enrugado. Se essa fosse a minha vida de conto de fadas, e este fosse o castelo, ela
seria a madrasta feia.
— Por hoje é só. Você está acabando com o estoque de minha despensa.
Não era verdade. Havia preparado várias dúzias de sanduíches, mas nossa despensa poderia
nos alimentar por um mês. Coloquei o último sanduíche na máquina de embalagens a vácuo, e o
filme plástico envolveu o pão instantaneamente com um zip estridente.
— Pronto — eu disse, jogando o sanduíche dentro de uma bolsa de viagem.
Eugenia não esperou eu sair para começar a limpar o balcão. Ficou claro que eu arruinara seu
dia.
— Não podemos alimentar o mundo inteiro — reclamou ela, esfregando manchas invisíveis.
— É claro que não. — Fechei o zíper da bolsa de viagem e a coloquei no ombro. — Apenas
alguns Starters famintos.
Enquanto colocava a bolsa de viagem no porta-malas do carro esporte azul, o olhar de
reprovação de Eugenia permanecia em minha memória. Como meus pais estavam mortos, a
lógica seria que ela fosse mais gentil comigo. Mas, não sei por quê, ela me culpava pela morte de
Helena. Não foi minha culpa. Na verdade, Helena quase fez com que eu fosse morta. Fechei o
porta-malas com força. Eugenia só continuou na casa porque adorava Ty ler. Tudo bem, eu não
precisava dar satisfações a ela. Ela não era minha guardiã.
Minha mão foi até a parte de trás da cabeça, cocei outra vez a cicatriz de meu chip até me dar
conta do que estava fazendo. Quando olhei para os meus dedos, as unhas estavam sujas de
sangue. Soltei um gemido.
Tirei um lenço de papel da bolsa de viagem e limpei os dedos. Em seguida, saí pela porta da
garagem que levava ao jardim. Pedras cobertas de musgo, úmidas do orvalho da manhã,
levavam até a casa de hóspedes coberta por roseiras. O lugar estava tranquilo, não havia
movimentação por detrás das janelas. Bati na porta para ver se ele havia voltado, mas não obtive
resposta.
A maçaneta girou com um rangido. Coloquei a cabeça para dentro da porta.
— Michael?
Eu não entrava na casa dele desde que nos mudamos para a mansão. O lugar estava com o
cheiro de Michael, uma mistura de tintas e madeira recém-cortada. Até quando morávamos em
prédios abandonados, ele sempre deu um jeito de cheirar bem.
Entretanto, o que realmente identificava que o lugar pertencia a Michael eram seus desenhos
maravilhosos que cobriam as paredes. O primeiro mostrava Starters esquálidos, com olhos
famintos e assustados. Vestiam camadas de roupas esfarrapadas, com garrafas de água presas
ao corpo e lanternas de pulso presas em seus braços.
Na imagem seguinte, três Starters brigavam por uma maçã. Um deles estava deitado no chão,
machucado. Essa era a minha vida alguns meses atrás. O próximo desenho era ainda mais difícil
de olhar.
Minha amiga Sara. Uma Starter que tive a esperança de resgatar. Falei sobre ela a Michael e o
tempo que passamos juntas na Instituição 37, o lugar que parecia ter sido criado dentro de um
pesadelo, onde os inspetores me trancafiaram com outros Starters sem família. O desenho
mostrava Sara após desviar a atenção dos inspetores, que estava focada em mim, agarrando-se à
cerca de arame farpado antes de morrer. Michael nunca chegou a conhecê-la, mas, como a
maioria dos Starters que morava nas ruas, estava familiarizado com o desespero e a coragem.
Ele retratou o sacrifício incondicional nos olhos dela.
Esse desenho ficou borrado no meu campo visual. Eu nunca encontraria uma amiga tão leal
quanto Sara, mesmo se vivesse um milhão de anos. Ela me deu tudo e eu a decepcionei.
Foi minha culpa.
Alguém entrou na casa de hóspedes. Virei o rosto e vi que era Tyler.
— Cara de macaco! — gritou ele.
Enxuguei os olhos rapidamente. Ele veio correndo até onde eu estava e colocou os braços ao
redor de minhas pernas. Michael estava atrás dele, sob o batente da porta, sorrindo. Em seguida,
fechou a porta e colocou sua bolsa de viagem no chão.
— Você voltou! — Olhei para Michael.
Ele afastou o cabelo encaracolado da frente do rosto e pareceu surpreso com a preocupação
na minha voz. Tyler se afastou.
— Michael me trouxe isso aqui.
Ele mostrou um caminhãozinho de brinquedo e colocou-o para rodar em cima do sofá.
— Onde você estava? — perguntei. Michael havia sumido desde que a Prime fora demolida.
Ele deu de ombros.
— Precisava de um pouco de espaço.
Ele não diria nada enquanto Tyler estivesse por perto. Ele havia me visto de mãos dadas com
Blake, o neto do senador Harrison. Dois fantoches do Velho.
— Escute, o que você viu... não significava nada — disse, em voz baixa. — E você, você e
Florina...
— Acabou.
Ficamos olhando um para o outro. Tyler ainda estava brincando, imitando os sons de um motor
com a boca, mas é claro que ele ouvia nossa conversa. Tentei pensar em alguma maneira de
explicar meus sentimentos, porém, para ser sincera, não sabia o que sentia. O Velho, Blake,
Michael... tudo estava muito confuso.
Meu telefone soltou um bip para lembrar que havia três Zings na minha caixa de entrada e que
eu ainda não os havia lido.
— Alguém está louco para falar com você? — perguntou Michael.
Os três Zings foram enviados por Blake. Estava tentando entrar em contato comigo desde o dia
em que o vi na destruição da Prime.
— É ele, não é? — disse Michael.
Enfiei o telefone de volta no bolso, inclinei a cabeça e olhei para ele com uma expressão de
“não me provoque”.
Tyler nos encarava ansioso, olhando primeiro para Michael e depois para mim.
— Nós vamos ao shopping — disse Tyler. — Comprar tênis para mim.
— Sem pedir minha permissão? — Agarrei a alça da bolsa sobre o meu ombro e colei meus
olhos em Michael.
— Ele implorou — explicou Michael. — E os tênis favoritos dele estão pequenos.
— Ele está crescendo bem rápido. Melhor comprar dois tamanhos diferentes.
Estávamos felizes com a melhora de Tyler após um ano morando em prédios abandonados e
frios.
— Você vai com a gente, não é? — disse Ty ler.
— Adoraria, mas preciso ir a outro lugar.
— Aonde? — perguntou Michael.
— Ao nosso antigo bairro. Alimentar os Starters.
— Quer ajuda?
— Por quê? Você acha que eu não consigo fazer isso sozinha?
Assim que cuspi aquelas palavras ríspidas, desejei poder voltar no tempo. Michael ficou bem
magoado. Tyler ficou de queixo caído, percebeu o clima tenso.
— Me desculpe — disse a Michael. — Obrigada por querer me ajudar. De verdade. Mas vou
me virar. Vão ao shopping.
— Você poderia ir almoçar com a gente — disse Tyler. — Depois que comprarmos meus
tênis.
Ele segurou a mão de Michael e fez sua melhor cara de “por favor, por favor!”. Tyler estava
fazendo o que podia para que ficássemos juntos, éramos como um pai e uma mãe para ele. O
que eu queria de verdade era fazer com que nossos pais ressurgissem num passe de mágica;
queria ter nossa família de volta. No entanto, tinha que me contentar em atender ao pedido de meu irmão.
Equilibrava a bolsa de viagem no ombro enquanto abria a porta lateral do prédio comercial
abandonado, que serviu de casa para Michael e para mim — e também para Florina — enquanto
alugava meu corpo para uma Ender. Entrei no saguão e vi a mesa da recepção vazia, como
sempre. Nunca admitiria para Michael que meu coração estava batendo mais forte. Mais rápido.
Prendi a respiração para tentar escutar sinais que indicavam perigo. Eu conhecia o lugar, mas as
coisas mudam. Quem eram os Starters que moravam aqui agora?
Fui até a mesa da recepção para ter certeza de que não havia ninguém escondido atrás dela,
pronto para atacar. A área estava limpa. Coloquei minha bolsa de viagem sobre o balcão, abri o
zíper e tirei um pano de dentro dela. Enquanto limpava o balcão, ouvi passos atrás de mim. De
repente, alguém passou correndo e pegou minha bolsa.
— Ei! — gritei.
Um Starter pequeno e gorducho correu para a saída, agarrando minha bolsa contra o corpo.
Vários sanduíches caíram no chão.
— Os sanduíches seriam divididos entre todos, seu ladrãozinho! — berrei para ele.
Ele atravessou a porta como um raio. Eu nunca conseguiria pegá-lo.
Saí rapidamente de trás da mesa da recepção e me abaixei para pegar a comida que havia
caído. Estava quase pegando um dos sanduíches quando alguém pisou na minha mão.
— Para trás. — Era uma Starter, talvez um ano mais velha do que eu.
Ela empunhava uma tábua como se fosse um bastão de beisebol, pronta para atacar. Os pregos
enferrujados na ponta da tábua me convenceram a não brigar. Fiz que sim com a cabeça. Ela
aliviou a pressão do pé sobre a minha mão e eu recuei.
— Pode pegar — eu disse, indicando o sanduíche esmagado.
Ela o agarrou, e também os outros dois que estavam no chão. Mordeu os sanduíches sem se
preocupar em desembrulhá-los, fazendo muitos ruídos. Magra, com os cabelos curtos e sujos,
provavelmente algum dia ela foi uma garota de classe média. Assim como eu.
Já estive faminta daquele jeito, mas ninguém nunca foi ao meu prédio para me dar comida. E
agora eu sabia o motivo.
Ela engoliu.
— Você. — Ela se aproximou e tocou meu cabelo. — Você é uma Metal, não é?
— Uma o quê?
— Você sabe. Metal. Uma daquelas pessoas do banco de corpos. Você tem um chip na
cabeça. — Ela deu mais uma mordida no sanduíche, desta vez tirando o plástico que o envolvia.
— Qual é a sensação? — Ela andou até poder olhar para a parte de trás de minha cabeça.
Eu estava usando as roupas menos chamativas que encontrei no armário da neta de Helena.
Mas não consegui disfarçar minha pele, que estava impecável, meu cabelo brilhante e minhas
feições perfeitas. Para o resto do mundo, era claro que eu havia me tornado uma espécie de
escrava com um chip na cabeça.
— De alguém ser o meu dono
O shopping center limpíssimo e iluminado era completamente diferente da vida dura e sem
leis dos Starters, que têm de ir atrás de procurar prédios abandonados para morar. Guardas de
segurança Enders mantinham a vigilância do lado de fora das lojas, examinando cada Starter que
passava com um olhar duro feito aço. Um dos guardas percebeu que havia alguns garotos
desgrenhados anunciando às pessoas que não tinham família, com o rosto sujo e jeans
manchados. Ele entrou em contato com os seguranças do shopping e eles levaram os garotos até
a saída, com truculência.
Este lugar era um shopping de classe alta mesmo antes de a Guerra dos Esporos ampliar a
divisão entre ricos e pobres. Embora nem todos os Enders fossem ricos e nem todos os Starters,
pobres, era assim que as coisas aparentavam ser. Aqui eu passava por muitos Starters lindos,
reluzentes, vestindo suas camisetas e jeans com estampas holográficas e que mudavam de cor e
textura conforme eles se moviam. Eram como pássaros exóticos, até os garotos, que usavam
óculos com aerotelas, vários lenços ao redor do pescoço e bonés com painéis solares finos para
recarregar baterias. Aqueles que tinham chips para controlar a temperatura dentro de suas
jaquetas metálicas cintilantes os mantinham ligados. Outros usavam dobradores instantâneos para
comprimir suas blusas, de modo que pudessem guardá-las dentro da carteira. As pessoas diziam
que se vestiam daquela maneira para se diferenciarem dos Starters de rua. Eu tinha um armário
cheio de roupas exatamente como aquelas, herdadas da neta de Helena. Mas não faziam meu
estilo.
Esses eram os Starters adotados que viviam em mansões como a minha. Eu sempre conseguia
distingui-los das pessoas como eu, que receberam tratamentos cosméticos no banco de corpos.
Os “Metais”, disse aquela garota. Esses Starters do shopping eram bonitos porque tinham
condições financeiras para isso. Tinham os melhores dermatologistas, dentistas e cabeleireiros, e
todos os cremes e produtos de beleza que seus avós podiam comprar. A Guerra dos Esporos não
chegou a afetar seus hábitos de consumo.
Parei e fiz um exame de consciência. Ali estava eu, julgando aqueles Starters, mas eles
também perderam seus pais. Talvez seus avós não os tratassem tão bem, poderiam ser frios e
cheios de ressentimentos ao ver, todos os dias, aqueles rostos que os lembravam dos filhos e das
filhas que perderam.
A Guerra dos Esporos transformou todos nós.
Cocei a parte de trás da cabeça e olhei ao meu redor, esperando encontrar uma loja de
sapatos. Combinara de me encontrar com Michael e Tyler na praça de alimentação, mas, como
a minha missão de alimentar os pobres falhou, eu estava adiantada. Engoli em seco, pensando
naquilo. Michael tinha razão; eu não deveria ter ido sozinha. Deveria ter me lembrado do que
aprendera nas ruas: nunca tire a mão de sua bolsa. Nunca fique de costas para a entrada. Esteja
sempre pronta para brigar. Todo aquele trabalho para alimentar apenas dois Starters, que saíram
correndo e sequer me agradeceram.
Concentrei minha atenção na aerotela de informações localizada no meio do shopping.
— Tênis — disse ao microfone invisível.
O sistema destacou a loja no mapa e projetou um holograma. Era a única loja de artigos
esportivos do shopping. Conhecia Tyler muito bem e sabia que ele estava experimentando todos
os modelos da loja. Eu precisava socorrer Michael.
Fui em direção à loja e, no caminho, passei por uma avó Ender que se apoiava no braço de
uma bela Starter, provavelmente sua neta.
Ela é um colírio para os olhos.
Parei no lugar onde estava.
Era aquela voz artificial e eletrônica na minha cabeça, e me fez ranger os dentes.
O Velho.
Olá, Callie. Sentiu saudades de mim?
— Não. Nem um pouco — disse, esforçando-me para falar de maneira tranquila. — Longe
dos olhos, longe do pensamento.
Esperta.
Lembrei-me de que ele era capaz de ver através de meus olhos. Coloquei as mãos atrás das
costas para que ele não pudesse vê-las tremendo.
Duvido. Tenho certeza de que você pensou em mim o dia inteiro. A cada hora. A cada minuto.
— Você tem que se intrometer em tudo, não é? — Sentia vontade de gritar com ele, mas os
guardas pensariam que eu era louca.
Olhei para os guardas. Será que olhavam para mim porque eu estava falando sozinha? Não, eu
poderia estar falando em um microfone ligado a um fone de ouvido. Talvez tivessem percebido
meu nervosismo. Não que pudessem fazer alguma coisa para me ajudar.
— O que você quer?
Quero sua atenção, completa e irrestrita. E você vai querer que eu a tenha.
Senti um calafrio correr pelo corpo.
Olhe à sua esquerda e me diga o que está vendo.
— Lojas.
Continue olhando.
Virei para a esquerda.
— Bem... uma loja de chocolate, uma joalheria, uma loja que está fechada.
Você não está olhando com atenção. O que mais?
Dei alguns passos.
— Pessoas fazendo compras. Enders com alguns netos, alguns Starters...
Sim. Starters. Continue olhando.
Meus olhos examinaram a área. Será que ele quer que eu encontre algum Starter?
— Estamos brincando de está-quente, está-frio?
Na verdade, estamos brincando de está-quente, está-quente. Mas daqui a pouco você vai
perceber que não estamos brincando.
Fiquei parada no meio do shopping, e tanto Starters quanto Enders tinham que se desviar de
mim. Ele queria que eu visse algum Starter. Havia vários deles... mas qual? Foi então que eu vi
uma garota com longos cabelos vermelhos. Eu a conhecia.
Reece.
Ela era a doadora que minha guardiã, Lauren, alugou para procurar por seu neto. Lembravame
de Reece como uma amiga, mas a amiga, é claro, era Lauren. A verdadeira Reece não me
reconheceria, porém, eu tinha muitas coisas para lhe dizer.
— Reece! — eu a chamei.
Estava linda como sempre, com um vestido estampado curto e sapatos prateados com saltos
não muito altos. Esquivei-me das outras pessoas para me aproximar dela. Ela estava a cerca de
três metros mais adiante quando parou e se virou.
— Sou Callie — disse, me aproximando, e as pessoas iam e vinham ao nosso redor. — Você
não me conhece, mas eu conheço você.
Ela me olhou de um jeito muito estranho, nunca vi coisa igual. O canto de sua boca se ergueu
num meio sorriso, mas não foi um movimento fluido. Foi algo mais... mecânico.
Tinha alguma coisa errada.
Ela rapidamente me deu as costas e se afastou.
— Espere! — gritei.
Mas ela continuou andando. Um Ender caminhava logo atrás dela. Normalmente, eu não
repararia naquele homem, mas ele tinha uma tatuagem prateada enorme na lateral do pescoço.
A cabeça de um animal. Não consegui visualizar direito o que era. Um leopardo, talvez.
— Era Reece, não era? Você queria que eu a visse?
Eu sempre posso contar com você, Callie.
Será que Reece sabia que o Ender com a tatuagem de leopardo a estava seguindo? Eu não
tinha certeza. Quase correndo, ela entrou em uma loja. Ele foi até a loja seguinte, fingindo estar
interessado nas gargantilhas de pérola expostas na vitrine.
Dei um passo em direção à loja.
Não. Deixe Reece em paz.
Ela saiu minutos depois, e o homem com a tatuagem de leopardo continuou a segui-la. Fiquei
para trás, mas continuei os seguindo e observando.
— Ela está em perigo — disse ao Velho.
Você verá.
Uma sensação horrível de pavor tomou conta de mim.
— Há alguém dentro dela?
O banco de corpos fora destruído, mas o Velho tinha acesso a mim. Ele poderia estar dentro do
corpo de Reece também. Só de pensar nisso meu estômago embrulhou. Aquela voz eletrônica. A
tatuagem de leopardo. O corpo de Reece sendo usado.
A loja de calçados esportivos ficava mais adiante, bem na frente de Reece. Tyler e Michael
estavam entrando.
— Michael! — gritei no meio do shopping, esperando que ele me ouvisse em meio às pessoas
e à música. Havia seis ou sete lojas entre nós. Ele parou e olhou ao redor, mas não me viu. E
entrou na loja.
Reece deve ter me ouvido porque ela se virou e olhou fixamente para mim. O homem tatuado
a alcançou. Ele disse algo em seu ouvido e ela balançou a cabeça negativamente com um
movimento artificial. Ele a tocou no braço e ela, ou a pessoa que estava dentro dela, se
desvencilhou.
— O que está acontecendo? — Eu estava paralisada, lutando para resolver esse enigma
bizarro. — Me diga.
Você destruiu a Prime, mas isso não significa que me destruiu. Não era a minha única base.
Ainda posso acessar qualquer chip.
Reece se afastou do homem e correu em direção à loja de sapatos.
E posso transformá-lo em uma arma.
— Não — eu disse para ele, para mim mesma, para todas as pessoas à minha volta.
O tempo parou, prendi a respiração. Tudo aconteceu rápido demais. A multidão à minha volta
se tornou um borrão congelado no tempo e eu saí correndo em direção à loja. Parecia que eu
estava correndo debaixo d’água, não conseguia me mover rápido o bastante.
Eu estava a duas portas de distância da loja quando, como uma bala disparada por um
revólver, um Starter de cabelos escuros com uma jaqueta metálica e bufante veio em minha
direção. Consegui ver seu rosto de relance — queixo forte, olhos penetrantes. Ele se atirou contra
mim, jogou os braços ao redor do meu corpo e me arrastou para trás o mais rápido que pôde.
Antes que eu reagisse, houve uma explosão horrível, ensurdecedora, no lugar onde Reece
estava. Enquanto voávamos pelo ar, só vi um clarão branco e ofuscante.
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