quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 10h18


De bicicleta, a quinta ficava a uma hora de Kinnakee propriamente dita. No mínimo,
uma hora, a uma boa velocidade, mas sem o frio a deixar os pulmões como metal em
brasa, nem com sangue a escorrer pela cara. Ben programava o seu trabalho na escola em
função dos períodos em que estava mais vazia: nunca lá ia ao sábado, por exemplo,
porque a equipa de luta livre tinha treino ao sábado. Era muito mau estar de esfregona na
mão, enquanto aqueles tipos maciços, musculosos, ruidosos gingavam de um lado para o
outro, a cuspir bocados de tabaco para o chão que ele tinha acabado de lavar e depois a
olhar para ele, com ar meio culpado, meio a desafiá-lo a abrir a boca.
Era uma quarta-feira, mas ainda estavam nas férias do Natal, por isso a escola devia
estar sossegada. A sala de musculação tinha sempre gente, sempre a fazer aquele barulho
que parecia um coração de aço a bater, mas era cedo. Cedo era sempre a melhor altura.
Geralmente ia das oito ao meio-dia, passava a esfregona e arrumava e polia tudo, como o
autêntico paspalho que era, e punha-se a andar antes que alguém o visse. Às vezes, Ben
sentia-se uma espécie de gnomo dos contos de fadas, que entrava à socapa na escola e
deixava tudo a brilhar, sem que ninguém reparasse. Os putos estavam-se a cagar para a
limpeza: atiravam um pacote na direção de um caixote do lixo, viam o leite derramar-se
pelo chão todo e limitavam-se a encolher os ombros. Despejavam carne à bolonhesa numa
das cadeiras da cantina e deixavam-na lá ficar, a endurecer, e outro qualquer que
limpasse. Ben fazia o mesmo, só porque era o que toda a gente fazia. Deixava cair um
bocado de sandes de atum no chão e revirava os olhos como se nem valesse a pena olhar
duas vezes para aquela merda, quando era precisamente ele que ia ter de limpar a merda
daí a uns dias. Era uma estupidez pegada, na verdade ele estava a fazer mal a si próprio.
Portanto, era uma seca ter de lidar com aquela porra fosse quando fosse e era ainda
pior quando os outros putos andavam pela escola a fingir que não o viam. Mas, nesse dia,
ele ia arriscar e fazer o seu turno. De manhã, Diondra ia às compras a Salina, de carro. A
miúda tinha pelo menos uns vinte pares de jeans, todos eles iguais aos olhos de Ben, mas
precisava de mais, de uma marca qualquer especial. Usava-os largueirões e enrolava as
bainhas nos tornozelos várias vezes, deixando as meias grossas à mostra. Ele fazia
sempre questão de elogiar os jeans novos e Diondra perguntava logo: e as meeeeias? Era
uma piada, mas no fundo não era. Diondra só usava meias Ralph Lauren, que custavam
tipo uns vinte dólares o par, o que dava a volta ao estômago de Ben. Ela tinha uma
cómoda inteira cheia de meias — aos losangos e às pintas e às riscas, todas com o
cavaleiro em cima, a meio de uma tacada. Ben fizera as contas: deviam estar uns
quatrocentos dólares de meias naquela gaveta, ali expostos como um cesto de fruta da
Florida, valendo provavelmente metade do que a mãe dele ganhava num mês. Bom, os
ricos precisam de comprar coisas e provavelmente as meias cumprem tão bem essa
função como outra coisa qualquer. Diondra era uma miúda estranha, não era propriamente
betinha — era demasiado espalhafatosa e louca para encaixar na categoria dos betinhos —,
mas também não pertencia à malta metaleira, embora ouvisse Iron Maiden aos berros e
adorasse cabedal e fumasse toneladas de erva. Diondra não pertencia a nenhum grupo, era
simplesmente a Rapariga Nova. Toda a gente a conhecia e, ao mesmo tempo, não. Já tinha
vivido em montes de sítios, a maioria deles no Texas, e a resposta dela sempre que fazia
qualquer coisa que os outros provavelmente iam criticar, era: «É assim que se faz no
Texas.» Tudo o que ela fizesse estava bem, porque era assim que se fazia no Texas.
Antes de conhecer Diondra, Ben deixara-se simplesmente andar pela vida: era um
miúdo pobre e sossegado, criado numa quinta, que se juntava a outros filhos de
agricultores num canto discreto da escola. Não eram suficientemente totós para que os
outros putos os insultassem; nunca ninguém se metia com eles. Eram o ruído de fundo do
liceu. Para ele, isso era pior do que ser humilhado. Bom, talvez não, havia um tipo com
uns grandes óculos de lentes progressivas, um puto que Ben conhecia desde o jardimescola
e que sempre fora esquisito. Na primeira semana de aulas no liceu, o puto borrouse
nas calças. Havia várias versões sobre o como: numa, viram-lhe cair cagadelas dos
calções enquanto ele trepava a uma corda no ginásio, noutra, viram-no largar um cagalhão
em plena sala de aula, e por aí fora, variantes era o que não faltava. A questão era que ele
tinha ficado com a alcunha de Calções Cagados para o resto da vida. Nos intervalos,
mantinha a cabeça baixa, com aqueles óculos do tamanho da lua apontados para o chão e,
mesmo assim, havia sempre um gajo qualquer que lhe dava um caldo na cabeça: Então,
Calções Cagados! O coitado continuava a andar, com um sorriso sinistro na cara, como se
estivesse a fingir que aquilo também era uma piada para ele. Portanto, sim, havia coisas
piores do que passar despercebido, mas Ben não gostava disso, não queria continuar a ser
o Puto Ruivo Simpático e Calado que era desde o primeiro ano. Um chato sem tomates.
Portanto, devia um obrigado do caraças a Diondra por o ter reivindicado para ela, pelo
menos em privado. Diondra atropelara-o com o carro, foi assim que se conheceram.
Estavam no verão e ele tivera uma sessão de orientação para caloiros e alunos novos.
Foram três horas de seca e, no fim, quando ia a atravessar o parque de estacionamento
da escola, ela ceifou-o com o carro. Atirou-o em cheio para cima do capô. Ela saiu do
carro aos gritos com ele: És parvo ou quê, cabrão?, o hálito a cheirar a sangria, as
garrafas a tilintarem no chão do CRX. Quando Ben pediu desculpa — ele é que lhe pediu
desculpa a ela — e Diondra percebeu que ele não se ia irritar, ficou toda doce, ofereceu-lhe
boleia até casa e, em vez disso, acabaram por ir para os arredores da povoação, onde
estacionaram e beberam mais sangria. Diondra disse que se chamava Alexis, mas daí a
nada confessou-lhe que era mentira. Chamava-se Diondra. Ben disse-lhe que nunca devia
mentir sobre um nome tão fixe como aquele e ela ficou contente e, passado mais um
pouco, Diondra disse: «Sabes que mais? Tens uma cara muito gira» e, segundos depois,
acrescentou: «Então, queres curtir ou não?» e desataram a curtir à grande, o que não foi
uma primeira para ele, mas foi só a segunda. Ao fim de uma hora, Diondra anunciou que
tinha de ir embora, mas disse que ele era muito bom ouvinte, que era muito fixe a
maneira como ele sabia ouvir uma pessoa. Acabou por já não o levar a casa. Deixou-o
exatamente no mesmo sítio onde o atropelara.
Foi assim que começaram a namorar. Ben não conhecia os amigos dela e nunca andava
com ela na escola. Diondra entrava e saía dos dias de escola como um rouxinol, às vezes
aparecia, outras vezes não. Era suficiente vê-la ao fim de semana, num espaço que era só
deles, onde a escola não tinha importância nenhuma. Estar com ela mudara-o, ele sentiase
mais presente.
Quando Ben chegou a Kinnakee de bicicleta, um grupo de carrinhas e carros
desportivos maltratados estava parado no parque de estacionamento. Portanto, jogadores
de basquetebol além dos tipos da luta livre. Ele sabia quem conduzia que carro. Pensou em
fugir, mas Diondra só chegava a casa daí a várias horas e ele não tinha dinheiro para se
sentar na tasca dos hambúrgueres; o dono ficava passado dos carretos quando via putos a
fazerem horas no restaurante dele sem comprarem nada. Além disso, sentar-se sozinho
num restaurante nas férias do Natal era pior do que estar a trabalhar. Foda-se para a mãe
dele por ser tão stressada. Os pais de Diondra estavam-se nas tintas para o que ela fazia;
estavam fora a maior parte do tempo, numa casa que tinham no Texas. Mesmo quando
Diondra fora apanhada por ter faltado às aulas durante duas semanas, no mês passado, a
mãe limitara-se a rir. Patrão fora, dia santo na loja, não é, querida? Pelo menos tenta
fazer os trabalhos de casa.
A entrada das traseiras da escola estava fechada a cadeado, por isso ele teve de
entrar pelos balneários. O cheiro a carne e a desodorizante para os pés atingiu-lhe as
narinas assim que entrou. As pancadas secas que lhe chegavam do campo de basquetebol
e os ruídos metálicos da sala de musculação sossegaram-no: pelo menos, os balneários
estariam vazios. No corredor, ouviu um grito longo — Coooooper! Espeeeera! — ecoar no
chão de mármore como um grito de batalha. Sapatos de ténis patinharam ao fundo do
corredor, uma porta de metal abriu-se com estrondo e depois ficou tudo relativamente em
sossego. Só o ruído do campo de treinos e da sala de musculação: pam, pam, clanque,
pum.
Os atletas da escola tinham uma espécie de pacto de confiança, um sinal de espírito
de equipa, e nunca trancavam os cacifos. Em vez disso, amarravam uns atacadores
grossos nos ganchos onde devia passar o cadeado. Pelo menos doze atacadores brancos
estavam pendurados nos cacifos e Ben hesitou, como sempre, em espreitar para dentro de
um deles. De que é que aqueles tipos precisavam, de qualquer maneira? Se havia cacifos
para os livros, o que é que eles meteriam naqueles cacifos do ginásio? Seriam
desodorizantes e cremes, uma espécie qualquer de roupa interior que ele não tinha?
Usariam todos o mesmo tipo de proteção para os genitais? Pam, pam, clanque, pum. Um
atacador estava pendurado sem nó, bastava um puxão rápido e o cacifo abria-se. Antes
que conseguisse convencer-se a não o fazer, puxou pelo atacador e, devagar, sem fazer
barulho, levantou o fecho. Dentro do cacifo não havia nada de interessante: uns calções de
ginástica amarrotados no fundo, uma revista de desporto enrolada, um saco de desporto
pendurado num gancho. O saco parecia ter qualquer coisa lá dentro, por isso Ben
debruçou-se e abriu-o.
— Ei!
Virou-se, enquanto o saco balouçava à doida no gancho e caía para o fundo do cacifo.
Mr. Gruger, o treinador da luta livre, estava parado com um jornal na mão, com o rosto
grosseiro e às manchas crispado.
— O que é que tu pensas que estás a fazer, a mexer nesse cacifo?
— Eu, ah, estava aberto.
— O quê?
— Estava aberto, eu vi que estava aberto — disse Ben. Fechou-o o mais
silenciosamente que conseguiu. Por favor, foda-sefoda-sefoda-se, não deixes que ninguém
da equipa venha para aqui, pensou Ben. Conseguia imaginar as caras furiosas a olharem
para ele, as alcunhas que inventariam.
— Estava aberto? E porque é que estavas a mexer nele? — Gruger deixou a pergunta
ficar em suspenso no ar, sem se mexer, sem dar qualquer indicação do que ia fazer, sem
mostrar qual o tipo de sarilho em que Ben se tinha metido. Ben tentou ficar de olhos
baixos, à espera de ser repreendido.
— Eu perguntei o que é que estavas a fazer nesse cacifo. — Gruger bateu com o jornal
na mão gorda.
— Não sei.
O velho ficou ali parado, enquanto Ben pensava o tempo todo: grita e acaba com isto
de uma vez.
— Estavas a preparar-te para tirar alguma coisa?
— Não.
— Então, porque é que estavas a mexer no cacifo?
— Eu estava só... — Ben deixou a frase outra vez a meio. — Achei que tinha visto
qualquer coisa.
— Achaste que tinhas visto qualquer coisa? O quê?
Pela cabeça de Ben passaram várias coisas proibidas: animais, drogas, revistas
pornográficas. Lembrou-se de petardos e por um instante pensou que ia dizer que o cacifo
estava a arder, seria um herói.
— Hum, fósforos.
— Achaste que tinhas visto fósforos? — O sangue no rosto de Gruger passara das
faces para o refego da testa, mesmo abaixo do cabelo muito curto e crespo.
— Queria um cigarro.
— És o empregado da limpeza, não és? Qualquer coisa Day?
Gruger deu um tom pateta e efeminado ao nome. Os olhos do treinador examinaram o
corte na testa de Ben, depois subiram em cheio para o cabelo.
— Pintaste o cabelo.
Ben ficou parado debaixo da sua melena preta e sentiu que estava a ser rotulado e
posto de parte, atirado para o grupo dos falhados, drogados, bananas, maricas. Tinha a
certeza de ter ouvido essa palavra rosnar na mente do treinador. O lábio superior de
Gruger fez um esgar.
— Sai daqui. Vai limpar outra coisa qualquer. Não voltes aqui até nos termos ido
embora. Não és bem-vindo aqui dentro. Percebeste?
Ben fez que sim com a cabeça.
— Porque é que não repetes em voz alta, para que não haja mal-entendidos?
— Não sou bem-vindo aqui dentro — murmurou Ben.
— Agora, põe-te a andar. — Falou como se Ben fosse uma criança, um menino de
cinco anos que ele estava a mandar de volta para junto da mãe. Ben foi.
Subiu as escadas que levavam ao cubículo húmido dos produtos de limpeza, com um
pingo de suor a escorrer-lhe pelas costas abaixo. Ben nem respirava. Esquecia-se de
respirar quando estava furioso como naquele instante. Pegou no balde de tamanho
industrial e levou-o a chocalhar para a pia, encheu-o com água quente, despejou o
detergente cor de urina, sentindo o cheiro a amoníaco arder-lhe nos olhos. Depois,
encaixou-o no suporte com rodas. Como tinha enchido demasiado o balde, transbordara
quando o tirara da pia, despejando dois litros de água pelas calças abaixo. Ficou com a
braguilha e a perna completamente encharcadas. Parecia que se tinha mijado todo, o
Faxina Day. Os jeans colaram-se-lhe às coxas, ficaram duros. Iam ser três horas de
trabalho de merda com a braguilha molhada e os jeans duros como cartão.
— Vai-te foder, cabrão — murmurou. Deu um pontapé na parede com a botifarra,
pulverizando o estuque, e deu um murro na parede. — Fooooooda-se! — berrou, a sua voz
tornando-se estridente no fim. Ficou escondido no cubículo como um cobarde, com medo
de que Gruger localizasse a origem do grito e decidisse lixá-lo ainda mais.
Não aconteceu nada. Ninguém mostrou o mínimo interesse em ver o que se passava no
cubículo dos empregados da limpeza.
Ele devia ter feito a limpeza uma semana antes, mas Diondra queixara-se de que
estavam oficialmente de férias de Natal, ele que deixasse aquilo para depois. Portanto, o
lixo da cantina estava cheio de velhas latas de refrigerante a verterem líquido açucarado,
embalagens de sandes cobertas de salada de frango e restos bolorentos do último prato
especial do almoço de 1984, um hambúrguer guisado com molho de tomate adocicado.
Tudo estragado. Ficou com salpicos na camisola e nos jeans, por isso, além de amoníaco e
suor, também cheirava a comida estragada. Não podia ir ter com Diondra naquele estado,
era um idiota por ter programado as coisas daquela maneira. Teria de voltar a casa de
bicicleta, lidar com a mãe — podia contar com um sermão de trinta minutos, sem tirar
nem pôr —, tomar um duche e ir de bicicleta a casa dela. Se a mãe não o proibisse de
sair, como castigo. Que se lixasse, saía à mesma. O corpo era dele, o cabelo era dele. O
seu cabelo preto fodido de maricas.
Limpou o chão com a esfregona e meteu o lixo de todos os gabinetes dos professores
em sacos; era a sua tarefa preferida, porque parecia enorme, mas era só recolher bocados
de papel amarrotado, leve como folhas de árvore. A sua última missão era limpar o
corredor que ligava o liceu à escola básica (que tinha o seu próprio aluno-faxina
embaraçado). O corredor estava coberto de cartazes espalhafatosos de futebol e corridas
e clube de teatro do lado do liceu e, depois, desintegrava-se lentamente em território
infantil, as paredes forradas com letras do abecedário e textos sobre George Washington.
Umas portas azuis garridas assinalavam a entrada da escola básica, mas eram um mero
pró-forma; nem sequer tinham fechadura. Limpou o chão todo desde a Liceulândia até à
Infantoville, deixou cair a esfregona no balde e afastou-o de si com um pontapé. O balde
rebolou suavemente pelo chão de cimento e bateu na parede com um splash discreto.
Do jardim-escola até ao oitavo ano, andara na escola básica de Kinnakee; tinha uma
relação mais forte com essa parte do edifício do que com o lado do liceu onde se
encontrava naquele momento, com dejetos liceais agarrados ao corpo.
Pensou em abrir a porta e vaguear por entre o silêncio do outro lado e, de repente, era
isso mesmo que estava a fazer. A dizer olá à antiga escola. Ouviu a porta fechar-se atrás
de si e descontraiu-se. Ali, as paredes eram amarelo-limão, com decorações à porta de
cada sala de aulas. Kinnakee era suficientemente pequena para que cada ano só precisasse
de uma sala de aulas. O liceu era diferente, tinha o dobro do tamanho, porque outras
terras mandavam os miúdos para ali. Mas a escola básica fora sempre um espaço
agradável e acolhedor. Na parede, viu um sorridente sol de feltro, com Michelle D., 10
anos, escrito de lado. E aqui estava o desenho de um gato de colete e sapatos de fivela —
ou talvez fossem saltos altos —, o que importava é que estava a sorrir e a dar uma
prenda a um rato que segurava num bolo de aniversário. Libby D., Primeiro Ano. Procurou,
mas não viu nada feito por Debby, pensando bem, nem sabia se a miúda era capaz de
desenhar. Uma vez, ela tentara ajudar a mãe a fazer bolachas, de respiração ofegante, e
acabara por dar cabo da receita e, no fim, comera mais massa crua do que cozida. Debby
não era o tipo de miúda que via as suas coisas serem afixadas na parede.
Ao longo de todo o corredor, estavam filas de caixas amarelas onde os miúdos podiam
guardar objetos pessoais, com o nome de cada aluno escrito numa tira de fita adesiva
colada em cada caixa. Espreitou para dentro da de Libby e encontrou um rebuçado de
hortelã-pimenta, meio comido, e um clipe. A de Debby tinha um saco castanho de almoço
que fedia a salame; a de Michelle, uma caixa de marcadores ressequidos. Espreitou para
dentro de mais umas quantas, só por curiosidade, e percebeu que tinham muito mais
coisas que as das suas irmãs. Caixas de sessenta e quatro lápis de cor Crayola, bonecas e
carros a pilhas, resmas grossas de cartolina, correntes de porta-chaves e livros de
autocolantes e sacos de rebuçados. Triste. É o que acontece quando se tem mais filhos do
que aqueles que se pode sustentar, pensou. Era o que Diondra dizia sempre quando ele
comentava que o dinheiro era apertado em casa: Nesse caso, a tua mãe não devia ter tido
tantos filhos. Diondra era filha única.
Ben encaminhou-se para a parte do liceu, mas deu por si a perscrutar as caixas do
quinto ano. Ali estava ela, a pequenina Krissi que tinha uma paixoneta por ele. Ela
escrevera o nome em grandes letras verde-vivo e desenhara uma margarida na parte de
lado. Ficou giro. E gira era a definição da miúda, parecia saída de um anúncio de cereais:
cabelo louro, olhos azuis e toda bem arranjadinha. Ao contrário do que acontecia com as
suas irmãs, os jeans de Krissi serviam-lhe sempre e estavam limpos e passados a ferro;
as camisas condiziam com a cor das meias ou dos ganchos do cabelo ou fosse o que
fosse. Não tinha hálito a comida como Debby, nem arranhões nas mãos todas como Libby.
Como eles todos. Tinha sempre as unhas pintadas de rosa forte, percebia-se que era a
mãe que lhas pintava. De certeza que a caixa dela estava cheia de bonecas da Docinho de
Morango e outros brinquedos que cheiravam bem.
Até o nome dela batia certo: Krissi Cates era um nome naturalmente fixe. Quando
chegasse ao liceu, ela seria cheerleader, com aquele cabelo louro caído pelas costas
abaixo, e provavelmente esquecer-se-ia de que, em miúda, fora louca por um rapaz mais
velho chamado Ben. Ele teria o quê, então, uns vinte anos? Viria de Wichita, por exemplo,
com Diondra, de carro, para assistir a um jogo e Krissi olharia na direção dele a meio de
um salto e, quando o visse, o seu rosto abrir-se-ia num grande sorriso resplandecente e
ela faria um pequeno aceno empolgado, e Diondra soltaria o seu riso de cavalo e diria:
«Não te basta teres metade das mulheres de Wichita apaixonadas por ti, ainda tens de
engatar miúdas de liceu, coitadas?»
Ben podia nunca ter conhecido Krissi — ela andava um ano à frente de Michelle —,
mas foi recrutado um dia, no início do ano escolar. A senhora Nagel, que sempre gostara
dele, pedira-lhe para a ajudar a tomar conta dos miúdos no ATL de educação visual. Só por
um dia. O monitor do costume não tinha aparecido. Ben devia voltar para casa, mas sabia
que a mãe não poderia ficar irritada com ele por ter dado uma ajuda aos mais pequenitos
— ela andava sempre a chateá-lo para ajudar a tomar conta das irmãs em casa —, e
misturar tintas era muito mais apelativo do que carregar estrume. Krissi foi uma das
miúdas que ficou a seu cargo, mas não parecia muito interessada em pintar. Limitava-se a
espalhar a tinta de um lado ao outro com o pincel até a folha toda ficar castanha cor de
merda.
— Tens noção do que isso parece, não tens? — disse-lhe ele.
— Cocó — respondeu ela, e desatou a rir.
Era atiradiça, mesmo sendo tão pequena; via-se que já nascera gira e que partia do
princípio de que toda a gente gostava dela. E, de facto, ele gostou. Falaram entre longas
linhas de silêncio.
Onde é que vives?
Verter, aplicar, espalhar. Molhar o pincel na água e repetir.
Perto de Salina.
E andas aqui na escola, tão longe de casa?
Ainda não acabaram de construir a escola. No próximo ano, já vou ficar mais perto de
casa.
Ainda é longe de carro.
Um ranger de cadeira, um descair de ombros.
Pois é. Detesto. Tenho de esperar horas, no fim das aulas, para que o meu pai me
venha buscar.
Então, o ATL de educação visual é uma boa ideia.
Talvez. Prefiro ballet, é o que faço ao fim de semana.
Ter ballet ao fim de semana dizia muita coisa. Provavelmente era uma daquelas
miúdas com piscina em casa ou, se não uma piscina, um trampolim. Pensou em dizer-lhe
que tinham vacas na quinta — a ver se ela gostava de animais —, mas sentiu que já
estava a esforçar-se demasiado com ela. Era uma miúda, ela é que devia estar a tentar
impressioná-lo.
Ofereceu-se para tomar conta dos miúdos no ATL de educação visual durante o resto
do mês, metendo-se com Krissi por causa dos desenhos que ela fazia (mas isto é o quê,
afinal, uma tartaruga?) e deixando-a falar durante horas sobre o ballet (não, seu palerma,
é o BMW do meu pai!). Um dia, ó miudinha corajosa, ela esgueirou-se para a parte do liceu
e foi esperar Ben junto do cacifo dele, com uns jeans que tinham umas borboletas feitas
de lantejoulas no bolso e uma camisa cor-de-rosa com dois altos em forma de cone
espetados na zona do peito. Ninguém a incomodou, a não ser uma miúda cheia de zelo
maternal que tentou encarreirá-la de volta para o lado certo do edifício.
— Eu estou bem — respondeu ela, sacudindo o cabelo, e virou-se para Ben. — Vim só
dar-te uma coisa.
Entregou-lhe um bilhete, dobrado em forma de triângulo, com o nome dele escrito na
frente em letras gordas. Depois, deu meia-volta, toda empertigada no meio de miúdos que
tinham quase o dobro do tamanho dela, com um ar de quem nem tinha reparado nisso.

No ATL de desenho, um rapaz chamado Ben eu conheci
E seduzir o coração dele decidi.
Tem o cabelo ruivo e uma bonita pele,
Alinhas neste «mel»?

Ao fundo da página ela acrescentara uma carta + comprida + logo, com o sinal +
destacado com uma cor diferente. Ben já tinha visto amigos de amigos com bilhetes
daqueles, mas era raro ele receber algum. Em fevereiro passado, recebera três postais do
Dia dos Namorados, um da professora porque fazia parte da aula, um da miúda simpática
que dava um postal a toda a gente e um da miúda gorda e desesperada que parecia estar
sempre à beira das lágrimas.
Diondra escrevia-lhe agora de vez em quando, mas os bilhetes não eram giros, eram
ordinários ou irritados, coisas que ela rabiscava durante o castigo na escola. Nunca
nenhuma miúda lhe escrevera um poema e a situação tornava-se ainda mais gira por
Krissi parecer não ter noção de que ele era demasiado velho para ela. Tratava-se de um
poema de amor de uma miúda que não fazia ideia do que era o sexo ou curtir. (Ou será
que fazia? Quando é que os miúdos normais começavam a curtir?)
No dia seguinte, ela esperou por ele à porta do ATL e pediu-lhe para se sentar nas
escadas e ele disse que sim, mas só um instante, e estiveram no gozo durante uma hora
inteira naquelas escadas sombrias. A dada altura, ela agarrou-lhe no braço e encostou-se
toda a ele, e Ben soube que lhe devia dizer para não fazer aquilo, mas ela era tão querida
e aquilo era tão bom, não tinha nada de esquisito, não era como os arranhões e os gritos
de ninfomaníaca de Diondra, nem as brincadeiras brutas das irmãs, era doce como uma
miúda deve ser. Ela usava um batom com cheiro a pastilha elástica e, como Ben nunca
tinha dinheiro para comprar pastilha elástica — estavam mesmo fodidos —, ficava sempre
com água na boca.
Portanto, andavam naquilo havia meses, a sentarem-se nas escadas à espera que o pai
dela chegasse. Nunca falavam ao fim de semana e, às vezes, ela até se esquecia de
esperar por ele e Ben ficava parado nas escadas como um idiota, com um pacote de
Smarties quentes que encontrara quando limpava a cantina. Krissi adorava guloseimas. As
irmãs dele eram iguaizinhas, pedinchavam açúcar como escaravelhos; uma vez, chegou a
casa e encontrou Libby a comer compota diretamente do frasco.
   Diondra nunca soube de Krissi. Quando Diondra ia à escola, nos dias em que ia, voltava
para casa às 15h16 para ver as novelas e o Donahue. (Geralmente via televisão a comer
massa de bolo diretamente da taça da misturadora, que raio de mania era aquela das
miúdas em relação ao açúcar?) E mesmo que Diondra viesse a descobrir, não se passava
nada de mais. Ele era uma espécie de conselheiro escolar. Um rapaz mais velho a
aconselhar uma rapariga sobre os deveres e o liceu. Talvez devesse ir para psicologia ou
ser professor. O pai dele era cinco anos mais velho do que a mãe.
   A única coisa duvidosa que houve entre ele e Krissi aconteceu pouco antes do Natal e
nunca mais se repetiria. Estavam sentados nas escadas, a chupar rebuçados de maçã
verde e a meter-se um com o outro, quando, de repente, ele se apercebeu do corpo dela
muito mais perto do que era hábito e um dos mamilos roçou-lhe ao de leve no braço.
Sentiu no pescoço o cheiro quente a maçã e ela deixou-se ficar agarrada a ele, sem dizer
nada, só a respirar, Ben sentindo os batimentos do coração dela como um gatinho de
encontro ao seus bíceps e os dedos a pressionarem-no abaixo das axilas. Os lábios dela
aproximaram-se da orelha dele, molhando-lhe o lóbulo com a respiração ofegante, Ben com
as gengivas a latejarem do açúcar dos rebuçados, e a seguir os lábios desceram-lhe pela
bochecha, provocando-lhe arrepios pelos braços abaixo, sem que nenhum dos dois
admitisse o que estava a acontecer, e o rosto dela surgiu mesmo à sua frente e aqueles
labiozinhos pressionaram os dele, sem se mexerem, e os dois ficaram ali parados, com o
coração a bater ao mesmo ritmo, o corpo todo dela agora encaixado entre as pernas dele
e ele com as mãos caídas, hirtas, de cada lado do tronco, todas suadas, e depois ela
moveu ligeiramente os lábios, entreabriu-os ao de leve, e ali estava a língua, pegajosa, a
lambê-lo, um gosto na boca de ambos a maçã verde, e o pau de Ben ficou tão duro que
ele teve medo de que lhe explodisse nas calças e pôs as mãos na cintura dela e segurou-a
por um instante e, depois, afastou-a de si e correu escada abaixo até à casa de banho dos
rapazes — aos gritos: desculpa, desculpa — e entrou num dos cubículos e bastou esfregar
o pau duas vezes para se vir todo.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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