EU ME LEMBRO disso como se estivesse revivendo tudo, sentada nos degraus de Windemere,
ainda olhando fixamente para o ponto em que Gat desapareceu na noite. A percepção do que
fiz vem na forma de névoa em meu peito, fria, escura e dilatada. Faço cara de dor e me inclino
para a frente. A névoa gelada corre do peito para as costas e sobe pelo pescoço. Atinge a
cabeça e desce pela coluna.
Frio, frio, remorso.
Eu não devia ter jogado gasolina na cozinha primeiro. Eu não devia ter iniciado o fogo no
escritório.
Que idiota eu fui ao encharcar tanto os livros. Qualquer um poderia ter previsto como eles
queimariam rápido. Qualquer um.
Devíamos ter combinado o momento certo de atear fogo nos jornais.
Eu devia ter insistido para ficarmos juntos.
Eu nunca devia ter ido verificar o ancoradouro.
Não devia ter corrido para Cuddledown.
Se ao menos eu tivesse voltado mais rápido para Clairmont, talvez pudesse ter tirado
Johnny de lá. Ou alertado Gat antes de o porão pegar fogo. Talvez pudesse ter encontrado os
extintores de incêndio e dado um jeito de apagar as chamas.
Talvez, talvez.
Se ao menos, se ao menos.
Eu desejava tanta coisa para nós: uma vida livre de pressão e preconceito. Uma vida livre
para amar e ser amada.
E, veja só, eu os matei.
Meus Mentirosos, meus queridos.
Eu os matei. Minha Mirren, meu Johnny, meu Gat.
Essa consciência passa da coluna para os ombros e para a ponta dos dedos. Transforma-os
em gelo. Eles lascam e quebram, pequenos pedaços estilhaçados nos degraus de Windemere.
Rachaduras fragmentam meus braços e sobem pelos ombros e pelo pescoço. Meu rosto está
congelado num grunhido de dor de uma bruxa. Mas minha garganta está fechada. Não consigo
produzir nenhum som.
Estou congelada, quando merecia queimar.
Eu devia ter me calado em vez de dizer que tínhamos de fazer algo com nossas próprias
mãos. Devia ter ficado quieta. Cedido. Conversar por telefone seria o bastante. Logo teríamos
carteira de motorista. Logo iríamos para a faculdade e as lindas casas dos Sinclair seriam
algo distante e insignificante.
Podíamos ter sido pacientes.
Eu podia ter sido a voz da razão.
Assim, talvez, ao beber o vinho das tias, podíamos ter esquecido nossas ambições. A
bebida nos daria sono. Dormiríamos na frente da televisão, zangados e impotentes, quem sabe,
mas sem botar fogo em nada.
Não posso desfazer isso.
Arrasto-me para dentro e subo para o quarto apoiada em mãos de gelo rachado, deixando
um rastro de cacos do meu corpo congelado. Meus calcanhares, meus joelhos. Debaixo dos
cobertores, tremo convulsivamente. Pedaços de mim se partem sobre o travesseiro. Dedos.
Dentes. Mandíbula. Clavícula.
Finalmente, finalmente, os tremores param. Começo a me aquecer e derreter.
Choro por minhas tias, que perderam seus primogênitos.
Por Will, que perdeu o irmão.
Por Liberty, Bonnie e Taft, que perderam a irmã.
Por meu avô, que não apenas viu seu castelo se reduzir a cinzas, mas perdeu os netos.
Pelos cães, os pobres cães desobedientes.
Choro pelas reclamações vãs que fiz o verão todo. Por minha vergonhosa autopiedade. Por
meus planos para o futuro.
Choro por todas as coisas que doei. Sinto falta do meu travesseiro, dos meus livros, das
minhas fotos. Estremeço diante das minhas ilusões de caridade, da minha vergonha mascarada
de virtude, das mentiras que contei a mim mesma, dos castigos que impus a mim mesma e à
minha mãe.
Choro horrorizada por toda a família ter sido queimada por mim, e por ter sido a causa de
tanto sofrimento.
No fim, nós não salvamos o idílio. Ele se foi para sempre, se é que algum dia existiu.
Acabamos com a inocência do lugar, daqueles dias em que ainda não conhecíamos a extensão
da raiva das tias, antes da morte da minha avó e da deterioração do meu avô.
Antes de virarmos criminosos. Antes de virarmos fantasmas.
As tias se abraçam não por estarem livres do peso de Clairmont e de tudo o que ela
simbolizava, mas em decorrência da tragédia, por empatia. Não porque as libertamos, mas
porque as destruímos, e elas se uniram diante do horror.
Johnny. Johnny queria correr uma maratona. Queria percorrer quilômetro a quilômetro,
provando que seus pulmões não se esgotavam. Provando que ele era o homem que meu avô
queria que fosse, provando sua força, apesar de ser tão pequeno.
Seus pulmões se encheram de fumaça. Ele não tem mais nada a provar. Nenhum motivo para
correr.
Ele queria ter um carro e comer bolos elaborados que via na vitrine das confeitarias.
Queria rir muito, comprar obras de arte e usar roupas elegantes. Suéteres, cachecóis e coisas
de lã com listras. Queria fazer um atum de Lego e pendurar como se fosse um animal
empalhado. Recusava-se a ser sério, era o extremo oposto, mas era uma pessoa muito
comprometida com as coisas que importavam a ele. A corrida. Will e Carrie. Os Mentirosos.
Seu senso do que era correto. Ele abriu mão da poupança para a faculdade sem hesitar nem
por um segundo para defender seus princípios.
Penso nos braços fortes de Johnny, na listra de protetor solar branco em seu nariz, em
quando ficamos mal juntos por causa de hera venenosa e deitamos um do lado do outro na
rede, com coceira. Em quando ele fez para mim e para Mirren uma casa de bonecas com
papelão e pedras que havia encontrado na praia.
Jonathan Sinclair Dennis, você teria sido uma luz no escuro para tanta gente.
Você foi uma luz. Você foi.
E eu te decepcionei da pior forma possível.
Choro por Mirren, que queria conhecer o Congo. Ela ainda não sabia como queria viver e
no que acreditava; estava pesquisando e descobriu que se sentia atraída por aquele lugar.
Agora nunca será real para ela, nunca será nada além de fotografias e filmes e histórias
publicadas para o entretenimento das pessoas.
Mirren falava muito sobre relação sexual, mas nunca teve uma. Quando éramos mais novas,
ficávamos acordadas até tarde, dormindo juntas na varanda de Windemere, em sacos de
dormir, rindo e comendo doce. Brigávamos por bonecas Barbie, maquiávamos uma à outra e
sonhávamos com o amor. Mirren nunca terá um casamento com rosas amarelas, nem um noivo
que a ame o bastante para usar uma faixa amarela ridícula na cintura.
Ela se irritava com facilidade. Era mandona. Mas sempre achava graça disso. Era fácil
deixá-la brava, e ela quase sempre estava zangada com Bess e irritada com as gêmeas, mas
logo se enchia de arrependimento, resmungando angustiada sobre sua língua afiada. Ela amava
sua família, amava a todos, e lia para os irmãos, ajudava-os a fazer sorvete ou lhes dava
conchas bonitas que havia encontrado.
Ela não pode mais consertar as coisas.
Ela não queria ser como a mãe. Não queria ser uma princesa. Mas uma exploradora, uma
executiva, uma boa samaritana, uma sorveteira… alguma coisa.
Alguma coisa que nunca vai ser, por minha causa.
Mirren, não posso nem pedir desculpas. Não existe uma palavra no Scrabble para
descrever como me sinto mal.
E Gat, meu Gat.
Ele nunca irá para a faculdade. Tinha aquela mente ávida, estava constantemente revirando
as coisas, não em busca de respostas, mas de compreensão. Ele nunca irá satisfazer sua
curiosidade, nunca terminará de ler os cem melhores romances já escritos, nunca será o grande
homem que poderia ser.
Ele queria acabar com o mal. Queria expressar sua raiva. Vivia com intensidade, meu
corajoso Gat. Não se calava quando as pessoas queriam que se calasse, fazia com que
ouvissem, e depois as ouvia também. Recusava-se a levar as coisas na brincadeira, embora
sempre tivesse muita facilidade para rir.
Ah, ele me fazia rir. E me fazia pensar, mesmo quando eu não estava com vontade, mesmo
quando tinha muita preguiça de prestar atenção.
Gat me deixou sangrar sobre ele e sangrar sobre ele e sangrar sobre ele. Nunca se importou.
Queria saber por que eu estava sangrando. Pensava no que podia fazer para curar a ferida.
Ele nunca mais comerá chocolate.
Eu o amava. Eu o amava. Da melhor forma que podia. Mas ele estava certo. Eu não o
conhecia direito. Nunca visitarei seu apartamento, nem experimentarei a comida de sua mãe,
nem conhecerei seus amigos da escola. Nunca verei a colcha de sua cama nem os pôsteres da
parede. Nunca entrarei na lanchonete onde ele comia sanduíche de ovo pela manhã ou a
esquina onde prendia a bicicleta com duas correntes.
Nem sei se ele comia sanduíche de ovo e tinha pôsteres. Nem sei se ele tinha bicicleta ou
uma colcha sobre a cama. Estou apenas imaginando os suportes para bicicleta na esquina,
porque nunca fui para casa com ele, nunca vi sua vida, nunca conheci aquela pessoa que Gat
era quando não estava na ilha Beechwood.
Seu quarto agora deve estar vazio. Ele está morto há dois anos.
Nós deveríamos estar.
Nós deveríamos estar.
Eu te perdi, Gat, porque me apaixonei desesperadamente, desesperadamente.
Penso em meus Mentirosos queimando, nos últimos minutos deles, inalando fumaça, a pele
em chamas. Como deve ter sido doloroso.
O cabelo de Mirren em chamas. O corpo de Johnny no chão. As mãos de Gat, a ponta dos
dedos queimadas, os braços enrugando com o fogo.
No dorso de suas mãos, palavras. Esquerda: Gat. Direita: Cadence.
Minha caligrafia.
Choro por ser a única de nós que ainda está viva. Porque terei de passar pela vida sem os
Mentirosos. Porque eles terão de seguir para o que os espera, seja o que for, sem mim.
Eu, Gat, Johnny e Mirren.
Mirren, Gat, Johnny e eu.
Estivemos aqui, este verão.
E não estivemos aqui.
Sim e não.
É minha culpa, minha culpa, minha culpa — e ainda assim eles me amam. Apesar dos
pobres cães, apesar da minha tolice e grandiosidade, apesar do nosso crime. Apesar do meu
egoísmo, apesar dos meus lamentos, apesar da sorte idiota de ter sido a única que sobrou e da
incapacidade de dar valor a isso, quando eles — eles não têm nada. Nada, mais nada, além
desse último verão juntos.
Eles disseram que me amavam.
Eu senti no beijo de Gat.
Na risada de Johnny.
Mirren até mesmo gritou para o mar.
ACHO QUE FOI POR ISSO que vieram.
Eu precisava deles.
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