das cores e começou a enxergar todas elas em sua vida comum (embora ele soubesse que nada
mais era comum e que nunca mais seria). Mas não duravam. Numa hora era um lampejo de
verde – o gramado no jardim em torno da Praça Central, um arbusto na margem do rio –,
noutra, o alaranjado forte das abóboras sendo trazidas de caminhão das lavouras situadas além
dos limites da comunidade, vistas, num instante, como um clarão de cor viva que desaparecia
em seguida, quando voltavam à tonalidade uniforme e descolorida de antes.
O Doador lhe disse que ainda levaria muito tempo até que ele conseguisse manter a visão
das cores.
– Mas eu quero vê-las! – exclamou Jonas, zangado. – Não é justo nada ter cor!
– Não é justo? – indagou o Doador, curioso. – Explique o que quer dizer com isso.
– Bom… – Jonas parou para refletir. – Se tudo é sempre o mesmo, então não há escolhas!
Quero acordar de manhã e decidir coisas! Hoje vou vestir uma túnica azul ou uma vermelha. –
Baixou os olhos para si, para o tecido sem cor de sua roupa. – Mas é tudo igual, sempre.
Então riu um pouco.
– Sei que não importa o que a gente veste. Não faz diferença. Mas…
– Poder escolher é que é importante, não é? – perguntou o Doador.
Jonas concordou.
– Meu irmãozinho – começou ele, depois se corrigiu. – Não, estou me expressando errado.
Ele não é meu irmãozinho de verdade. Mas essa criança-nova de que minha família está
cuidando, o nome dele é Gabriel…
– Sim, sei sobre o Gabriel.
– Bem, ele está numa idade em que aprende muito, o tempo todo. Agarra os brinquedos que
seguramos na frente dele; meu pai diz que ele está treinando o controle dos músculos
pequenos. E ele é realmente muito engraçadinho.
O Doador concordou.
– Mas agora que consigo ver cores, pelo menos de vez em quando, andei pensando: e se
pudéssemos mostrar a ele coisas de cores vivas, vermelhas, amarelas, e ele pudesse
escolher? Em vez da Mesmice.
– Ele poderia fazer escolhas erradas.
– Ah – Jonas ficou em silêncio um minuto. – Ah, estou entendendo o que quer dizer. Não
teria importância quando se referisse a um brinquedo de criança-nova. Mais tarde, porém,
teria importância, não é? Não nos atrevemos a deixar as pessoas fazerem escolhas próprias.
– Não é seguro? – sugeriu o Doador.
– Decididamente, não é – afirmou Jonas, cheio de convicção. – Imagine se pudessem
escolher seu cônjuge? E escolhessem errado? – E prosseguiu, quase rindo da ideia absurda: –
Ou se pudessem escolher o próprio cargo?
– Seria assustador, não é? – disse o Doador.
Jonas deu uma risadinha.
– Muito assustador. Nem consigo imaginar. Temos realmente de proteger as pessoas das
escolhas erradas.
– É mais seguro.
– É – concordou Jonas. – Muito mais seguro.
Entretanto, quando a conversa se desviou para outros assuntos, Jonas ainda guardava uma
sensação de frustração que não compreendia.
Verificou que agora estava sempre irritado: seus companheiros de grupo despertavam nele
uma irritação sem razão, por estarem satisfeitos com suas vidas, que não tinham nem um pouco
da vibração que a sua estava adquirindo. E sentia irritação contra si mesmo por não poder
mudar isso para eles.
Mas tentou. Sem pedir autorização ao Doador, porque receava – ou sabia com certeza – que
lhe seria negada, tentou transmitir sua nova consciência a seus amigos.
– Asher – disse Jonas certa manhã –, olhe para essas flores com atenção. – Os dois estavam
junto a um canteiro de gerânios plantado perto da Seção dos Registros Abertos. Pôs as mãos
nos ombros de Asher e concentrou-se no vermelho das pétalas, tentando mantê-lo o máximo
possível em sua mente e ao mesmo tempo procurando transmitir a consciência do vermelho a
seu amigo.
– O que houve? – perguntou Asher, incomodado. – Tem alguma coisa errada? – E se
desvencilhou das mãos de Jonas. Era considerado extremamente descortês um cidadão tocar o
outro fora das unidades familiares.
– Não, nada. Achei que estavam murchando e que teríamos de informar à Equipe de
Jardinagem que precisavam ser regadas – suspirou Jonas, afastando-se.
Certa noite, ao voltar de seu treinamento, chegou em casa oprimido por um novo
conhecimento. O Doador escolhera uma lembrança perturbadora e aterrorizante naquele dia.
Sob o toque de suas mãos, ele se vira de repente num lugar completamente estranho: quente,
varrido pelos ventos, sob um vasto céu azul. Havia tufos de capim esparsos, alguns arbustos e
pedras e, nos arredores, ele avistava uma área de vegetação mais cerrada: árvores baixas e
largas se delineavam contra o céu. Ouviu ruídos: o estampido seco de armas – veio-lhe a
expressão fuzil – e depois gritos e um imenso baque surdo como se algo caísse, arrancando os
galhos das árvores no caminho.
Ouviu vozes de homens chamando uns aos outros. Espiando do local onde se encontrava,
escondido atrás de moitas, lembrou que o Doador lhe contara que houvera um tempo em que a
pele das pessoas tinha cores diferentes. Dois desses homens tinham a pele marrom-escura. Os
outros eram claros. Ao aproximar-se, viu-os cortar as presas de um elefante que estava caído
no chão, imóvel, e arrastá-las para longe dali, respingadas de sangue. Sentiu-se assoberbado
pela nova percepção da cor que agora conhecia como sendo o vermelho.
Em seguida os homens partiram apressados na direção do horizonte num veículo que cuspia
pedregulhos de seus pneus em movimento. Um dos pedregulhos atingiu sua testa, ferindo-o.
Mas a lembrança persistiu, apesar de Jonas já estar ansioso para que chegasse ao fim.
Então viu outro elefante surgir do meio das árvores. Muito lentamente, o elefante se
aproximou do corpo mutilado do outro e contemplou-o. Com sua tromba sinuosa, acariciou o
enorme cadáver, depois levantou-a e, de um golpe, arrancou das árvores alguns galhos
cobertos de folhas e estendeu-os por cima da densa massa de carne retorcida.
Finalmente inclinou sua grande cabeça para o alto, ergueu a tromba e lançou um urro para a
paisagem vazia. Jonas nunca ouvira um som semelhante. Era um som de raiva e sofrimento, e
parecia nunca acabar.
O ruído ainda soava em seus ouvidos quando abriu os olhos, angustiado, deitado na cama
onde recebia as lembranças. E continuou a ecoar em sua consciência enquanto pedalava
devagar na volta para casa.
– Lily – disse à irmã naquela noite, quando ela apanhou seu objeto reconfortante na
prateleira: o elefantinho de pano acolchoado –, sabia que antigamente existiam elefantes de
verdade? Vivos?
Ela olhou para seu objeto reconfortante esfarrapado e deu um sorriso forçado.
– É claro – respondeu, cética. – Com certeza, Jonas.
Enquanto seu pai desatava as fitas do cabelo de Lily e a penteava, Jonas foi sentar-se perto
deles. Colocou uma mão no ombro de cada um. Com toda a sua vontade, tentou dar-lhes um
pouco da lembrança: não o grito torturado do animal, mas a existência do elefante, da
exuberante, imensa criatura, e do gesto de cuidado extremo que dispensara ao amigo no final.
Mas seu pai continuou a pentear o cabelo comprido de Lily e a menina, impaciente, acabou
por menear o corpo para se livrar do irmão.
– Jonas, você está me machucando com sua mão.
– Peço desculpas por machucá-la, Lily – balbuciou Jonas, tirando a mão.
– Aceito suas desculpas – respondeu Lily, indiferente, afagando o elefante inanimado.
...
– Doador – Jonas perguntou uma vez, quando se preparavam para o trabalho do dia –, o
senhor não tem cônjuge? Não tem permissão para requerer isso? – Apesar de estar
desobrigado das leis contra a descortesia, percebia que aquela era uma pergunta muito
descortês. Mas o Doador incentivava-o a fazer todas as perguntas que quisesse, não
demonstrando estar constrangido ou ofendido nem mesmo pelas mais pessoais.
O velho achou graça.
– Não, não há nenhuma regra contra isso. E eu já tive. Está esquecendo como sou velho,
Jonas. Ela hoje vive com os Adultos Sem Filhos.
– Ah, é claro.
Jonas esquecera a idade evidente do Doador. Quando os adultos da comunidade
envelheciam, suas vidas mudavam. Não eram mais necessários para criar unidades familiares.
Os próprios pais de Jonas, quando ele e Lily crescessem, iriam morar com os Adultos Sem
Filhos.
– Você poderá requerer um cônjuge se quiser, Jonas. Tenho de preveni-lo, porém, que vai
ser difícil. Sua maneira de viver terá de ser diferente da que é adotada pela maioria das
unidades familiares porque os livros são proibidos aos cidadãos. Você e eu somos os únicos a
ter acesso a eles.
Jonas correu os olhos pela assombrosa coleção de volumes. Agora, de tempos em tempos,
conseguia ver as cores deles. Em todas as horas que haviam passado juntos, ele e o Doador
envolvidos na conversa e na transmissão da memória, Jonas ainda não abrira nenhum dos
livros. Mas lia os títulos aqui e ali e sabia que continham todo o conhecimento de séculos. Um
dia, os livros lhe pertenceriam.
– Quer dizer que, se eu tiver um cônjuge, e talvez filhos, vou ter de esconder os livros
deles?
O Doador assentiu.
– Eu não tinha permissão para partilhar os livros com meu cônjuge, é isso mesmo. E ainda
há outras dificuldades. Lembra-se da regra que diz que o novo Recebedor não pode falar
sobre seu treinamento?
Jonas fez que sim com a cabeça. Claro que lembrava. Acabara sendo de longe a regra mais
frustrante a que ele tinha de obedecer.
– Ao se tornar o Recebedor oficial, quando terminarmos, você receberá um conjunto de
regras inteiramente novo. É a essas regras que obedeço. E acho que não vai ser surpresa para
você saber que estou proibido de conversar sobre meu trabalho com quem quer que seja,
exceto com o novo Recebedor, que é você, claro. Portanto, haverá uma grande parte de sua
vida que você não poderá partilhar com uma família. É duro, Jonas. Foi muito duro para mim.
Compreende que isto é a minha vida? As lembranças?
Jonas balançou a cabeça outra vez, mas estava intrigado. A vida não consistia nas coisas
que se faziam a cada dia? Não havia nada mais além disso realmente.
– Já o vi fazendo caminhadas – disse.
O Doador suspirou.
– Eu caminho. Alimento-me nas horas das refeições. E, quando sou convocado pelo Comitê
de Anciãos, apresento-me a eles para dar-lhes conselhos e opiniões.
– Costuma aconselhá-los com frequência? – Jonas estava um pouco assustado com a ideia
de um dia ser quem daria conselhos aos governantes.
Mas o Doador disse que não.
– Raramente. Só quando estão enfrentando algo que não vivenciaram antes. Então
convocam-me para utilizar as lembranças e aconselhá-los. Mas isso acontece muito pouco. Às
vezes gostaria que me pedissem para usar minha sabedoria mais vezes: há tantas coisas que eu
poderia lhes dizer, coisas que seria bom que modificassem! Mas eles não querem mudanças.
A vida aqui é tão ordenada, tão previsível. Tão indolor. É como eles escolheram.
– Não sei por que precisam de um Recebedor então, se nunca recorrem a ele – comentou
Jonas.
– Eles precisam de mim, sim. E de você – replicou o Doador, sem, contudo, explicar. – Dez
anos atrás, eles lembraram como somos indispensáveis.
– O que aconteceu há 10 anos? – Jonas perguntou. – Ah, sei que o senhor tentou treinar um
sucessor e fracassou. Por quê? Por que isso os fez relembrar que é preciso haver um
Recebedor?
O Doador esboçou um sorriso melancólico.
– Quando a nova Recebedora fracassou, as lembranças que ela recebeu foram liberadas.
Não voltaram para mim. Foram para… – Ele fez uma pausa, parecia estar fazendo um esforço
para se expressar. – Não sei exatamente para onde. Foram para o lugar onde as lembranças
existiam antes de os Recebedores serem criados. Lá para fora – e fez um gesto vago com o
braço. – E daí as pessoas tiveram acesso a elas. Parece que antigamente era assim. Todo
mundo tinha acesso às lembranças. E foi um caos – continuou. – Todos realmente sofreram
durante um tempo. Afinal, à medida que as lembranças eram assimiladas, as pessoas se
acalmaram. Mas tomaram consciência de como realmente precisavam de um Recebedor para
conter todo aquele sofrimento. E todo aquele conhecimento.
– Mas o senhor tem de sofrer desse jeito o tempo todo – observou Jonas.
O Doador concordou.
– E com você será igual. É a minha vida. E vai ser a sua.
Jonas pensou a respeito, imaginou como seria a sua vida.
– Além de caminhar e de se alimentar e – ele correu os olhos pelas paredes cheias de livros
– de ler? É isso?
O Doador assentiu:
– São apenas essas as coisas que faço. Minha vida está aqui.
– Neste quarto?
O Doador sacudiu a cabeça. Levou as mãos à cabeça, ao peito.
– Não. Aqui, na minha pessoa. Onde está a memória.
– Meus instrutores de ciência e de tecnologia nos ensinaram como o cérebro funciona –
contou-lhe Jonas, animadamente. – É cheio de impulsos elétricos. Igual a um computador. Se
uma parte do cérebro for estimulada com um eletrodo… – Jonas parou de falar. Notou uma
expressão esquisita no rosto do Doador.
– Eles não sabem nada – disse, em tom amargo.
A afirmação foi um choque para Jonas. Desde o primeiro dia no aposento do Anexo ambos
tinham deixado de lado as regras sobre a descortesia e àquela altura Jonas já se sentia à
vontade a respeito disso. Mas aquilo era diferente, era muito mais do que uma descortesia.
Era uma acusação terrível. E se alguém tivesse escutado?
Lançou um rápido olhar para o alto-falante da parede, apavorado com a possibilidade de o
Comitê estar ouvindo, como podia fazer em qualquer ocasião. Mas, como sempre, durante as
sessões deles, o botão apontava para DESLIGADO.
– Nada? – Jonas cochichou, nervoso. – Mas meus instrutores…
O Doador abanou a mão como se tirasse alguma coisa da sua frente.
– Ah, seus instrutores são bem treinados. Conhecem os fatos científicos. Todo mundo é bem
treinado para o seu respectivo cargo. A questão é que, sem a memória, nada disso tem sentido.
Entregaram esse fardo a mim. E ao Recebedor anterior. E ao que havia antes dele.
– E ao anterior do anterior do anterior – completou Jonas, repetindo a frase que ouvia
sempre.
O Doador sorriu, embora sua fisionomia parecesse estranhamente ríspida.
– Isso mesmo. E o próximo vai ser você. Uma grande honra.
– É, sim, senhor. Foi o que me disseram na Cerimônia. A maior honra de todas
...
Havia tardes em que o Doador mandava-o embora sem treinamento. Nos dias em que, aochegar, o encontrava curvado sobre si mesmo e balançando o corpo de leve para a frente e
para trás, o rosto pálido, Jonas sabia que seria mandado de volta.
– Pode ir – dizia-lhe o Doador, tenso. – Estou com dor hoje. Volte amanhã.
Nesses dias, preocupado e decepcionado, Jonas ia andar sozinho na beira do rio. Os
caminhos ali costumavam estar desertos àquela hora, à exceção de umas poucas Equipes de
Entregas e de Funcionários de Paisagismo. As crianças pequenas ficavam todas no Centro de
Cuidados à Infância depois da escola e os mais velhos estavam ocupados com o trabalho
voluntário ou o treinamento.
Sem companhia, testava sua memória em desenvolvimento. Observava a paisagem
procurando lampejos do verde, que sabia estar entranhado nas moitas de arbustos; quando
algum clarão momentâneo de cor chegava à sua consciência, ele se concentrava naquele ponto,
mantendo-o no lugar, intensificando-o, segurando-o em sua visão tanto quanto possível até sua
cabeça começar a doer e ele o deixar extinguir-se.
Fitava o céu sem cor, sem contrastes, trazendo-lhe o azul e a lembrança da luz do sol até
que, finalmente, por um instante, pudesse sentir o calor.
Parava ao pé da ponte sobre o rio, que os cidadãos só podiam atravessar em caráter oficial.
Jonas cruzara a ponte em excursões escolares para visitar as comunidades dos arredores e
sabia que as terras além dela eram praticamente iguais, planas e bem organizadas, com
campos para agricultura. As outras comunidades que vira nas visitas eram em essência iguais
à sua; as únicas diferenças eram os estilos de residências ligeiramente modificados ou os
calendários escolares um pouco diferentes.
Perguntava-se o que haveria mais ao longe, aonde nunca fora. As terras não terminavam
além daquelas comunidades vizinhas. Existiriam colinas em Alhures? Haveria vastas regiões
castigadas pelos ventos como o lugar que ele vira na lembrança, o lugar onde o elefante
morrera?
...
Numa tarde seguinte a um dos dias em que fora mandado embora, Jonas perguntou:
– O que o faz sentir dor?
Como o Doador ficou calado, Jonas continuou.
– A Anciã-Chefe me disse, antes de começar, que receber lembranças causa uma dor
terrível. E o senhor me contou que o fracasso da última nova Recebedora liberou lembranças
dolorosas para a comunidade. Mas eu não sofri, Doador, não para valer. – Jonas sorriu. – Ah,
lembro a queimadura de sol que o senhor me deu logo no primeiro dia. Mas não foi tão
terrível assim. O que o faz sofrer tanto? Se desse um pouco para mim, talvez sua dor fosse
menor.
O Doador assentiu.
– Deite-se – disse. – Acho que chegou a hora. Não posso protegê-lo para sempre. Vai ter
que assumir tudo mesmo um dia. Deixe-me pensar – continuou, quando Jonas já se deitara,
esperando meio temeroso. Depois de um momento, disse: – Muito bem, já decidi. Vamos
começar com alguma coisa conhecida. Vamos novamente para o alto de uma colina com um
trenó.
E pousou as mãos nas costas de Jonas.
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