quinta-feira, 23 de julho de 2015

14


Essa lembrança era quase igual à anterior, embora a colina parecesse ser diferente, mais
íngreme, e a neve não caísse tão intensamente quanto da outra vez.
Também fazia mais frio, Jonas percebeu. Sentado no alto da colina, ele via que a neve sob o
trenó não era espessa e macia como antes, mas dura, revestida de gelo azulado.
O trenó se deslocou para a frente e Jonas riu, deliciado, na expectativa da empolgante
descida em meio ao ar revigorante.
Dessa vez, porém, os trilhos do trenó não podiam cortar a superfície congelada do chão
como da anterior, na outra colina acolchoada pela neve. O trenó resvalou para um lado e
ganhou impulso. Jonas puxou a corda, tentando guiá-lo, mas o declive muito acentuado e a
velocidade tiraram-lhe o controle das mãos e, em vez da sensação de liberdade, veio o terror
de se ver à mercê da louca aceleração para baixo sobre o gelo deslizante.
Rodopiando de lado, o trenó bateu num monte e, com a sacudida, Jonas soltou-se e foi
arremessado violentamente para o alto. Caiu em cima de sua perna torcida e ouviu um osso
estalar. Arrastou o rosto pelo gelo cheio de arestas pontiagudas e, quando finalmente parou,
ficou imóvel, em choque, sem sentir nada no início; apenas medo.
Então veio a primeira onda de dor. Ele arquejou. Era como se tivesse um machado enfiado
em sua perna, cortando cada nervo, com a lâmina em brasa. Em sua agonia, percebeu a
palavra “fogo” e sentiu labaredas devorando-lhe o osso e a carne dilacerados. Tentou mexerse
e não conseguiu. A dor aumentou.
Ele gritou. Não teve resposta.
Soluçando, virou a cabeça e vomitou na neve congelada. Pingou sangue dos cortes de seu
rosto no vômito.
– Nããão! – berrou, e o som desapareceu na paisagem deserta, no vento.
Então, subitamente, estava de volta no quarto do Anexo, contorcendo-se na cama, o rosto
molhado de lágrimas.
Agora, já podendo se mexer, balançou o corpo para a frente e para trás, respirando fundo
para se livrar da lembrança da dor.
Sentou-se e olhou para a perna estendida na cama, intacta. A parte dilacerante da dor se
fora. Mas a perna ainda doía horrivelmente e sentia o rosto arder.
– Pode me dar um alívio para a dor, por favor? – suplicou. Na vida diária, o remédio era
sempre fornecido para contusões e ferimentos, para um dedo imprensado, uma dor de
estômago, um joelho ralado em uma queda de bicicleta. Havia sempre à disposição uma dose
de pomada anestésica ou um comprimido; e, nos casos mais graves, uma injeção que
proporcionava alívio completo e instantâneo.
Mas o Doador disse que não e desviou o rosto.
Mancando, Jonas foi a pé para casa naquela noite, empurrando a bicicleta. A queimadura de
sol tinha sido insignificante, em comparação, e não permanecera nele. Mas aquela dor não
passava.
Não era insuportável, como havia sido a dor na colina. Jonas procurou ser corajoso.
Relembrou que a Anciã-Chefe dissera que ele era corajoso.
– Algum problema, Jonas? – perguntou seu pai na hora da refeição da noite. – Você está tão
calado hoje. Não está se sentindo bem? Quer tomar algum remédio?
Mas Jonas lembrou-se das regras. Nada de remédio para qualquer coisa relacionada ao seu
treinamento. E nada de comentar sobre o treinamento. Na hora da partilha de sentimentos,
disse simplesmente que estava cansado, que suas aulas na escola tinham sido puxadas demais
naquele dia.
Foi cedo para seu dormitório e, através da porta fechada, ouviu seus pais e sua irmã rindo
enquanto davam banho em Gabriel.
Eles nunca experimentaram a dor, pensou. Sentiu uma solidão desesperada ao se dar conta
daquilo e friccionou a perna que latejava. Acabou dormindo. Sonhou várias vezes seguidas
com a angústia e o isolamento que sentira na colina deserta.
O treinamento diário continuou e agora sempre incluía a dor. A agonia da perna fraturada
começou a parecer um leve incômodo à medida que o Doador conduzia Jonas firmemente,
pouco a pouco, para o profundo e terrível sofrimento do passado. A cada vez, em sua
bondade, o Doador encerrava a tarde com uma lembrança prazerosa e colorida: um ágil barco
à vela singrando um lago azul-esverdeado; uma campina salpicada de flores silvestres
amarelas; um pôr do sol alaranjado por trás de montanhas. Mas nada era suficiente para
amenizar a dor que Jonas agora estava começando a conhecer.
– Por quê? – perguntou Jonas depois de receber uma lembrança torturante na qual fora
negligenciado e não recebera alimento; a fome causara espasmos lancinantes em seu estômago
vazio, distendido. Jazia na cama, cheio de dores. – Por que o senhor e eu temos de conservar
essas lembranças?
– Elas nos dão sabedoria – respondeu o Doador. – Sem sabedoria, não poderia
desempenhar a minha função de aconselhar o Comitê dos Anciãos quando eles me
convocassem.
– Mas qual é a sabedoria que se adquire por meio da fome? – gemeu Jonas. Seu estômago
ainda doía, embora a lembrança já tivesse terminado.
– Há muitos anos, antes do seu nascimento – contou-lhe o Doador –, um grupo de cidadãos
encaminhou uma petição ao Comitê dos Anciãos. Queriam aumentar a taxa de nascimentos.
Sugeriam que cada Mãe-biológica fosse incumbida de quatro nascimentos em vez de três, a
fim de que a população crescesse e houvesse mais Operários disponíveis.
Jonas assentiu, escutando.
– Faz sentido – disse.
– A ideia era a de que determinadas unidades familiares podiam incluir mais um filho.
Jonas balançou a cabeça de novo.
– A minha poderia – observou. – Gabriel está conosco este ano, e é divertido ter uma
terceira criança em casa.
– O Comitê dos Anciãos pediu a minha opinião – disse o Doador. – Também fazia sentido
para eles, mas era uma ideia nova e vieram a mim em busca de sabedoria.
– E o senhor usou suas lembranças?
O Doador disse que sim.
– E a lembrança mais forte que me ocorreu foi a da fome. Vinha há muitas gerações. De
séculos atrás. A população cresceu tanto que havia fome em toda parte. Uma fome torturante,
devastadora. E em seguida veio a guerra.
Guerra? Jonas não conhecia aquele conceito. Mas a fome já era sua conhecida a essa altura.
Inconscientemente, esfregou a barriga, rememorando como era doloroso não satisfazer suas
necessidades.
– E aí o senhor explicou isso a eles?
– Eles não querem saber o que é dor. Buscam apenas meus conselhos. Limitei-me a
aconselhá-los a não aumentar a população.
– Mas o senhor disse que isso foi antes de eu nascer. Eles quase não o procuram para se
aconselharem. Só quando… o que o senhor disse mesmo? Quando surge um problema que eles
nunca enfrentaram antes. Quando foi a última vez que isso aconteceu?
– Lembra-se do dia em que o avião sobrevoou a comunidade?
– Lembro. Fiquei com medo.
– Eles também. Prepararam-se para abatê-lo a tiros. Mas vieram me pedir conselho. Eu
disse para esperarem.
– Mas como o senhor sabia? Como sabia que o piloto estava perdido?
– Eu não sabia. Usei minha sabedoria, obtida através das lembranças. Sabia que houve
ocasiões no passado, em épocas terríveis, em que as pessoas destruíram outras
apressadamente, por medo, e isso resultou na sua própria destruição.
Jonas se deu conta de algo:
– Isso significa – disse ele devagar – que o senhor tem lembranças de destruição. E também
que precisa transmiti-las para mim, porque preciso adquirir sabedoria.
O Doador balançou a cabeça.
– Mas isso vai ser doloroso – constatou Jonas. Não era uma pergunta.
– Extremamente doloroso – confirmou o Doador.
– Mas por que todo mundo não pode ter as lembranças? Acho que seria um pouco mais fácil
se as lembranças fossem partilhadas. O senhor e eu não teríamos de suportar tanta coisa
sozinhos se todas as outras pessoas assumissem uma parte disso.
O Doador suspirou.
– Tem razão – disse. – Mas nesse caso seria pesado e doloroso para todos. Eles não querem
isso. E é esta a verdadeira razão por que o Recebedor é tão vital para eles e tão reverenciado.
Eles me escolheram, e escolheram você, para tirar deles esse fardo.
– Quando foi que decidiram isso? – perguntou Jonas, irritado. – Não foi uma decisão justa.
Vamos mudar isso!
– E qual é a sua sugestão para fazer a mudança? Nunca encontrei uma saída, e olhe que
presumivelmente sou eu o detentor de toda a sabedoria.
– Agora somos dois – retrucou Jonas, veemente. – Juntos, podemos pensar em alguma
coisa.
O Doador fitou-o com ar irônico.
– Por que simplesmente não requeremos uma mudança das regras? – sugeriu Jonas.
O Doador deu uma risada; então, relutantemente, Jonas também riu.
– A decisão foi tomada muito antes do meu tempo ou do seu – disse o Doador –, e antes do
Recebedor anterior, e… – ele esperou.
– E antes do anterior do anterior do anterior – Jonas repetiu a frase conhecida. Achara graça
nela algumas vezes. Em outras, parecera-lhe significativa e importante.
Agora soava ameaçadora. Queria dizer, ele sabia, que nada podia ser mudado.
                                                                          ...

Gabriel, a criança-nova, estava crescendo e passara com sucesso pelos exames de maturidade
que os Criadores faziam todo mês; já se sentava sozinho, estendia a mão para pegar pequenos
objetos de brincar e tinha seis dentes. Durante o dia, relatou o Pai, ele era alegre e
demonstrava ter uma inteligência normal. Mas ficava inquieto à noite, choramingando muitas
vezes e necessitando de atenção frequente.
– Depois de todo esse tempo adicional que dediquei a ele – disse o Pai numa noite, quando
acabou de dar banho em Gabriel que, naquele momento, abraçava placidamente seu
hipopótamo, deitado no pequeno berço que viera substituir o cesto. – Tomara que não
resolvam dispensá-lo.
– Talvez fosse melhor – sugeriu a Mãe. – Sei que você não se importa em levantar à noite
por causa dele, mas a falta de sono é muito incômoda para mim.
– Se eles dispensarem Gabriel, será que podemos ter outra criança-nova como visitante? –
perguntou Lily, ajoelhada ao lado do berço e fazendo caretas engraçadas para o pequeno, que
sorria para ela.
A mãe de Jonas revirou os olhos, desanimada.
– Não – disse o Pai, sorrindo e arrepiando o cabelo de Lily. – É muito raro, de qualquer
forma, que a situação legal de uma criança-nova seja tão incerta quanto a de Gabriel. Não
deve acontecer outra vez tão cedo. Seja como for – suspirou ele –, vai levar algum tempo até
decidirem. No momento estamos todos nos preparando para uma dispensa que provavelmente
vamos ter de fazer muito em breve. Uma Mãe-biológica vai ter meninos gêmeos no próximo
mês.
– Oh, céus – disse a Mãe, sacudindo a cabeça. – Se forem idênticos, espero que não seja
você o encarregado…
– Sou eu mesmo. Sou o seguinte na lista. Terei de escolher o que vai ser criado e o que vai
ser dispensado. Não costuma ser difícil, porém. Em geral, é só uma questão de peso.
Dispensamos o menor dos dois.
Jonas, que estava escutando, pensou de repente no que lhe viera à mente naquele dia junto
da ponte, no que haveria em Alhures. Haveria alguém lá, esperando, que receberia o
pequenino gêmeo dispensado? E será que ele cresceria em Alhures sem jamais saber que
naquela comunidade vivia uma pessoa exatamente igual a ele?
Por um instante sentiu um fio tênue de esperança, que sabia ser uma bela de uma tolice:
esperou que pudesse ser Larissa a receber o pequeno. Larissa, a mulher idosa em quem ele
dera banho. Lembrou-se do brilho de seus olhos, de sua voz suave, de sua risadinha abafada.
Fiona lhe dissera recentemente que Larissa havia sido dispensada com uma cerimônia
maravilhosa.
Mas ele sabia que os Idosos não recebiam crianças para cuidar. A vida de Larissa em
Alhures seria tranquila e serena como convinha aos Idosos; não lhe agradaria a
responsabilidade de criar uma criança-nova, que precisava ser alimentada e tratada e que,
certamente, choraria à noite.
– Mãe? Pai? – disse ele, ocorrendo-lhe inesperadamente uma ideia. – Por que não botamos
o berço de Gabriel no meu dormitório esta noite? Sei como alimentá-lo e acalmá-lo, e assim
ele deixaria vocês dormirem um pouco.
O Pai ficou indeciso.
– Você tem um sono tão pesado, Jonas. E se você não acordar com a agitação dele?
Foi Lily quem respondeu.
– Quando ninguém dá atenção a Gabriel, ele grita muito alto – salientou ela. – Ele vai
acordar nós todos se Jonas, ainda assim, continuar dormindo.
O Pai riu.
– Tem razão, Lilyzinha. Está bem, Jonas, vamos tentar só por esta noite. Vou tirar uma folga
e a Mãe também vai poder dormir.
                                                                         ...
Gabriel dormiu direto na primeira parte da noite. Jonas, em sua cama, ainda ficou um pouco
acordado; de vez em quando erguia o corpo apoiando-se no cotovelo e dava uma espiada no
berço.
A criança-nova estava de bruços, os braços relaxados ao lado da cabeça, os olhos fechados,
a respiração regular e serena. Finalmente Jonas também adormeceu.
Lá pelo meio da noite, porém, o ruído de Gabriel se agitando acordou Jonas. O menino se
remexia debaixo da coberta, batia com os braços e começava a choramingar.
Jonas levantou-se e foi até o berço. Com delicadeza, deu tapinhas leves nas costas de
Gabriel. Às vezes era o que bastava para fazê-lo voltar a adormecer. Mas a criança-nova
continuou a se contorcer, desassossegada, sob sua mão.
Mantendo os tapinhas ritmados, Jonas lembrou a maravilhosa cena do barco a vela que o
Doador lhe transmitira pouco tempo antes: um dia luminoso, a brisa soprando, o lago de água
clara, cor de turquesa, e a vela branca do barco ondulando, enquanto ele se deslocava na
superfície com o vento ligeiro.
Não teve consciência de estar transmitindo a lembrança, mas logo percebeu que ela se
apagava aos poucos, que descia através de sua mão para a existência da criança-nova. Gabriel
se aquietou. Sobressaltado, Jonas recolheu com esforço o que lhe restava da lembrança. Tirou
a mão das costas pequeninas e ficou parado em silêncio ao lado do berço.
Evocou para si próprio a mesma lembrança do barco velejando. Ela ainda permanecia, mas
o céu estava menos azul, o movimento suave do barco tornara-se mais lento, a água do lago
turvara-se um pouco, parecendo menos clara. Manteve-a em sua mente um pouco para acalmar
o próprio nervosismo com o que acontecera, depois a deixou ir e voltou para sua cama.
Perto do amanhecer, mais uma vez a criança-nova acordou e chorou. Novamente Jonas se
aproximou. Dessa vez foi com determinação que pousou firmemente a mão nas costas de
Gabriel e transmitiu-lhe o resto da lembrança do dia calmo no lago. Mais uma vez Gabriel
adormeceu.
Jonas, entretanto, ficou acordado pensando. Restou-lhe apenas uma partícula daquela
lembrança, da qual sentia uma certa falta. Sabia que poderia pedir ao Doador uma outra cena
de barco a vela. Quem sabe no mar, da próxima vez, pois agora Jonas possuía a memória do
mar, sabia o que era; sabia que lá também havia barcos a vela, em lembranças ainda a serem
adquiridas.
Ponderou, contudo, se deveria confessar ao Doador que passara uma lembrança adiante.
Ainda não tinha competência para ser um Doador; e muito menos Gabriel fora escolhido para
ser Recebedor.
O fato de ter esse poder assustava-o. Decidiu que não contaria nada.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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