ficou menos larga, o solo mais acidentado, aparentemente não mais cuidado pelas equipes de
manutenção de estradas. Passou a ser mais complicado, de repente, equilibrar-se na bicicleta,
com a roda dianteira oscilando por cima de pedras e buracos.
Numa noite, Jonas caiu quando a bicicleta parou subitamente ao bater numa pedra.
Instintivamente ele agarrou Gabriel; mas a criança-nova, bem presa pelas correias de sua
cadeirinha, não se machucou, apenas levou um susto quando a bicicleta tombou para um lado.
Jonas, porém, torceu um tornozelo, arranhou muito os joelhos e o sangue manchou suas calças
rasgadas. Todo doído, pôs-se de pé, aprumou a bicicleta e tranquilizou Gabe.
Aos poucos, começou a viajar à luz do dia. Esquecera-se do medo das buscas, que pareciam
ter recuado no passado. Agora havia novos medos; na paisagem desconhecida escondiam-se
perigos ignorados.
As árvores se tornaram mais numerosas, as florestas que margeavam a estrada eram escuras
e densas de mistérios. Viam rios com mais frequência e paravam várias vezes para beber
água. Jonas lavava com cuidado seus joelhos feridos, estremecendo ao esfregar a carne
exposta. Aliviava a dor constante em seu tornozelo inchado enfiando-o, de vez em quando, na
água fria que corria nas valas junto ao caminho.
Conscientizara-se de que a segurança de Gabriel dependia inteiramente da continuidade de
sua força física.
Viram pela primeira vez uma cachoeira; pela primeira vez, animais selvagens.
– Vião! Vião! – exclamou Gabriel, e Jonas desviou depressa a bicicleta para o meio das
árvores, apesar de não ter visto nenhum avião em muitos dias e não estar escutando nenhum
motor naquele momento. Quando parou entre a vegetação e virou-se para apanhar Gabe, a
mãozinha gorducha apontava para o céu.
Apavorado, olhou para cima, mas não era nenhum avião. Embora nunca tivesse visto aquilo
antes, identificou-o em suas lembranças apagadas, pois o Doador lhe transmitira muitas com
aquela imagem. Era um pássaro.
Logo, muitos pássaros surgiram ao longo do percurso, pairando no alto, chamando. Viram
cervos e, uma vez, na beira da estrada, olhando para eles, curiosa e sem temor, uma
criaturinha castanho-avermelhada com uma cauda espessa cujo nome Jonas não sabia.
Diminuiu a velocidade da bicicleta e os dois se encararam até a criatura se virar e
desaparecer no interior do bosque.
Tudo isso era novo para ele. Depois de uma vida de mesmice e previsibilidade, estava
admirado com as surpresas que havia em cada curva do caminho. A bicicleta ia mais devagar
quando ele queria olhar, maravilhado, as flores silvestres, ou escutar o gorjeio gutural de um
novo pássaro nas proximidades, ou meramente apreciar a maneira como o vento agitava as
folhas das árvores. Durante os seus 12 anos de vida na comunidade nunca experimentara tais
momentos simples de delicada felicidade.
Mas também havia medos desesperados que se acumulavam em seu íntimo. O mais constante
deles era o de morrer de fome. Como os campos cultivados tinham ficado para trás, agora era
quase impossível encontrar comida. Acabaram com a escassa reserva de batatas e cenouras
obtidas na última região agrícola e estavam sempre com fome.
Jonas se ajoelhou na margem de um rio e tentou pegar um peixe com as mãos. Frustrado,
jogou pedras na água, mesmo sabendo que não adiantava nada. Finalmente, em desespero,
improvisou uma rede, amarrando fios do cobertor de Gabriel num graveto recurvado.
Depois de incontáveis tentativas, a rede trouxe dois peixes prateados que se debatiam.
Metodicamente, usando uma pedra afiada, Jonas os cortou em pedaços, que ele e Gabriel
comeram crus. Comeram também algumas frutinhas silvestres e tentaram apanhar um pássaro,
mas sem sucesso.
À noite, enquanto Gabriel dormia ao seu lado, Jonas permanecia desperto, torturado pela
fome, e lembrava a vida na comunidade, onde as refeições eram entregues todos os dias em
cada residência.
Tentou utilizar o debilitado poder de sua memória para recriar refeições e conseguiu evocar
breves e inalcançáveis fragmentos: banquetes com imensos assados; festas de aniversário com
bolos confeitados com espesso glacê açucarado; frutas viçosas que ele colhia em árvores e
comia, suculentas, ainda quentes do calor do sol.
Entretanto, quando os lampejos das lembranças se dissipavam, só o que lhe restava era o
doloroso e angustiante vazio. Jonas relembrou subitamente, deprimido, da ocasião na sua
infância em que fora punido por se expressar de maneira imprópria. A expressão era
“morrendo de fome”.
“Você jamais vai morrer de fome. Nunca esteve morrendo de fome”, disseram-lhe.
Agora estava. Se tivesse ficado na comunidade, não estaria. Muito simples. Antes ansiava
por ter o direito de escolher. Depois, quando teve oportunidade, fizera a escolha errada: a de
fugir. E agora estava morrendo de fome.
Mas se tivesse ficado lá…
Suas reflexões continuaram. Se tivesse ficado lá, teria morrido de outras fomes. Teria
vivido uma vida com fome de sentimentos, de cores, de amor.
E Gabriel, então? Para Gabriel, não haveria vida de espécie alguma. Portanto, na realidade,
não tivera escolha.
Enfraquecido pela falta de comida, tornou-se uma dificuldade para Jonas fazer a bicicleta
andar, ainda mais que, ao mesmo tempo, se aproximavam de algo que ele desejava
ardentemente ver: colinas. Seu tornozelo torcido latejava quando ele impulsionava o pedal,
num esforço quase além de sua capacidade.
E o tempo estava mudando. Choveu durante dois dias. Jonas nunca vira chuva, embora a
tivesse vivenciado com frequência nas lembranças. Gostara daquelas chuvas, apreciara a nova
sensação, mas desta vez era diferente. Ele e Gabriel, encharcados, sentiam frio, e era difícil
ficarem secos outra vez, mesmo quando o sol saía em seguida.
Gabriel até então não chorara durante a longa e assustadora viagem. Agora chorava.
Chorava porque estava com fome, com frio e terrivelmente fraco. Jonas chorava também pelas
mesmas razões e por uma outra ainda. Chorava porque tinha medo de não poder salvar
Gabriel. Não se importava mais consigo mesmo.
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