quinta-feira, 23 de julho de 2015

21


Daria certo. Eles conseguiriam fazer tudo dar certo, Jonas disse a si mesmo uma porção de
vezes naquele dia.
Mas à noite tudo mudou. Tudo – todas as coisas que eles tinham calculado tão
meticulosamente – , tudo se desmantelou
                                                                          ...
Naquela noite, Jonas foi obrigado a fugir. Deixou a residência logo depois que o céu
escureceu e a comunidade se aquietou. Era extremamente perigoso, porque as equipes de
trabalho ainda estavam circulando. Mas ele avançou furtivamente, em silêncio, mantendo-se
nas sombras, passando pelas residências de luzes apagadas e a Praça Central vazia, seguindo
na direção do rio. Além da Praça, avistou a Casa dos Idosos, com o Anexo atrás, desenhandose
contra o céu noturno. Mas não poderia parar ali. Não havia tempo. Cada minuto contava
agora, e cada minuto precisava levá-lo para mais longe da comunidade.
Chegou à ponte, curvado sobre a bicicleta, pedalando sem interrupção. Via a água escura
agitar-se lá embaixo.
Surpreendentemente, não sentia medo nem qualquer pena de deixar a comunidade para trás.
No entanto, experimentava uma tristeza profunda ao abandonar seu amigo mais próximo. Sabia
que o perigo de sua fuga impunha-lhe um silêncio absoluto; mas, com todo o seu coração e sua
mente, chamava e esperava que o Doador, com sua capacidade de ouvir além, soubesse que

Jonas dissera adeus.
                                                                         ...

Acontecera durante a refeição da noite. A unidade familiar estava reunida à mesa, como
sempre: Lily tagarelando sem parar, a Mãe e o Pai fazendo seus comentários habituais (e
contando mentiras, Jonas sabia) sobre o dia. Ali por perto, Gabriel brincava no chão,
contente, balbuciando sua conversinha de bebê, de vez em quando olhando radiante para
Jonas, claramente encantado por vê-lo de volta depois da inesperada noite passada fora da
residência.
O Pai lançou um olhar ligeiro para o pequeno.
– Aproveite bem, rapazinho – disse. – Esta é a sua última noite aqui como visitante.
– Como assim? – Jonas perguntou.
O Pai deu um suspiro de desapontamento.
– Bem, você deve ter visto que ele não estava aqui de manhã quando você voltou para casa
porque o levamos para passar a noite no Centro de Criação. Achamos que seria uma boa
oportunidade, com você ausente, para fazer uma tentativa, já que ele vinha dormindo tão bem.
– Não foi bem? – a Mãe perguntou, solidária.
O Pai deu uma risadinha amarga.
– Você nem imagina. Foi um desastre. Parece que ele chorou a noite inteira. A equipe
noturna não conseguiu dar conta do problema. Quando cheguei para trabalhar, eles estavam
realmente exauridos.
– Gabe, seu danadinho – disse Lily, e estalou a língua para repreender o pequenino, que
sorriu para ela sentado no chão.
– Sendo assim – prosseguiu o Pai –, obviamente tivemos de tomar uma decisão. Até eu votei
a favor da dispensa de Gabriel na reunião desta tarde.
Jonas pousou o garfo e olhou fixo para o Pai.
– Dispensa? – perguntou.
Seu pai fez que sim com a cabeça.
– Fizemos tudo o que podíamos, não fizemos?
– Ah, com toda certeza – concordou a Mãe, enfática.
Lily também balançou a cabeça, concordando.
Jonas se esforçou para manter a voz absolutamente calma.
– Quando? – perguntou. – Quando ele vai ser dispensado?
– Amanhã cedo. Temos de começar nossos preparativos para a Cerimônia de Nomeação,
por isso achamos melhor cuidar disso de uma vez. – E, com a sua voz meiga, cantarolou: –
Vamos dar adeusinho para você de manhã, Gabe.
                                                                                  ...
Jonas alcançou o lado oposto do rio, parou um instante e olhou para trás. A comunidade onde
vivera a sua vida inteira estava lá, dormindo. Ao amanhecer, a vida ordenada, disciplinada,
que ele sempre conhecera, recomeçaria sem ele. A vida em que nada jamais era inesperado.
Ou inconveniente. Ou fora do comum. A vida sem cor, sem dor, sem passado.
Pisou com força no pedal e retomou seu percurso pela estrada. Não era seguro perder tempo
olhando para trás. Pensou em todas as regras que infringira até aquele momento: tantas que, se
fosse apanhado agora, seria condenado.
Primeiro, saíra da residência à noite. Uma transgressão das mais graves.
Segundo, roubara alimentos da comunidade: um crime muito sério, apesar de ele ter
apanhado apenas as sobras deixadas nas portas das residências para serem recolhidas.
Terceiro, roubara a bicicleta de seu pai. Hesitara um pouco, parado junto ao bicicletário, no
escuro, sem querer levar nada de seu pai, mas ao mesmo tempo em dúvida se seria ou não
desconfortável andar na bicicleta maior quando estava tão acostumado com a sua.
Isso era necessário, porém, porque a bicicleta do pai tinha a cadeirinha presa atrás.
E ele havia trazido Gabriel também. 
                                                                       ...
Sentia a cabecinha apoiada em suas costas, batendo de leve nele enquanto pedalava. Gabriel
dormia um sono pesado, preso ao assento. Antes de sair da residência, Jonas pousara as mãos
com firmeza nas costas de Gabe e lhe transmitira a lembrança mais calma possível: uma rede
balançando devagar debaixo de palmeiras, numa ilha qualquer, à noite, com o som ritmado da
água batendo preguiçosamente, hipnoticamente, numa praia próxima. À medida que a
lembrança passava dele para a criança-nova, sentia o sono de Gabe ir ficando mais relaxado e
profundo. O menino nem se mexeu quando Jonas o tirou do berço e o colocou delicadamente
na cadeirinha.
Jonas sabia que dispunha do que ainda restava das horas noturnas antes que dessem por sua
fuga. De modo que pedalou com força, com persistência, determinado a não se cansar à
medida que os minutos e os quilômetros iam passando. Não houvera tempo para receber as
lembranças que ele e o Doador tinham planejado, de força e de coragem. Assim, confiava no
que possuía e esperava que fosse suficiente.
Contornou as comunidades dos arredores com suas residências às escuras. Gradualmente, a
distância entre as comunidades se ampliou, e ele percorreu extensões mais longas de estrada
deserta. No início, suas pernas doíam; com o correr do tempo ficaram dormentes.
Quando amanheceu, Gabriel começou a mexer-se. Encontravam-se num lugar isolado;
árvores e moitas formando pequenos bosques se espalhavam aqui e ali nos campos que se
estendiam dos dois lados da estrada. Jonas avistou um riacho e seguiu em direção a ele por
uma campina cheia de sulcos e pequenas elevações; Gabriel, bem acordado, dava risadinhas
quando a bicicleta o sacudia para cima e para baixo.
Jonas parou, soltou Gabe, tirou-o da bicicleta e o deixou investigar, deliciado, a grama e os
gravetos do chão. Escondeu com todo o cuidado a bicicleta entre moitas espessas.
– Refeição da manhã, Gabe!
Desembrulhou um pouco de comida e os dois se alimentaram. Depois encheu com água do
riacho a caneca que trouxera e segurou-a para Gabriel beber. Ele próprio, sedento, bebeu em
seguida e sentou-se perto do riacho, vendo a criança-nova brincar.
Estava exausto. Sabia que precisava dormir, descansar os músculos e preparar-se para mais
horas de bicicleta. Não seria seguro viajar durante o dia claro.
Logo estariam procurando por eles.
Encontrou um lugar abrigado no meio das árvores, levou o pequeno para lá e deitou-se,
segurando Gabriel. O menino se debateu, alegre, achando que aquilo fosse uma brincadeira de
lutar igual às que faziam em casa, com cócegas e gargalhadas.
– Desculpe, Gabe – disse-lhe Jonas. – Sei que é de manhã e que você acabou de acordar,
mas agora temos de dormir.
Aconchegou o pequeno perto de si e friccionou-lhe as costas, murmurando-lhe palavras
calmas. Então, com uma pressão firme das mãos, transmitiu-lhe uma lembrança de um cansaço
satisfeito e profundo. A cabeça de Gabriel balançou e daí a pouco relaxou de encontro ao
peito de Jonas.
Juntos, os dois fugitivos dormiram durante todo o perigoso primeiro dia
                                                                                 ...
O mais apavorante eram os aviões. Haviam-se passado dias; Jonas não sabia mais quantos. A
viagem tinha adquirido um ritmo automático: o sono durante o dia, escondidos entre a
vegetação e as árvores; a procura de água; a cuidadosa divisão das sobras de comida,
acrescida do que ele conseguia encontrar nos campos; e os intermináveis, infindáveis
quilômetros percorridos de bicicleta à noite.
Os músculos de suas pernas estavam agora endurecidos. Doíam quando ele se deitava para
dormir. Estavam mais fortes, entretanto, e ele parava com menos frequência para descansar.
De vez em quando fazia uma pausa e descia Gabriel da bicicleta para um pouco de exercício.
No escuro, os dois corriam juntos pela estrada ou através de um campo. Quando voltava,
instalava o dócil pequeno em sua cadeirinha e montava outra vez na bicicleta: suas pernas
estavam sempre preparadas para continuar a pedalar. Isso significava que possuía força
bastante e não teria precisado da que o Doador lhe forneceria se tivessem tido tempo.
No entanto, quando vieram os aviões, ele desejou ter recebido pelo menos a coragem. Sabia
que eram aviões de busca. Voavam tão baixo que o acordavam com o barulho dos motores, e
às vezes, olhando temeroso para cima de dentro de seu esconderijo, quase conseguia distinguir
os rostos dos tripulantes. Sabia também que eles não enxergavam cores e que a pele dos dois,
bem como os claros cachos dourados de Gabriel, não passariam de manchas cinzentas no meio
da folhagem sem cor. Mas lembrava-se do que aprendera nas aulas de ciência e tecnologia da
escola: os aviões de busca utilizavam sensores térmicos capazes de identificar o calor de um
corpo e de detectar a presença de dois seres humanos encolhidos entre moitas de arbustos.
Assim, sempre que ouvia o ruído de um avião, Jonas segurava Gabriel e transmitia-lhe
lembranças de neve, reservando um pouco para si. Juntos, ficavam gelados; e, depois que os
aviões desapareciam, tremiam de frio abraçados até o sono voltar.
Em algumas ocasiões, ao transmitir as lembranças para Gabriel, Jonas notava que estavam
mais superficiais, mais fracas do que antes. Era precisamente o que esperava, o que ele e o
Doador tinham planejado: à medida que se afastasse de casa, deixaria as lembranças para trás,
para o povo da comunidade. Agora que necessitava delas, entretanto, esforçava-se para
preservar as que ainda tinha, as do frio, por exemplo, a fim de usá-las para a sobrevivência de
ambos.
O avião vinha geralmente durante o dia, quando estavam escondidos. Mas ele se mantinha
alerta também à noite, na estrada, sempre à escuta, atento ao som de motores. Até Gabriel
escutava e gritava: “Vião! Vião!”, muitas vezes antes que Jonas tivesse percebido o terrível
som. Quando os aviões de busca vinham à noite, o que acontecia esporadicamente, Jonas
corria para a árvore ou o arbusto mais próximos, jogava-se no chão e fazia os corpos dos dois
esfriarem. Mas às vezes era por um triz e era assustador.
Pedalando noites adentro, já atravessando uma paisagem isolada, com as comunidades já
bem distantes e nenhum sinal de habitação humana ao redor ou adiante, ainda assim ele
mantinha uma vigilância constante, sempre à procura de um esconderijo próximo para abrigá-
los caso ouvisse o ruído de motores aproximando-se.
Mas a presença dos aviões foi ficando menos frequente. Vinham menos vezes e, quando
surgiam, voavam mais depressa, como se agora a busca fosse ocasional e sem muita
esperança.
Finalmente houve um dia e uma noite inteiros em que nenhum avião apareceu.
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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