pensou ele. “Assustado” queria dizer aquela sensação intensa e nauseante de que algo horrível
está prestes a acontecer. Assustado foi como se sentiu no ano anterior, quando uma aeronave
não identificada sobrevoou duas vezes a comunidade. Ele a viu em ambas as vezes. Apertando
os olhos para o céu, viu passar o jato esguio e brilhante, quase um borrão por causa da alta
velocidade, e, um segundo depois, escutou a explosão de som que se seguiu. Então,
novamente, da direção oposta, veio o mesmo avião.
Primeiro ele ficou apenas fascinado. Nunca vira uma aeronave tão de perto, pois era contra
as regras os Pilotos voarem por cima da comunidade. Vez por outra, quando aviões de carga
entregavam provisões no campo de pouso do outro lado do rio, as crianças iam de bicicleta
até a margem e observavam, curiosas, a descarga e, em seguida, a decolagem rumo ao oeste,
sempre para longe da comunidade.
Mas o avião do ano passado tinha sido diferente. Não era um daqueles aviões de sempre,
atarracados, de bojo largo, mas um jato de nariz fino e próprio para um único tripulante.
Quando olhou em torno de si, ansioso, Jonas viu outras pessoas, adultos também, além das
crianças, interromperem o que faziam e esperarem, confusas, por uma explicação sobre o
acontecimento assustador.
Então todos os cidadãos ouviram a ordem para entrarem no prédio mais próximo e
permanecerem lá. IMEDIATAMENTE, disse a voz rascante através dos alto-falantes. DEIXEM SUAS
BICICLETAS ONDE ESTÃO.
No mesmo instante, obediente, Jonas deixou sua bicicleta no caminho, atrás da residência de
seus pais. Correu para dentro e ficou lá, sozinho. Seus pais estavam no trabalho, e sua
irmãzinha, Lily, estava no Centro de Cuidados à Infância, onde costumava ficar depois do
horário escolar.
Ao espiar pela janela da frente, não viu ninguém: nenhuma pessoa das equipes de
Limpadores de Ruas, de Funcionários de Paisagismo ou de Entregadores de Alimentos que,
todas as tardes, naquela hora do dia, circulavam atarefadas pela comunidade. Avistou apenas
bicicletas abandonadas, deitadas de lado aqui e ali; a roda de uma delas, virada para cima,
ainda girava devagar.
Naquela ocasião ele tinha ficado assustado. A impressão causada por sua comunidade
silenciosa, esperando alguma coisa, dera-lhe um aperto no estômago. Fizera-o tremer.
Mas não fora nada. Em poucos minutos os alto-falantes estalaram de novo e a voz,
tranquilizadora dessa vez e menos urgente, explicara que um Piloto-em-Treinamento não
compreendera direito suas instruções de voo, fizera um percurso errado e, ansiosamente,
tentara voltar antes que seu erro fosse percebido.
EVIDENTEMENTE ELE SERÁ DISPENSADO, disse a voz, seguida de silêncio. Havia um tom
irônico na mensagem final, como se o Locutor estivesse achando graça; e Jonas sorriu de leve,
mesmo sabendo como aquela declaração era soturna. Afinal, um cidadão contribuinte ser
dispensado da comunidade era uma decisão definitiva, uma punição terrível, uma constatação
esmagadora de fracasso.
Até as crianças eram repreendidas quando usavam a palavra levianamente, no meio de uma
brincadeira, para zombar de um companheiro que deixasse de apanhar uma bola ou tropeçasse
numa corrida. Jonas fizera isso uma vez, gritando para seu melhor amigo: “É isso aí, Asher!
Você está dispensado!” – quando, com um erro tolo, ele havia feito seu time perder uma
partida. O treinador chamou Jonas num canto para uma conversa séria e rápida, ele baixou a
cabeça, envergonhado e cheio de culpa, e foi pedir desculpas a Asher depois do jogo.
Agora, pensando na sensação de medo enquanto pedalava para casa ao longo do caminho do
rio, lembrou aquele momento de terror palpável, do aperto no estômago, quando a aeronave
cortara o céu acima de sua cabeça. Não era igual ao que estava sentindo nesse momento com a
chegada do mês de dezembro. Procurou a palavra certa para definir o que sentia.
Jonas era cuidadoso com a linguagem; ao contrário de seu amigo Asher, que falava depressa
demais e misturava as coisas, fazendo uma salada com as palavras e as frases, de tal modo
que mal se compreendia o que ele dizia, embora de vez em quando soasse muito engraçado.
Jonas deu um sorriso largo, lembrando o dia em que Asher entrara correndo e ofegante na
sala de aula, atrasado como sempre, quando todos já entoavam o cântico da manhã. Quando a
turma se sentou, no fim do hino patriótico, Asher permaneceu de pé para apresentar suas
desculpas em público, como era de praxe.
– Peço desculpas por incomodar minha comunidade de ensino.
Asher disse depressa e de uma vez só a frase-padrão de desculpas, ainda sem fôlego. O
Instrutor e a turma esperaram pacientemente pelas explicações dele. Todos os colegas estavam
sorrindo: já tinham escutado as explicações de Asher muitas vezes antes.
– Saí de casa na hora certa, mas, quando ia passando de bicicleta perto do criadouro de
peixes, a tripulação estava separando uns salmões. Acho que fiquei desorientado observandoos,
foi só. Peço desculpas a meus colegas – concluiu Asher. Ele alisou o uniforme amassado e
sentou-se.
– Aceitamos suas desculpas, Asher. – A turma recitou em uníssono a resposta-padrão.
Muitos mordiam os lábios para não rir.
– Aceito suas desculpas, Asher – disse o Instrutor, sorrindo. – E obrigado, porque mais uma
vez você nos forneceu uma oportunidade para uma lição sobre a língua. “Desorientado” é um
adjetivo forte demais para descrever a observação de salmões. – Virou-se e escreveu
“desorientado” no quadro-negro. Ao lado, escreveu “distraído”.
Jonas, já próximo de casa, sorriu recordando aquilo. Ao fazer sua bicicleta entrar no
estreito bicicletário ao lado da porta, ele se deu conta de que “assustado” era uma palavra
errada para definir seus sentimentos, agora que dezembro estava quase chegando. Era um
adjetivo forte demais.
Havia esperado um tempo enorme por aquele dezembro especial. Agora que quase o
alcançara, ele não estava assustado, mas sim… ansioso, decidiu. Estava ansioso para que
chegasse logo. E também excitado, certamente. Todos os que pertenciam ao grupo de Onze
estavam excitados com o acontecimento que logo viria.
Mas teve um ligeiro estremecimento de nervosismo ao pensar naquilo, no que poderia
acontecer.
Apreensivo, concluiu Jonas. É assim que estou.
– Quem quer ser o primeiro desta noite a falar dos sentimentos? – perguntou o pai de Jonas
quando terminaram a refeição.
Era um dos rituais, o relato noturno dos sentimentos.
Às vezes Jonas e a irmã, Lily, disputavam quem falaria primeiro. Os pais deles, é claro,
participavam do ritual: eles também falavam sobre seus sentimentos a cada noite. Como todos
os pais, entretanto – todos os adultos –, eles não discutiam nem engambelavam ninguém para
ter a vez.
Nem Jonas fez isso naquela noite. Seus sentimentos estavam muito confusos. Queria
partilhá-los com os outros, mas não se sentia muito disposto a começar o processo de peneirar
suas emoções complicadas, nem mesmo com a ajuda que sabia que os pais poderiam lhe dar.
– Você primeiro, Lily – vendo a irmã muito mais nova do que ele (ainda uma Sete)
contorcer-se de impaciência na cadeira.
– Fiquei muito zangada esta tarde – contou Lily. – Meu grupo do Centro de Cuidados à
Infância estava na área de recreação e recebemos a visita de um grupo de Sete que não
obedecia às regras de jeito nenhum. Um deles, um menino, não sei o seu nome, furava a fila
do escorregador o tempo todo, apesar de todos nós estarmos esperando. Fiquei com muita
raiva dele. Fechei a mão para ele assim. – E levantou o punho cerrado, fazendo o resto da
família rir de seu pequeno gesto de desafio.
– Por que acha que os visitantes não obedeceram às regras? – perguntou a Mãe.
Lily refletiu um pouco e sacudiu a cabeça.
– Não sei. Eles agiam como… como…
– Animais? – sugeriu Jonas. E deu uma risada.
– Isso mesmo – disse Lily, rindo também –, como animais.
Nenhuma das duas crianças sabia o significado exato da palavra, que ali costumava ser
usada para descrever pessoas mal-educadas ou desajeitadas, que destoavam da comunidade.
– De onde eram esses visitantes? – perguntou o Pai.
Lily franziu a testa, tentando lembrar.
– Nosso líder nos disse quando fez a apresentação de boas-vindas, mas não consigo
lembrar. Acho que não estava prestando atenção. Eram de uma outra comunidade. Tiveram de
sair muito cedo e fizeram a refeição do meio-dia no ônibus.
A Mãe balançou a cabeça:
– Não acha que talvez as regras deles possam ser diferentes? E que, sendo assim, eles
simplesmente não sabiam quais eram as regras de vocês na área de recreação?
Lily deu de ombros e concordou:
– Imagino que sim.
– Você já visitou outras comunidades antes, não foi? – perguntou Jonas. – O meu grupo já
visitou. Várias vezes.
Lily concordou novamente:
– Quando éramos do Seis, passamos um dia inteiro com um outro grupo de Seis numa escola
da comunidade deles.
– Como você se sentiu quando estava lá?
Lily franziu as sobrancelhas:
– Meio esquisita. Porque os métodos deles eram diferentes. Estavam aprendendo costumes
que meu grupo ainda não tinha aprendido e por isso nos sentimos burros.
O Pai escutava com interesse.
– Estou pensando, Lily – disse ele –, no menino que não obedeceu às regras hoje. Não acha
possível ele ter se sentido esquisito e burro por estar num lugar novo com regras que
ignorava?
Lily ponderou a questão.
– Acho – respondeu, afinal.
– Sinto um pouco de pena dele – disse Jonas –, mesmo sem ao menos o conhecer. Tenho
pena de qualquer pessoa que está num lugar onde se sente esquisita e burra.
– Como se sente agora, Lily? – perguntou o Pai. – Ainda está com raiva?
– Acho que não – concluiu Lily. – Acho que estou com um pouco de pena. E arrependida por
ter mostrado o punho para ele.
Jonas devolveu o sorriso para a irmã. Os sentimentos de Lily eram sempre sinceros,
espontâneos, bastante simples, geralmente fáceis de solucionar. Imaginava que os seus também
tinham sido quando era um Sete.
Escutou educadamente, embora não prestasse muita atenção, seu pai descrever, por sua vez,
um sentimento de preocupação que o acometera aquele dia no trabalho: preocupação com uma
das crianças-novas que não ia bem. O título do pai de Jonas era Criador. Ele e outros
Criadores eram responsáveis por todas as necessidades físicas e emocionais de cada criança-
nova no início da vida. Era uma atividade muito importante, Jonas sabia, mas que não o
interessava muito.
– De que gênero é? – perguntou Lily.
– Masculino – respondeu o Pai. – É um machinho encantador com uma índole excelente.
Mas não está crescendo com a rapidez que deveria e não dorme bem. Nós o colocamos na
seção de cuidados especiais para que tenha nutrição suplementar, mas o comitê está
começando a falar em dispensá-lo.
– Ah, não… – murmurou a Mãe, compreensiva. – Imagino como isso deve deixá-lo triste.
Jonas e Lily também balançaram a cabeça, solidários ao Pai. A dispensa de crianças-novas
era sempre triste, porque elas ainda não tinham tido oportunidade de desfrutar a vida na
comunidade. E não tinham feito nada de errado. Havia apenas duas ocasiões de dispensa que
não constituíam castigo: a dispensa dos velhos, que era um momento de celebração por uma
vida plena e bem vivida, e a dispensa de uma criança-nova, sempre acompanhada da sensação
de o-que-poderia-ter-sido. Era algo especialmente penoso para os Criadores, como o Pai, que
se sentiam como se tivessem fracassado de alguma forma. Mas isso acontecia muito
raramente.
– Bem – disse o Pai –, vou continuar tentando. Posso pedir permissão ao comitê para trazê-
lo para cá à noite, se vocês não se importarem. Sabem como são as equipes noturnas de
Criadores. Acho que aquele rapazinho necessita de algo mais.
– É claro – disse a Mãe. Jonas e Lily assentiram.
Já tinham ouvido o Pai queixar-se da equipe noturna antes. Era considerada uma função
inferior fazer parte da equipe noturna de Criadores, atribuída àquelas pessoas desprovidas de
interesses, habilidades ou visão para os trabalhos mais imprescindíveis do período diurno. A
maioria delas nem sequer recebia um cônjuge, porque lhes faltava, de alguma forma, a
capacidade essencial de se relacionar com os outros, indispensável para a criação de uma
unidade familiar.
– Talvez até a gente possa ficar com ele – sugeriu Lily com ar meigo, tentando parecer
inocente. O olhar era fingido, Jonas sabia; todos sabiam.
– Lily – lembrou a Mãe, sorrindo –, você sabe muito bem quais são as regras.
Duas crianças, um menino e uma menina, para cada unidade familiar. Estava claramente
escrito.
Lily deu uma risadinha.
– Ora – disse ela –, quem sabe, só desta vez.
Em seguida, a Mãe, que ocupava um cargo proeminente no Departamento de Justiça, falou
sobre seus sentimentos. Naquele dia, um infrator reincidente fora levado a ela, alguém que já
desrespeitara as regras antes. Alguém que ela esperava ter sido convenientemente punido, com
justiça, e que fora reintegrado em sua posição: em seu trabalho, em seu lar, em sua unidade
familiar. Vê-lo diante de si pela segunda vez despertou nela sentimentos avassaladores de
frustração e de raiva. Até de culpa, por não ter exercido influência alguma na vida dele.
– Fiquei assustada, também, por ele – admitiu. – Vocês sabem que não existe uma terceira
oportunidade. As regras dizem que, se ocorrer uma terceira transgressão, a pessoa
simplesmente tem de ser dispensada.
Jonas estremeceu. Sabia que isso de fato acontecia. Havia um menino em seu grupo de Onze
cujo pai fora dispensado anos atrás. Ninguém jamais comentava o assunto; a desonra era
inexprimível, difícil de imaginar.
Lily levantou e aproximou-se da mãe. Acariciou-lhe o braço.
De seu lugar à mesa, o Pai segurou uma das mãos dela. Jonas segurou a outra.
Um por um, todos a consolaram. Logo ela sorriu, agradeceu-lhes e murmurou que se sentia
aliviada.
O ritual continuou.
– Jonas? – perguntou o Pai. – Você é o último hoje.
Jonas suspirou. Naquela noite, ele teria preferido manter ocultos os seus sentimentos. Mas
era contra as regras, claro.
– Estou me sentindo apreensivo – confessou, satisfeito por finalmente ter encontrado a
palavra adequada para descrever o que sentia.
– E por quê, filho? – seu pai tinha um ar preocupado.
– Sei que não há realmente motivo algum para apreensão – explicou Jonas – e que todos os
adultos já passaram por isso. Sei que você já passou, Pai, e você também, Mãe. Mas é a
Cerimônia que está me deixando apreensivo. Já estamos quase em dezembro.
Lily levantou o rosto, os olhos arregalados.
– A Cerimônia de Doze – sussurrou ela com reverência na voz. Até as crianças pequenas, da
idade de Lily e menores ainda, sabiam que o mesmo as esperava no futuro.
– Estou contente por você ter falado sobre o que está sentindo – disse o Pai.
– Lily – disse a Mãe, acenando para a garotinha. – Vá agora e vista sua roupa de dormir. O
Pai e eu vamos ficar aqui conversando um pouco com Jonas.
Lily suspirou, mas levantou-se, obediente, de sua cadeira.
– Em particular? – perguntou ela.
A Mãe fez sinal que sim com a cabeça.
– É – disse ela –, essa conversa com Jonas vai ser em particular.
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