– Sabe – disse o Pai, afinal –, todo mês de dezembro era sempre excitante para mim quando
eu era criança. Como tem sido para você e Lily também, tenho certeza. Todo mês de dezembro
traz muitas mudanças.
Jonas assentiu. Era capaz de lembrar cada dezembro desde, provavelmente, que se tornara
um Quatro. Os anteriores a isso perdiam-se em sua memória. Mas ficava atento a eles todos os
anos e lembrava-se bem dos primeiros dezembros de Lily. Lembrava-se de quando sua família
recebera Lily, o dia em que ela recebera seu nome, o dia em que se tornara uma Um.
A Cerimônia de Um era sempre barulhenta e divertida. Todo mês de dezembro as criançasnovas
nascidas no ano anterior tornavam-se Um. Havia sempre 50 em cada grupo – se
nenhuma tivesse sido dispensada. Uma de cada vez, elas eram levadas ao palco pelos
Criadores que haviam cuidado delas desde o nascimento. Algumas já estavam andando,
cambaleantes em suas perninhas ainda sem firmeza; outras tinham apenas dias de vida,
envoltas em cobertores, no colo de seus Criadores.
– Gosto muito da Nomeação – disse Jonas.
Sua mãe concordou sorrindo:
– No dia em que Lily chegou, já sabíamos que receberíamos nossa menina, porque tínhamos
feito o requerimento e fomos aprovados. Mas eu não parava de pensar em qual seria o nome
dela.
– Eu poderia ter dado uma espiada na lista antes da cerimônia – revelou o Pai. – O comitê
sempre a faz com antecedência e a guarda lá mesmo no escritório do Centro de Criação. Para
ser franco – prosseguiu ele –, sinto-me um pouco culpado por causa disso, mas eu entrei lá
hoje à tarde para ver se a lista de Nomeação deste ano já havia sido feita. Ela estava pronta no
escritório e procurei o número Trinta e seis, o do garotinho que tem me preocupado, porque
me ocorreu que chamá-lo por um nome pode melhorar seu tratamento. Mas isso só quando não
houver ninguém por perto, é claro.
– E descobriu o nome? – perguntou Jonas. Ele estava fascinado. Não lhe parecia uma regra
terrivelmente importante, mas o fato de seu pai tê-la descumprido deixava-o pasmo. Olhou de
relance para sua mãe, a responsável pelo cumprimento das regras, e notou com alívio que ela
estava sorrindo.
O Pai assentiu.
– O nome dele, se conseguir chegar à Nomeação sem ser dispensado, vai ser Gabriel. Então
eu sussurro seu nome quando lhe dou alimento a cada quatro horas e também durante os
exercícios e as brincadeiras. Mas só se ninguém estiver me escutando. Na verdade, eu o
chamo de Gabe – disse ele, e abriu um sorriso.
– Gabe – repetiu Jonas. Um bom nome, pensou ele.
Apesar de Jonas ter se tornado apenas um Cinco no ano em que adquiriram Lily e tomaram
conhecimento do seu nome, ele lembrava o entusiasmo, as conversas em casa a respeito dela:
como seria a sua aparência, quem ela seria, como se encaixaria em sua unidade familiar
estabelecida. Lembrava-se de subir os degraus do palco com os pais, seu pai ao seu lado
daquela vez, em vez de estar junto com os Criadores, pois naquele ano ele próprio receberia
uma criança-nova. Lembrou-se de sua mãe segurando nos braços a criança-nova – sua irmã –
enquanto o documento era lido para as unidades familiares reunidas: “Criança-nova Vinte e
três”, leu o Nomeador. “Lily.”
Lembrou o olhar de contentamento de seu pai, que cochichara: “É uma das minhas favoritas.
Estava querendo muito que fosse ela.” A multidão aplaudira e Jonas dera um largo sorriso.
Gostou do nome de sua irmã. Lily, meio adormecida, agitou sua mãozinha fechada. Então, eles
desceram do palco para dar lugar à próxima unidade familiar.
– Quando eu era um Onze como você, Jonas – disse seu pai –, fiquei muito impaciente
enquanto esperava pela Cerimônia de Doze. São dois dias muito compridos. Lembro que
gostei da Cerimônia de Um, como sempre, mas não prestei muita atenção às outras cerimônias,
exceto à da minha irmã. Ela se tornou uma Nove naquele ano e ganhou sua bicicleta. Eu a
vinha ensinando a andar na minha, embora oficialmente não pudesse fazer isso.
Jonas riu. Aquela era uma das poucas regras que ninguém levava muito a sério e que quase
sempre era desobedecida. Todas as crianças ganhavam suas bicicletas aos Nove; não tinham
permissão para pedalar antes disso. Entretanto, quase sempre os irmãos e irmãs mais velhos
ensinavam os mais novos em segredo. Jonas já vinha pensando em ensinar Lily.
Havia rumores de que mudariam essa regra e crianças de menos idade iriam receber
bicicletas. Um comitê estava estudando a ideia. Mas quando algo ia a um comitê para estudo,
as pessoas sempre caçoavam. Diziam que os membros do comitê já seriam Anciãos quando a
regra fosse mudada.
Era muito difícil haver mudanças. Às vezes, quando se tratava de uma regra muito
importante – não como a que regulamentava a idade para andar de bicicleta, por exemplo –,
ela precisava ser encaminhada ao Recebedor para uma decisão final. O Recebedor era o
Ancião de posição mais elevada. Jonas jamais o vira, segundo se lembrava; aquela pessoa de
posição tão eminente vivia e trabalhava sozinha. O comitê de modo algum incomodaria o
Recebedor com uma questão sobre bicicletas; seus integrantes se limitariam a discutir e
resmungar entre si durante anos a fio, até os cidadãos se esquecerem que um dia o assunto lhes
fora levado para estudo.
– De modo que assisti e comemorei quando minha irmã Katya se tornou uma Nove, tirou as
fitas do cabelo e ganhou sua bicicleta – continuou o Pai. – Não prestei muita atenção nos Dez
e Onzes que vieram em seguida. Mas finalmente, no término do segundo dia, que parecia
nunca mais acabar, chegou a minha vez. Era a Cerimônia dos Doze.
Jonas se arrepiou. Visualizou o Pai, que deveria ser então um menino tímido e sossegado,
pois era um homem tímido e sossegado, sentado com seu grupo, esperando para ser chamado
ao palco. A Cerimônia de Doze era a última das cerimônias. E a mais importante.
– Lembro-me de como meus pais estavam orgulhosos. E minha irmã também; embora
quisesse estar lá fora andando de bicicleta à vista de todos, parou de se remexer na cadeira e
ficou bastante quieta e atenta quando chegou a minha vez. Mas, para ser franco, Jonas – disse
seu pai –, no meu caso não houve esse elemento surpresa que há na sua Cerimônia. Porque eu
já estava quase certo sobre qual seria a minha Atribuição.
Jonas ficou admirado. Não havia como realmente saber com antecedência. Tratava-se de
uma seleção secreta, feita pelos líderes da comunidade, o Comitê dos Anciãos, que levava
aquela responsabilidade muito a sério, tanto que jamais se fazia qualquer brincadeira com a
questão das Atribuições.
A mãe também parecia espantada.
– Como você poderia saber? – perguntou ela.
O Pai deu um sorriso doce:
– Bem, estava bem claro para mim, e meus pais depois admitiram que também achavam
óbvio, qual era a minha aptidão. Sempre gostei de crianças-novas mais que tudo. Quando
meus amigos do mesmo grupo de idade disputavam corridas de bicicleta, ou construíam
veículos ou pontes de brinquedo com seus jogos de armar, ou…
– Todas as coisas que faço com meus amigos – Jonas comentou e sua mãe concordou com
um aceno da cabeça.
– Eu sempre participava, é claro – continuou o Pai –, porque as crianças têm de
experimentar todas essas coisas. E estudava com afinco na escola, como você, Jonas. Mas,
com frequência, em meu tempo livre, via-me atraído para as crianças-novas. Passava quase
todas as minhas horas de trabalho voluntário ajudando no Centro de Criação. É claro que os
Anciãos sabiam disso a partir de suas observações.
Jonas balançou a cabeça. Durante o ano que passara, ele percebera o nível crescente de
observação. Na escola, durante a recreação e as horas de voluntariado, notara como os
Anciãos observavam tanto ele quanto os outros Onzes. Vira-os tomar notas. Sabia também que
faziam prolongadas reuniões com todos os instrutores que ele e os outros Onzes tinham tido
durante seus anos de escola.
– Portanto, eu já esperava aquilo e fiquei contente, mas não surpreso, quando minha
Atribuição de Criador foi anunciada – explicou o Pai.
– E todos aplaudiram, mesmo sem estarem surpresos? – perguntou Jonas.
– Ah, é claro. Estavam satisfeitos por mim, por minha Atribuição ser o que eu mais queria.
Achei que tinha muita sorte. – Seu pai sorriu.
– Algum Onze ficou desapontado no seu ano? – o menino perguntou. Ao contrário do Pai,
ele não tinha a menor ideia de qual seria a sua Atribuição. Mas sabia que algumas delas
poderiam desapontá-lo. Apesar de respeitar o trabalho do Pai, não desejava ser Criador. E
não invejava nem um pouco os Operários.
O Pai refletiu um pouco.
– Não, acho que não – disse. – Não há dúvida de que os Anciãos são muito cuidadosos em
suas observações e escolhas.
– Acho que o cargo deles é provavelmente o mais importante da nossa comunidade –
comentou sua mãe.
– Minha amiga Yoshiko ficou surpresa por ter sido escolhida como Doutora – contou o Pai
–, mas também entusiasmada. E, deixe ver, tinha o Andrei. Lembro que, quando éramos
crianças, ele nunca tinha vontade de praticar atividades físicas. Passava todo o tempo que
podia durante a recreação com seu jogo de armar, e suas horas de voluntariado sempre em
obras. Os Anciãos sabiam disso, com certeza. Andrei recebeu a Atribuição de Engenheiro e
ficou encantado.
– Andrei desenhou a ponte que atravessa o rio na parte oeste da cidade – acrescentou a mãe
de Jonas. – Não existia quando éramos crianças.
– É raro alguém sair desapontado, Jonas. Acho que você não precisa se preocupar com isso
– o Pai tranquilizou-o. – E, caso aconteça, você sabe que existe um processo de apelação.
Todos riram, porque uma apelação precisava ir a um comitê para estudo.
– A Atribuição de Asher me preocupa um pouco – confessou Jonas. – Asher é tão
engraçado. Mas ele não tem nenhum interesse mais sério. Leva tudo na brincadeira.
O Pai deu uma risadinha.
– Sabe de uma coisa – disse ele –, lembro-me de Asher desde quando ele era criança-nova
no Centro de Criação, antes de receber o nome. Ele nunca chorava. Achava graça em tudo, ria
de tudo. Todos nós, a equipe inteira, adorávamos cuidar dele.
– Os Anciãos conhecem Asher – aparteou a mãe. – Vão encontrar a Atribuição exata para
ele. Não acho que você precise se preocupar com isso. Mas, Jonas, deixe-me preveni-lo sobre
algo que pode não lhe ter ocorrido. Eu só me dei conta disso depois de minha Cerimônia de
Doze.
– O que é?
– Bem, é a última Cerimônia, como sabe. Depois dos Doze, a idade não é importante. A
maioria de nós até perde a noção dela à medida que o tempo passa, embora a informação
esteja na Seção dos Registros Abertos e seja permitido ir procurá-la se quisermos. O
importante é a preparação para a vida adulta e o treinamento que você vai receber para sua
Atribuição.
– Eu sei – disse Jonas. – Todo mundo sabe.
– Mas isso significa – prosseguiu a Mãe – que você vai mudar para um novo grupo. E todos
os seus amigos também. Você não vai passar mais o tempo com seu grupo de Onze. Depois da
Cerimônia de Doze, vai ficar junto com seu grupo de Atribuição, com os que estão em
treinamento. Nada de horas de voluntariado nem de recreação; portanto, seus amigos não vão
mais estar tão por perto.
Jonas sacudiu a cabeça.
– Asher e eu sempre seremos amigos – disse ele com firmeza. – E haverá sempre a escola.
– É verdade – concordou o Pai. – Mas o que sua mãe está dizendo também é. Haverá
mudanças.
– Mudanças boas, porém – ressaltou a Mãe. – Depois da minha Cerimônia de Doze, senti
falta das recreações da infância. Mas, quando comecei meu treinamento para Lei e Justiça, me
vi na companhia de pessoas com interesses iguais aos meus. Fiz amigos num outro nível,
amigos de todas as idades.
– A gente ainda pode brincar depois dos Doze? – perguntou Jonas.
– De vez em quando – respondeu a Mãe. – Mas, para mim, deixou de ser tão interessante.
– Para mim, não – disse o Pai rindo. – Continuo brincando. Todo dia, no Centro de Criação,
brinco de pique-pega, de esconde-esconde e de cabra-cega. – Ele estendeu a mão e afagou o
cabelo bem aparado de Jonas. – A diversão não acaba quando você chega aos Doze.
Lily apareceu à porta em sua roupa de dormir. Deu um suspiro impaciente.
– Essa conversa particular está sendo comprida demais – queixou-se. – E tem gente aqui
esperando por seu objeto reconfortante.
– Lily – disse sua mãe carinhosamente –, você está quase se tornando uma Oito, e, quando
esse dia chegar, seu objeto reconfortante vai ser tirado de você. Vai ser reciclado para servir
a crianças menores. Você devia começar a dormir sem ele.
Mas o Pai já tinha pegado o elefante de pano acolchoado que ficava guardado na prateleira.
Muitos dos objetos reconfortantes eram como o de Lily, criaturas imaginárias acolchoadas e
macias. O de Jonas fora chamado de urso.
– Aqui está ele, Lilyzinha – disse o Pai. – Vou ajudá-la a tirar as fitas do seu cabelo.
Jonas e a mãe reviraram os olhos, mas acompanharam com ar afetuoso Lily e seu pai se
dirigirem para o dormitório dela com o elefantinho acolchoado que ela ganhara ao nascer
como objeto reconfortante. A Mãe foi para sua grande escrivaninha e abriu uma pasta de
documentos; o trabalho dela parecia nunca terminar, mesmo quando estava em casa à noite.
Jonas se encaminhou para a sua escrivaninha e começou a separar os papéis escolares para a
tarefa da noite. Sua cabeça, porém, continuava no mês de dezembro e na iminente Cerimônia.
Apesar de mais sossegado depois da conversa com os pais, ele não fazia a menor ideia de
qual Atribuição os Anciãos estariam escolhendo para o seu futuro e como se sentiria a
respeito quando chegasse o dia.
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