Estou escrevendo de algum lugar da Pensilvânia. Canto sudoeste. Um motel de beira de
estrada. Nosso quarto dá para o estacionamento, e se olho por trás das cortinas bege rígidas
posso ver pessoas circulando sob as luzes fluorescentes. É o tipo de lugar onde as pessoas
circulam. Estou com dores emocionais novamente. Coisas demais aconteceram, e tão rápido, e
agora estou no sudoeste da Pensilvânia. E meu marido está desfrutando de um sono desafiador em
meio aos pacotinhos de batatas fritas e doces que ele comprou na máquina do saguão. Jantar. Está
com raiva de mim por eu não levar na esportiva. Achei que estivesse com uma fachada
convincente — eba, uma nova aventura! —, mas aparentemente não estou.
Agora, pensando sobre o que houve, é como se estivéssemos esperando que algo acontecesse.
Como se Nick e eu estivéssemos sentados sob um enorme jarro à prova de som e de vento, e
então o jarro caiu e — havia algo a fazer.
Duas semanas atrás, estávamos em nosso estado desempregado habitual: parcialmente
vestidos, densos de tédio, nos aprontando para tomar um café da manhã silencioso que
estenderíamos até o final da leitura do jornal. Passáramos a ler até mesmo o suplemento de
carros.
O telefone de Nick toca às dez da manhã, e pela voz dele dá para saber que é Go. Ele soa
animado, jovial, do modo como sempre é quando fala com ela. Do modo como costumava soar
comigo.
Ele vai para o quarto e fecha a porta, deixando-me com dois ovos beneditinos recémpreparados
tremendo nos pratos. Coloco o dele na mesa e me sento do outro lado, me
perguntando se devo esperar para comer. Se fosse eu, acho, voltaria e diria a ele para comer, ou
levantaria um dedo: um minutinho. Eu teria consciência da presença da outra pessoa, meu
cônjuge, deixado na cozinha com pratos de ovos. Eu me sinto mal por pensar assim. Porque logo
ouço murmúrios preocupados, exclamações tristes e palavras gentis atrás da porta, e começo a
me perguntar se Go está tendo problemas com rapazes, agora que voltou para sua cidade. Go tem
muitas separações. Mesmo aquelas que são iniciativa dela exigem muito cuidado e atenção da
parte de Nick.
Então estou com minha habitual expressão de Coitada da Go quando Nick sai, os ovos
endurecidos no prato. Eu o vejo e sei que não é só mais um problema com Go.
“Minha mãe”, ele começa, sentando-se. “Merda. Minha mãe está com câncer. Estágio quatro,
e se espalhou para o fígado e os ossos. O que é ruim, o que é...”
Ele coloca o rosto nas mãos, e eu vou até lá e coloco os braços ao redor dele. Quando ele
ergue a cabeça, está com os olhos secos. Calmo. Nunca vi meu marido chorar.
“É demais para Go, além do Alzheimer do meu pai.”
“Alzheimer? Alzheimer? Desde quando?”
“Bem, algum tempo. Inicialmente acharam que era alguma espécie de demência precoce. Mas
é mais do que isso, é pior.”
Penso imediatamente que há algo errado conosco, talvez sem solução, se meu marido não
pensa em me contar isso. Às vezes tenho a impressão de que é seu jogo pessoal, de que ele está
em alguma espécie de competição não declarada de impenetrabilidade.
“Por que não me disse nada?”
“Meu pai não é alguém sobre quem eu goste muito de falar.”
“Ainda assim...”
“Amy. Por favor.”
Ele tem aquele olhar como quem diz que eu não estou sendo razoável, como se ele estivesse
tão certo de que não estou sendo razoável que chego a me perguntar se estou.
“Mas agora, Go diz que minha mãe vai precisar de quimio, mas... Ela vai ficar muito doente,
muito. Vai precisar de ajuda.”
“Devemos começar a procurar cuidados para ela em casa? Uma enfermeira?”
“Ela não tem esse tipo de plano de saúde.”
Ele fica olhando para mim, os braços cruzados, e sei qual é o desafio: ele está me desafiando
a me oferecer para pagar, e não podemos pagar, porque dei meu dinheiro aos meus pais.
“Tudo bem, então, querido”, digo. “O que você quer fazer?”
Ficamos de pé um diante do outro, uma disputa, como se estivéssemos em uma luta e eu não
tivesse sido informada. Estico a mão para tocá-lo e ele apenas olha para ela.
“Temos de nos mudar para lá.” Ele olha fixamente para mim, arregalando os olhos. Sacode
os dedos, como se tentasse se livrar de algo grudento. “Vamos tirar um ano e fazer a coisa certa.
Não temos emprego, não temos dinheiro, não há nada que nos segure aqui. Até você tem de
admitir isso.”
“Até eu tenho?” Como se eu já estivesse resistindo. Sinto uma onda de fúria, que engulo.
“É o que vamos fazer. Vamos fazer a coisa certa. Vamos ajudar meus pais, para variar.”
Claro que é o que temos de fazer, e claro que se ele tivesse me apresentado o problema como
se eu não fosse sua inimiga, era o que eu teria dito. Mas ele passou pela porta já me tratando
como um problema que precisava ser resolvido. Eu era a voz amarga que tinha de ser silenciada.
Meu marido é o homem mais leal do planeta, até deixar de ser. Eu vi seus olhos literalmente
ficando mais escuros nas vezes em que se sentiu traído por um amigo, mesmo um velho amigo
querido, e então o amigo nunca mais é mencionado. Ele olhara para mim como se eu fosse um
objeto a ser descartado, caso necessário. Isso realmente me gelou, aquele olhar.
* * *
Então foi decidido rápido assim, sem quase nenhum debate: estamos deixando Nova York.
Estamos indo para o Missouri. Para uma casa no Missouri junto ao rio onde iremos viver. É
surreal, e eu não sou de usar a palavra surreal do modo errado.
Sei que tudo ficará bem. É só que a coisa toda é tão distante do que eu havia imaginado...
Quando imaginava a minha vida. Não quer dizer que seja ruim, só... Se você me desse um milhão
de chances de adivinhar aonde a vida iria me levar, eu não teria adivinhado. Acho isso
alarmante.
O carregamento do caminhão de mudanças foi uma pequena tragédia: Nick, determinado e
culpado, lábios crispados, fazendo as coisas, não querendo olhar para mim. O caminhão parado
durante horas, bloqueando o trânsito em nossa ruazinha, piscando suas luzes de alerta — perigo,
perigo, perigo — enquanto Nick sobe e desce as escadas, uma linha de montagem de um só
homem, carregando caixas de livros, caixas de utensílios de cozinha, cadeiras, mesinhas.
Estamos levando nosso sofá vintage — nosso velho e espaçoso chesterfield que papai chama de
nosso bicho de estimação, de tanto que o amamos. Será a última coisa que iremos pegar, um
trabalho suado e desajeitado para duas pessoas. Descer com a coisa enorme pelas nossas
escadas (Espere, preciso descansar. Levante para a direita. Espere, está indo rápido demais.
Cuidado, meus dedos, meus dedos!) será nosso muito necessário trabalho em equipe. Depois do
sofá, compraremos o almoço na delicatéssen da esquina, sanduíches de bagel para comer na
viagem. Refrigerante gelado.
Nick me deixou manter o sofá, mas nossos outros móveis grandes vão ficar em Nova York.
Um dos amigos dele herdará a cama; o cara passará depois em nossa casa vazia — nada além de
poeira e cabos — e levará a cama, e então viverá sua vida nova-iorquina em nossa cama novaiorquina,
comendo comida chinesa às duas horas da manhã e fazendo sexo preguiçoso e com
camisinha com garotas embriagadas e desbocadas que trabalham em relações públicas. (Nossa
casa será ocupada por um casal barulhento, marido e mulher advogados, despudorada e
insolentemente felizes com a barganha. Eu os odeio.)
Levo uma carga para cada quatro que Nick carrega resmungando escada abaixo. Eu me
desloco lentamente, arrastando-me, como se meus ossos doessem, uma delicadeza febril se
abatendo sobre mim. Tudo dói mesmo. Nick passa zumbindo, subindo ou descendo, franze a testa
para mim, lança um “Tudo bem?” e continua se movendo antes que eu responda, me deixando de
boca aberta, um desenho animado com um buraco negro no lugar da boca. Não estou bem. Ficarei
bem, mas neste exato instante não estou bem. Quero que meu marido coloque os braços em volta
de mim, me console, me mime um pouquinho. Só por um segundo.
Nos fundos do caminhão, ele remexe nas caixas. Nick orgulha-se de sua habilidade de
embalador: ele é (era) quem arrumava o lava-louça, quem fazia as malas das férias. Mas na
terceira hora fica claro que vendemos ou doamos um número excessivo de nossos bens. A
enorme caverna do caminhão está apenas pela metade. Isso me dá minha única satisfação do dia,
aquela satisfação quente e malvada na barriga, como uma pena de mercúrio. Bom, penso. Bom.
“Podemos levar a cama, se você quiser mesmo”, diz Nick, olhando para a rua além de mim.
“Temos espaço suficiente.”
“Não, você a prometeu a Wally, Wally deve ficar com ela”, digo de modo afetado.
Eu estava errado. Apenas diga: eu estava errado, lamento, vamos levar a cama. É bom
você ter sua velha cama reconfortante nesse novo lugar. Sorria para mim e seja gentil comigo.
Hoje, seja gentil comigo.
Nick suspira. “Certo, se é o que você quer. Amy? É?” Ele se levanta, ligeiramente sem
fôlego, apoiado em uma pilha de caixas, a de cima escrita com caneta hidrográfica: ROUPAS
INVERNO AMY. “É a última vez que vou ouvir falar na cama, Amy? Porque estou oferecendo
agora. Fico feliz de pegar a cama para você.”
“Muito gentil de sua parte”, digo, apenas uma bufada de ar, que é como retruco na maioria
das vezes: um jato de perfume de um vaporizador fedorento. Sou covarde. Não gosto de
confrontos. Pego uma caixa e vou na direção do caminhão.
“O que você disse?”
Balanço a cabeça para ele. Não quero que me veja chorar, porque isso o deixará com mais raiva.
Dez minutos depois, pancadas nas escadas — Bang! Bang! Bang! Nick está arrastando nosso
sofá sozinho.
* * *
Não consigo nem olhar para trás quando deixamos Nova York, porque o caminhão não tem
janela traseira. Pelo retrovisor, acompanho o horizonte (o horizonte recuando — não é assim
que escrevem naqueles romances vitorianos nos quais a heroína condenada é obrigada a deixar a
casa de seus ancestrais?), mas não vejo nenhum dos prédios bons — nada do Chrysler, do
Empire State ou do Flatiron, eles não surgem naquele pequeno retângulo reluzente.
Meus pais apareceram na noite anterior, nos presentearam com o cuco da família que eu
adorava quando criança, e os três choramos e nos abraçamos enquanto Nick remexia as mãos nos
bolsos e prometia tomar conta de mim.
Ele prometeu tomar conta de mim, e ainda assim sinto medo. Sinto que algo está errado,
muito errado, e que ficará ainda pior. Não me sinto a esposa de Nick. Não me sinto uma pessoa:
sou algo a ser carregado e descarregado, como um sofá ou um cuco. Sou algo a ser jogado em um
depósito de lixo, lançado no rio, se necessário. Não me sinto mais real. Sinto como se pudesse
desaparecer.
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