minha casa ainda não havia sido liberada para mim —; insistiram com a mesma urgência que
antes usavam para pagar a conta em um jantar: a hospitalidade é uma poderosa força da natureza.
Você tem que nos deixar fazer isso por você. Então deixei. Passei a noite escutando os roncos
deles do outro lado da porta do quarto, um constante e grave — o ronco vigoroso de um lenhador
—, o outro engasgado e arrítmico, como se o dono estivesse sonhando que se afogava.
Sempre consegui apagar como uma luz. Vou dormir, eu dizia, minhas mãos em posição de
prece sob minha bochecha, Zzzzz, o sono pesado de uma criança que tomou um remédio para
gripe — enquanto minha esposa insone se remexia na cama ao meu lado. Mas ontem à noite eu
me senti como Amy, meu cérebro ainda ligado, meu corpo no limite. Na maior parte do tempo eu
era um homem literalmente à vontade em minha própria pele. Amy e eu nos sentávamos no sofá
para ver TV e eu me transformava em cera derretida, ao mesmo tempo que minha esposa se
remexia e mudava de posição constantemente ao meu lado. Certa vez perguntei se ela tinha
síndrome das pernas inquietas — estava passando um comercial sobre a doença, os rostos dos
atores contorcidos pelo incômodo enquanto sacudiam as panturrilhas e esfregavam as coxas — e
Amy disse: eu tenho síndrome de tudo inquieto.
Observei o teto do quarto de hotel ficar cinza, depois rosa e então amarelo, e finalmente me
levantei para ver o sol brilhando diretamente sobre mim, do outro lado do rio, de novo, uma
queimadura de terceiro grau. Então os nomes surgiram em minha cabeça: plim! Hilary Handy. Um
nome adorável demais para ser acusado de atos tão perturbadores. Desi Collings, um antigo
obcecado que vivia a uma hora de distância. Eu os tornara meus. É uma era do faça você mesmo:
cuidados de saúde, imóveis, investigação policial. Entre na internet e descubra você mesmo,
porque todos estão trabalhando demais e com equipes de menos. Eu era um jornalista. Eu
passara mais de dez anos entrevistando pessoas para ganhar a vida, e fazendo com que
revelassem quem eram. Eu estava à altura da missão, e Marybeth e Rand também acreditavam
nisso. Estava grato por eles deixarem claro que eu ainda merecia sua confiança, o marido sob a
leve nuvem de suspeita. Ou será que estava enganando a mim mesmo ao usar a palavra leve?
* * *
O Days Inn cedera um salão de baile pouco utilizado para servir de quartel-general para a
Busca a Amy Dunne. Era inapropriado — um lugar com manchas marrons e cheiros abafados —,
mas pouco depois do amanhecer Marybeth começara a transformá-lo, aspirando e esfregando,
arrumando quadros de avisos e mesas de telefones, pendurando na parede um retrato de Amy. O
pôster — com o olhar sereno e confiante de Amy, aqueles olhos que o acompanhavam — parecia
saído de uma campanha presidencial. De fato, quando Marybeth acabou, o lugar zumbia de
eficiência — a esperança urgente de um político sem muitas chances de ganhar com muitos
seguidores fiéis se recusando a desistir.
Pouco depois das dez horas da manhã, Boney chegou, falando ao celular. Deu um tapinha em
meu ombro e começou a mexer em uma impressora. Os voluntários chegaram em grupos: Go e
meia dúzia de amigas de nossa falecida mãe. Cinco mulheres de quarenta e tantos anos, todas
usando calças capri, como se ensaiassem para um espetáculo de dança: duas delas — esguias,
louras e bronzeadas — disputando o papel principal, as outras alegremente resignadas com a
segunda fila. Um grupo de senhoras falastronas de cabelos brancos, cada uma tentando falar mais
alto que a outra, algumas escrevendo mensagens de texto no celular, o tipo de gente idosa que tem
uma impressionante dose de energia, tanto vigor juvenil que você se pergunta se estão tentando
provar algo. Apenas um homem apareceu, um sujeito de boa aparência, mais ou menos da minha
idade, bem-vestido, desacompanhado, não se dando conta de que sua presença merecia alguma
explicação. Observei o Solitário enquanto ele circulava perto dos doces, espiando o pôster de
Amy.
Boney terminou de preparar a impressora, apanhou um muffin de aparência farelenta e veio
para o meu lado.
— Vocês ficam de olho em todos que se oferecem como voluntários? — perguntei. — Quer
dizer, caso alguém pareça...
— Caso alguém pareça ter um interesse suspeito? Certamente — disse ela, partindo as
beiradas do muffin e colocando-as na boca. Ela baixou a voz. — Mas, para falar a verdade,
assassinos em série assistem aos mesmos programas de TV que nós. Eles sabem que nós
sabemos que gostam de...
— Se enfiar nas investigações.
— É isso aí. — Ela assentiu. — Então eles são mais cuidadosos com esse tipo de coisa
agora. Mas sim, nós ficamos de olho em todos os tipos meio esquisitos para ter certeza de que
eles são apenas, sabe, meio esquisitos.
Ergui uma sobrancelha.
— Tipo, Gilpin e eu fomos os principais investigadores do caso de Kayla Holman, há alguns
anos. Kayla Holman?
Balancei a cabeça: não me dizia nada.
— Enfim, você descobrirá que algumas pessoas mórbidas ficam atraídas por esse tipo de
coisa. E tome cuidado com aquelas duas — disse Boney, apontando para as duas mulheres
bonitas de quarenta e tantos anos. — Porque elas parecem ser desse tipo. Ficam um pouco
interessadas demais em consolar o marido preocupado.
— Ah, espera aí...
— Você ficaria surpreso. Um cara bonito como você. Acontece.
Nesse instante, uma das mulheres, a mais loura e bronzeada, olhou para nós, fez contato
visual e me abriu o sorriso mais gentil e tímido que podia, depois inclinou a cabeça como um
gato esperando para ser acariciado.
— Ela vai dar duro; será a pequena Miss Envolvida — disse Boney. — Portanto isso é bom.
— Como terminou o caso Kayla Holman? — perguntei.
Ela balançou a cabeça: não.
Mais quatro mulheres entraram, circulando um frasco de protetor solar entre elas, espalhando
o conteúdo sobre braços e ombros nus e narizes. A sala cheirava a óleo de coco.
— Aliás, Nick — retomou Boney. — Lembra-se de quando perguntei se Amy tinha amigos na
cidade? E quanto a Noelle Hawthorne? Você não a mencionou. Ela nos deixou duas mensagens.
Eu lancei um olhar vazio para ela.
— A Noelle, do seu condomínio. Mãe de trigêmeos.
— Não, elas não são amigas.
— Ah, engraçado. Ela decididamente parece achar que são.
— Isso acontece muito com Amy — falei. — Ela fala uma vez com as pessoas e elas se
apegam. É bizarro.
— Foi isso que os pais dela disseram.
Fiquei pensando em perguntar diretamente a Boney sobre Hilary Handy e Desi Collings. E
então decidi que não; daria uma impressão melhor se eu liderasse o ataque. Queria que Rand e
Marybeth me vissem no papel do herói. Não conseguia me esquecer do olhar que Marybeth me
lançara: A polícia decididamente parece achar que a história está... perto de casa.
— As pessoas acham que a conhecem porque leram os livros quando eram jovens — disse.
— Entendo — disse Boney, concordando. — As pessoas querem acreditar que conhecem as
outras. Pais querem acreditar que conhecem seus filhos. Esposas querem acreditar que conhecem
os maridos.
* * *
Mais uma hora e o centro de voluntários começou a parecer um piquenique familiar. Algumas
de minhas antigas namoradas apareceram para dizer olá, apresentar os filhos. Uma das melhores
amigas de minha mãe, Vicky, foi com três das netas, meninas tímidas na casa dos dez anos, todas
de rosa.
Netos. Minha mãe falara muito sobre netos, como se isso sem dúvida fosse acontecer —
sempre que comprava um móvel novo ela explicava que preferira aquele determinado estilo
porque “servirá para quando houver netos”. Ela queria viver para ver alguns netos. Todas as suas
amigas tinham netos de sobra. Amy e eu certa vez recebemos minha mãe e Go para jantar a fim de
celebrar a melhor semana d’O Bar até então. Anunciei que tínhamos razão para festejar, e mamãe
levantou da cadeira, rompeu em lágrimas e abraçou Amy, que também começou a chorar,
murmurando sob o aperto sufocante de minha mãe: “Ele está falando d’O Bar, está só falando
d’O Bar.” E então minha mãe se esforçou muito para fingir que estava igualmente animada com
isso. “Ainda há muito tempo para bebês”, dissera com sua voz mais consoladora, uma voz que
fez Amy começar a chorar outra vez. O que foi estranho, já que Amy decidira que não queria
filhos e reiterara isso muitas vezes, mas as lágrimas me deram uma perversa ponta de esperança
de que ela estivesse mudando de ideia. Porque na verdade não havia muito tempo. Amy tinha
trinta e sete anos quando nos mudamos para Carthage. Faria trinta e nove em outubro.
E então pensei: Teremos de fazer uma falsa festa de aniversário caso isso continue.
Teremos de marcar a ocasião de alguma forma, alguma cerimônia, para os voluntários, a
imprensa — algo para chamar novamente a atenção. Eu terei de fingir estar esperançoso.
— A volta do filho prótigo — disse uma voz anasalada, então me virei e vi um homem magro
de camiseta esticada junto a mim, coçando um grosso bigode.
Meu velho amigo Stucks Buckley, que gostava de me chamar de filho pródigo embora não
soubesse pronunciar a palavra nem conhecesse seu significado. Imagino que ele usasse o termo
como um sinônimo elegante para imbecil. Stucks Buckley soava como o nome de um jogador de
beisebol, e era isso que ele deveria ter virado, só que nunca tivera o talento, apenas o forte
desejo. Era o melhor da cidade quando jovem, mas isso não era o bastante. Recebeu o choque de
sua vida na faculdade quando foi cortado do time, e tudo virou uma merda depois disso. Agora
era um maconheiro com humor instável que fazia uns bicos aqui e ali. Ele aparecera n’O Bar
algumas vezes procurando trabalho, mas balançara a cabeça a cada tarefa chata que eu oferecera,
mastigando o lado de dentro da bochecha, aborrecido: Vamos lá, cara, o que mais você tem?
Você certamente tem mais alguma coisa.
— Stucks — disse em cumprimento, querendo ver se seu humor estava amigável.
— Ouvi dizer que a polícia está estragando tudo — afirmou, enfiando as mãos nas axilas.
— Um pouco cedo para dizer isso.
— Vamos lá, cara, essas buscas de mariquinhas? Já vi fazerem mais esforços para achar o
cachorro do prefeito — declarou, o rosto queimado de sol.
Eu podia sentir o calor emanando dele enquanto se aproximava, me lançando um bafo de
Listerine e tabaco.
— Por que ainda não prenderam ninguém? Tanta gente na cidade para escolher e ainda não
trancaram nenhuma delas? Nem uma pessoa? E quanto aos Garotos da Blue Book? Foi o que eu
perguntei à senhora detetive: e os Garotos da Blue Book? Ela não quis nem me responder.
— O que são os Garotos da Blue Book? Uma gangue?
— Todos aqueles caras demitidos da fábrica da Blue Book no inverno passado. Sem
indenização, nada. Sabe esses sem-teto que a gente vê circulando em bando pela cidade,
parecendo realmente putos da vida? Provavelmente Garotos da Blue Book.
— Continuo sem entender: fábrica da Blue Book?
— Você sabe: River Valley Printworks. No limite da cidade. Eles faziam aqueles cadernos
azuis que as pessoas usavam para trabalhos e merdas assim na faculdade.
— Ah. Eu não sabia.
— Agora as faculdades usam computadores e coisas assim; então, puff, adeus, Garotos da
Blue Book.
— Meu Deus, a cidade inteira está fechando — murmurei.
— Os Garotos da Blue Book bebem, usam drogas, atormentam as pessoas. Quer dizer, eles
faziam isso antes também, mas sempre tinham de parar, voltar para o trabalho na segunda. Agora
estão livres, soltos por aí.
Stucks sorriu sua fileira de dentes quebrados para mim. Ele tinha salpicos de tinta nos
cabelos — seu trabalho de verão desde o ensino médio, pintar casas. Eu me especializei em um
trabalho limpo, ele dizia, e esperava que você entendesse a brincadeira. Se você não risse, ele
explicava.
— E então, a polícia foi ao shopping? — perguntou Stucks.
Eu comecei a dar de ombros, confuso.
— Que merda, cara, você não era repórter? — reagiu Stucks, que sempre parecera sentir
raiva de minha antiga ocupação, como se fosse uma mentira que estivesse durando demais. — Os
Garotos da Blue Book criaram uma bela cidadezinha para eles no shopping. Invasão. Venda de
drogas. A polícia expulsa de vez em quando, mas eles sempre voltam no dia seguinte. Enfim, foi
o que eu disse à senhora detetive: Procurem na porra do shopping. Porque alguns deles
estupraram uma garota lá há um mês. Quer dizer, você junta um bando de homens com raiva e as
coisas não ficam boas para uma mulher que passe por eles.
* * *
No meu caminho para a área de buscas da tarde, telefonei para Boney, comecei a falar assim
que ela disse alô.
— Por que o shopping não está sendo vasculhado?
— O shopping será vasculhado, Nick. Temos policiais indo para lá neste instante.
— Ah. Certo. Porque um camarada meu...
— Stucks, eu sei, conheço ele.
— Ele estava falando sobre todos os...
— Os Garotos da Blue Book, eu sei. Confie em nós, Nick, estamos cuidando disso. Nós
queremos encontrar Amy tanto quanto você.
— Certo, ahn, obrigado.
Com meu espírito de justiça esvaziado, virei meu gigantesco copo descartável com café e fui
até a área que me havia sido atribuída. Três pontos estavam sendo vasculhados naquela tarde: o
canal de barcos (agora conhecido como O Lugar Onde Nick Passou a Manhã Do, Sem Que
Ninguém o Visse); o bosque de Miller Creek (que mal merecia o nome; dava para ver
lanchonetes entre as árvores); e o Wolky Park, um terreno natural com trilhas de caminhada e
cavalgada. Fui enviado para o Wolky Park.
Quando cheguei, um policial se dirigia a um bando de umas dez pessoas, pernas grossas em
shorts justos, óculos escuros e chapéus, pasta d’água nos narizes. Parecia o primeiro dia de um
acampamento.
Duas equipes diferentes de TV estavam ali para fazer imagens para as emissoras locais; era o
feriado de Quatro de Julho; Amy seria enfiada entre matérias sobre a feira estadual e churrascos.
Um foca continuava a circular ao redor de mim como um mosquito, me cobrindo de perguntas
sem sentido, meu corpo ficando imediatamente rígido e inumano com a atenção, minha expressão
“preocupada” parecendo falsa. Um cheiro de estrume de cavalo pairava no ar.
Os repórteres logo saíram para seguir os voluntários pelas trilhas. (Que tipo de repórter
encontra um marido suspeito maduro para ser colhido e vai embora? Um repórter ruim, mal
remunerado, que sobrou depois que todos os decentes foram demitidos.) Um jovem policial
uniformizado me disse para ficar — bem ali — na entrada das várias trilhas, perto de um quadro
de avisos que tinha uma barafunda de antigos panfletos, bem como um aviso de pessoa
desaparecida para Amy, minha esposa olhando para fora daquela foto. Ela estivera por toda a
parte hoje, me seguindo.
— O que devo fazer? — perguntei ao policial. — Eu me sinto um idiota aqui. Preciso fazer
algo.
Em algum lugar do bosque, um cavalo relinchou pesarosamente.
— Precisamos mesmo de você bem aqui, Nick. Apenas seja simpático, incentivador — disse,
e apontou para a brilhante garrafa térmica laranja perto de mim. — Ofereça um pouco de água.
Apenas mande quem chegar na minha direção.
Ele se virou e andou na direção do estábulo. Ocorreu-me então que estavam intencionalmente
me afastando de qualquer possível cena de crime. Eu não sabia muito bem o que isso queria
dizer.
Enquanto eu ficava ali parado à toa, fingindo me ocupar com o cooler, uma caminhonete
retardatária chegou, vermelho-brilhante como esmalte de unhas. Saíram dela as mulheres de
quarenta e tantos anos do quartel-general. A mais bonita, que Boney identificara como groupie,
estava segurando os cabelos em um rabo de cavalo para que as amigas pudessem colocar
repelente de insetos em sua nuca. A mulher sacudia as mãos elaboradamente para espantar o
cheiro. Ela me olhou de esguelha. Depois se afastou das amigas, deixou os cabelos caírem sobre
os ombros e começou a ir na minha direção, aquele sorriso solidário nos lábios, o sorriso de
lamento muito. Enormes olhos castanhos de pônei, a camisa rosa terminando logo acima de
shorts muito brancos. Sandálias de salto alto, cabelos ondulados, argolas de ouro. É assim que
você não se veste para uma busca, pensei.
Por favor, não fale comigo, senhora.
— Oi, Nick, sou Shawna Kelly. Eu lamento muito.
Ela tinha uma voz desnecessariamente alta, um pouco como um zurro, como uma mula
encantada e gostosa. Ela estendeu a mão e senti uma pontada de apreensão à medida que as
amigas de Shawna começavam a pegar a trilha, lançando olhares femininos pueris para nós, o
casal.
Ofereci o que eu tinha: meu agradecimento, minha água, meu desconforto desarticulado.
Shawna não fez nenhum movimento para partir, embora eu olhasse para a frente, na direção da
trilha pela qual as amigas dela haviam desaparecido.
— Espero que você tenha amigos, parentes, que estejam cuidando de você, Nick — disse ela,
dando um tapa em uma mosca. — Os homens se esquecem de cuidar de si mesmos. Você precisa
de uma comida caseira.
— Temos comido frios, basicamente, sabe... fácil, rápido.
Ainda podia sentir o gosto de salame no fundo da garganta, a ardência subindo da minha
barriga. Eu me dei conta de que não escovava os dentes desde a manhã.
— Ah, coitado de você. Bem, frios não vão bastar — disse ela, balançando a cabeça, as
argolas douradas refletindo a luz do sol. — Você precisa manter as forças. Mas você tem sorte,
porque eu faço uma bela torta de frango. Quer saber? Vou preparar e deixar no centro de
voluntários amanhã. Você pode colocar no micro-ondas quando quiser um bom jantar quentinho.
— Ah, isso parece trabalho demais, sério. Estamos bem. Estamos bem mesmo.
— Vocês ficarão melhor depois que comerem uma boa refeição — disse ela, dando um
tapinha no meu braço.
Silêncio. Ela tentou outra abordagem.
— Eu realmente espero que no final isso não tenha nada a ver... com o problema dos semteto.
Juro, fiz uma queixa após a outra. Um deles invadiu meu jardim no mês passado. Meu sensor
de movimento deu o alarme, então olhei para fora e lá estava ele, ajoelhado na terra, engolindo
tomates. Mastigando como se fossem maçãs, o rosto e a camisa cobertos de suco e sementes.
Tentei assustá-lo, mas ele arrancou pelo menos vinte antes de sair correndo. Eles estavam no
limite, de qualquer maneira, esses caras da Blue Book. Nenhuma outra habilidade.
Senti uma súbita afinidade com o bando de homens da Blue Book, me imaginei entrando em
seu assentamento amargurado, acenando uma bandeira branca: Sou seu irmão, também
trabalhava com impressos. Os computadores também roubaram meu emprego.
— Não me diga que você é jovem demais para se lembrar da Blue Books, Nick — dizia
Shawna.
Ela me cutucou nas costelas, me fazendo dar um sobressalto maior do que eu deveria.
— Sou tão velho que tinha me esquecido da Blue Books até você me lembrar.
Ela riu.
— Quantos anos você tem? Trinta e um, trinta e dois?
— Trinta e quatro.
— Um bebê.
O trio de senhoras idosas e enérgicas chegou nesse instante, acelerando na nossa direção,
uma usando o celular, todas vestindo saias de jardinagem de lona grossa, Keds e camisetas de
golfe sem manga revelando braços flácidos. Acenaram com a cabeça para mim, respeitosas,
depois lançaram um olhar de desaprovação quando viram Shawna. Parecíamos um casal fazendo
um churrasco no quintal. Aquilo não era nada adequado.
Por favor, vá embora, Shawna, pensei.
— Enfim, os sem-teto podem ser realmente agressivos, tipo ameaçadores para as mulheres —
disse Shawna. — Eu disse isso à detetive Boney, mas fiquei com a sensação de que ela não gosta
muito de mim.
— Por que diz isso? — perguntei, já sabendo o que ela iria dizer, o mantra de todas as
mulheres bonitas.
— As mulheres não gostam muito de mim — disse, dando de ombros. — É só uma dessas
coisas. Amy tinha... tem muitos amigos na cidade?
Várias mulheres — amigas de minha mãe, amigas de Go — haviam convidado Amy para
clubes de leitura, reuniões da Amway e noites entre garotas no Chili’s. Amy previsivelmente
recusara quase todos, menos alguns, aos quais foi e odiou. “Pedimos um milhão de coisinhas
fritas e tomamos coquetéis feitos com sorvete.”
Shawna me observava, querendo saber de Amy, querendo ser colocada no mesmo grupo da
minha esposa, que a odiaria.
— Acho que ela talvez tenha o mesmo problema que você — disse eu, de maneira cortante.
Ela sorriu.
Vá embora, Shawna.
— É difícil ir para uma cidade nova — comentou ela. — Quanto mais velhas ficamos, mais
difícil fazer amigos. Ela tem sua idade?
— Trinta e oito.
Aquilo também pareceu agradá-la.
Vá embora, porra.
— Homem inteligente, você, gosta de mulheres mais velhas.
Ela tirou um celular de sua enorme bolsa verde-amarelada, rindo.
— Venha aqui — disse, colocando um braço ao meu redor. — Dê um grande sorriso estilo
torta de frango.
Quis socá-la naquele instante, com sua falta de consciência, seus ares de garotinha: tentando
arrancar do marido de uma mulher desaparecida uma massagem no ego. Engoli minha fúria, tentei
reverter, tentei compensar demais e ser gentil, então sorri roboticamente enquanto ela
pressionava o rosto contra minha bochecha e tirava uma foto com o celular, o som falso de clique
me despertando.
Ela virou o telefone e vi nossos rostos queimados de sol apertados um contra o outro,
sorrindo como se estivéssemos em um encontro romântico durante um jogo de beisebol. Olhando
para meu sorriso fingido, meus olhos semicerrados, eu pensei: eu detestaria esse cara.
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