exame médico corre bem. Meus pulsos com marcas de corda, minha vagina machucada, meus
hematomas — o corpo que dou a eles é um caso clássico. Um médico mais velho com hálito
úmido e dedos grossos faz o exame pélvico — raspando e chiando ao mesmo tempo —, enquanto
a detetive Rhonda Boney segura minha mão. É como ser agarrada pela pata fria de um pássaro.
Ela abre um sorriso quando acha que não estou olhando. Está em êxtase por Nick não ser um cara
mau, no fim das contas. Sim, as mulheres dos Estados Unidos suspiram coletivamente.
A polícia foi mandada à casa de Desi, onde o encontrarão nu e exangue, uma expressão
chocada no rosto, alguns fios de cabelos meus em suas garras, a cama encharcada de sangue. A
faca que usei nele e em minhas amarras estará ali por perto, no chão, onde a deixei cair, tonta, e
caminhei descalça, sem levar nada da casa além de suas chaves — do carro, do portão — e
entrei, ainda escorregadia com seu sangue, em seu Jaguar antigo e voltei, como um animal de
estimação fiel há muito sumido, diretamente para casa e para meu marido. Eu fora reduzida a um
estado animalesco; não pensava em nada além de voltar para Nick.
O velho médico me dá boas-novas; nenhum dano permanente, e nenhuma necessidade de
curetagem — abortei muito cedo. Boney continua segurando minha mão e murmurando: Meu
Deus, as coisas pelas quais você passou... você acha que poderia responder a algumas
perguntas? Rápido assim, das condolências às realidades básicas. Já constatei que mulheres
feias costumam ser ou deferentes demais ou incrivelmente grosseiras.
Você é a Amy Exemplar, e sobreviveu a um sequestro brutal envolvendo agressões repetidas.
Matou seu captor e conseguiu voltar para um marido que você descobriu que a traía. Você:
a) Coloca-se em primeiro lugar e exige algum tempo sozinha para se recuperar.
b) Aguenta só mais um pouco para poder ajudar a polícia.
c) Decide qual entrevista conceder primeiro — por que não tirar algo bom de todo o
suplício, como um contrato para um livro?
Resposta: B. Amy Exemplar sempre pensa primeiro nos outros.
Eu sou autorizada a me limpar em um quarto particular do hospital, e visto roupas que Nick
escolheu para mim lá de casa — jeans com marcas de terem passado muito tempo dobrados, uma
blusa bonita cheirando a poeira. Boney e eu vamos do hospital à delegacia quase em silêncio no
carro. Pergunto debilmente pelos meus pais.
— Estão esperando por você na delegacia — responde ela. — Eles choraram quando contei
a eles. De alegria. Absoluta alegria e alívio. Vamos deixá-los dar uns bons abraços em você
antes de fazer nossas perguntas, não se preocupe.
As câmeras já estão na delegacia. O estacionamento tem aquela aparência esperançosa e
excessivamente iluminada de um estádio. Não há estacionamento subterrâneo, então temos de
parar bem na frente. A multidão enlouquecida se aproxima: vejo lábios molhados e perdigotos
enquanto todos berram perguntas, flashes espocando e luzes de televisão. A multidão empurra e
puxa coletivamente, indo alguns centímetros para a direita, depois para a esquerda, e todos
tentam chegar até mim.
— Não vou conseguir — informo a Boney. A palma carnuda da mão de um homem cola na
janela do carro e um fotógrafo tenta manter o equilíbrio. Seguro a mão fria dela. — É demais.
Ela me dá um tapinha e diz: espere. As portas da delegacia se abrem e todos os policiais do
prédio descem as escadas e formam filas de cada lado, contendo a imprensa, criando uma guarda
de honra para mim; Rhonda e eu corremos de mãos dadas, como recém-casados ao contrário,
avançando diretamente para meus pais, que esperam do lado de dentro, e todos fazem as fotos de
nós nos agarrando e minha mãe sussurrando minhameninaminhameninaminhamenina e meu pai
soluçando tão alto que quase sufoca.
* * *
Continuam a me levar de lá para cá, como se eu já não tivesse sido levada de cá para lá o
bastante ultimamente. Sou depositada em uma sala do tamanho de um closet, com cadeiras de
escritório confortáveis, mas baratas, do tipo que sempre parece ter restos de comida trançados no
tecido. Uma câmera pisca no canto e não há janelas. Não era o que eu imaginara. O lugar não é
destinado a fazer com que me sinta segura.
Estou cercada por Boney, seu parceiro, Gilpin, e dois agentes do FBI de St. Louis que ficam
quase totalmente em silêncio. Eles me dão água, e então Boney começa:
* * *
B: Certo, Amy, primeiro temos de agradecer sinceramente por falar conosco depois de tudo
pelo que passou. Em um caso como este, é muito importante registrar tudo enquanto as
lembranças estão frescas. Você não pode imaginar quanto é importante. Então é bom poder falar
agora. Se conseguirmos ter todos os detalhes, deveremos encerrar o caso e você e Nick poderão
retomar suas vidas.
A: Eu certamente gostaria disso.
B: Você merece isso. Então, se estiver pronta para começar, podemos partir da cronologia: a
que horas Desi chegou à sua porta? Você se lembra?
A: Por volta das dez horas da manhã. Um pouco depois, porque me lembro de ouvir os
Teverer conversando enquanto se dirigiam até o carro para ir à igreja.
B: O que aconteceu quando você abriu a porta?
A: Alguma coisa pareceu errada logo de cara. Para começar, Desi me mandou cartas a vida
inteira. Mas sua obsessão parecia ter se tornado menos intensa ao longo dos anos. Ele parecia se
ver apenas como um velho amigo, e como a polícia não podia fazer nada a respeito, deixei isso
para lá. Nunca senti que ele me queria mal ativamente, embora eu não gostasse de estar tão perto
dele. Geograficamente. Acho que isso fez com que ele cruzasse o limite. Saber que eu estava tão
perto. Ele entrou em minha casa com... Ele estava suado e meio nervoso, mas também com uma
expressão determinada. Eu estava no segundo andar, prestes a passar meu vestido, quando
percebi o grande manete de madeira da marionete Judy no chão — acho que tinha desgrudado
dela. Uma chatice, porque eu já tinha escondido as marionetes no depósito. Então peguei o
manete, e estava com ele na mão quando abri a porta.
B: Muito boa memória.
A: Obrigada.
B: O que aconteceu depois?
A: Desi entrou à força, e estava andando de um lado para outro da sala, agitado e meio
frenético, e disse: O que vocês vão fazer para o aniversário de casamento de vocês? Isso me
assustou, o fato de que ele soubesse que era nosso aniversário de casamento, e ele parecia bravo
com isso, e então esticou o braço, me agarrou pelo pulso e o torceu às minhas costas, e lutamos.
Eu realmente resisti.
B: E depois?
A: Eu o chutei, me soltei por um segundo e corri para a cozinha. Lutamos mais e ele me
acertou uma vez com o grande manete de madeira de Judy, fui arremessada, e então ele me
golpeou mais duas ou três vezes. Lembro que não consegui enxergar por um segundo, tonta, minha
cabeça latejando, e tentei agarrar o manete, e ele cortou meu braço com o canivete que estava
segurando. Ainda tenho a cicatriz. Está vendo?
B: Sim, isso foi registrado em seu exame médico. Você teve sorte: foi apenas um corte
superficial.
A: Não doeu como um corte superficial, pode acreditar.
B: Então ele esfaqueou você? O ângulo é...
A: Não sei bem se ele fez de propósito ou se eu mesma me joguei contra a lâmina
acidentalmente; estava sem equilíbrio. Mas me lembro do bastão caindo no chão, e então olhei
para baixo e vi o sangue do corte fazendo uma poça por cima do bastão. Acho que foi então que
desmaiei.
B: Onde você estava quando acordou?
A: Acordei amarrada na minha sala de estar.
B: Você gritou, tentou chamar a atenção dos vizinhos?
A: Claro que gritei. Quer dizer, você ouviu o que eu falei? Fui espancada, esfaqueada e
amarrada por um homem que havia sido obcecado por mim durante duas décadas, que uma vez
tentou se matar no meu quarto no dormitório.
B: Certo, certo, Amy, desculpe, minha intenção com a pergunta não era dar a impressão de
que estamos culpando você, de modo algum; apenas precisamos de um quadro completo para
podermos encerrar a investigação e você seguir com sua vida. Quer mais água, um café ou
alguma coisa?
A: Algo quente seria bom. Estou com muito frio.
B: Sem problema. Você pode conseguir um café para ela? E o que aconteceu depois?
A: Acho que o plano original dele era me prender, sequestrar e fazer parecer uma história de
mulher fugida, porque, quando acordei, ele estava acabando de limpar o sangue na cozinha, e
tinha arrumado a mesa de objetos antigos que caíra quando corri para a cozinha. Ele se livrara do
bastão. Mas estava ficando sem tempo, e acho que deve ter acontecido o seguinte: ele viu a sala
bagunçada e pensou, Deixe para lá. Deixe parecer que algo ruim aconteceu aqui. Então ele
escancarou a porta da frente, derrubou mais algumas coisas na sala de estar. Virou o divã. Por
isso a cena parecia tão estranha: era meio verdadeira e meio falsa.
B: Desi plantou itens incriminatórios em cada um dos locais da caça ao tesouro? O escritório
de Nick, Hannibal, a casa do pai de Nick, o depósito de Go?
A: Não entendi o que você quer dizer.
B: Havia uma roupa de baixo feminina, que não era do seu tamanho, no escritório de Nick.
A: Acho que devia ser da garota que ele estava... namorando.
B: Também não era dela.
A: Bem, não posso ajudar com isso. Talvez ele estivesse saindo com mais de uma garota.
B: Seu diário foi encontrado na casa do pai dele. Parcialmente queimado na fornalha.
A: Você leu o diário? É medonho. Estou certa de que Nick quis se livrar dele; não o culpo,
considerando como vocês se fixaram nele tão rápido.
B: Fico pensando por que ele iria até a casa do pai para queimá-lo.
A: Deveria perguntar a ele. (Pausa.) Nick ia muito lá, para ficar sozinho. Ele gosta de
privacidade. Então estou certa de que não pareceu estranho para ele. Quer dizer, ele não podia
fazer isso na nossa casa, porque era uma cena de crime; como saber se vocês voltariam,
encontrariam algo nas cinzas? Na casa do pai ele tem alguma privacidade. Acho que foi
inteligente, considerando que vocês basicamente o estavam culpando.
B: O diário é muito, muito preocupante. Ele alega agressões, e seu medo de que Nick não
quisesse o bebê, que quisesse matá-la.
A: Eu realmente gostaria que o diário tivesse sido queimado. (Pausa.) Vou ser honesta: ele
inclui algumas de minhas dificuldades com Nick nos últimos anos. Ele não pinta um quadro muito
bom do nosso casamento, ou mesmo de Nick, mas tenho de admitir: eu nunca escrevia no diário a
não ser que estivesse superfeliz ou muito, muito infeliz, querendo descarregar, e então... Posso
ser um pouco exagerada quando fico remoendo essas coisas. Quer dizer, muito daquilo é a
verdade feia — ele realmente me empurrou uma vez, não queria um bebê e tinha problemas
financeiros. Mas eu ter medo dele? Tenho de admitir, dói admitir, mas isso é minha tendência
dramática. Acho que o problema é que fui assediada várias vezes; é um problema da vida toda,
ter pessoas obcecadas por mim; então fico um pouco paranoica.
B: Você tentou comprar uma arma.
A: Fico muito paranoica, está bem? Desculpe. Se você tivesse meu histórico, entenderia.
B: Há uma anotação sobre uma noite em que vocês tomaram drinques e você teve os sintomas
clássicos de envenenamento por anticongelante.
A: (Longo silêncio.) Isso é bizarro. Sim, passei mal.
B: Certo, de volta à caça ao tesouro. Você escondeu os bonecos de Punch e Judy no
depósito?
A: Sim.
B: Muito de nosso caso se concentrou na dívida de Nick, um grande número de compras com
cartão de crédito, e nossa descoberta de todos esses objetos escondidos no depósito. O que você
pensou quando abriu o depósito e viu todas aquelas coisas?
A: Eu estava no terreno de Go, e Go e eu não somos exatamente íntimas, então basicamente
achei que estava metendo o nariz em algo que não era da minha conta. Lembro-me de na época
pensar que deviam ser coisas dela de Nova York. E depois vi nos noticiários — Desi me
obrigava a ver tudo — que as coisas correspondiam às compras de Nick, e... Eu sabia que Nick
tinha problemas com dinheiro, que era um gastador. Achei que provavelmente estava
constrangido. Ímpetos consumistas que ele não podia desfazer, então escondeu as coisas de mim
até que conseguisse vendê-las pela internet.
B: As marionetes de Punch e Judy parecem um pouco sinistras para um presente de
aniversário de casamento.
A: Eu sei! Agora eu sei! Eu não me lembrava da história toda de Punch e Judy. Eu só via um
marido, uma esposa e um bebê, eram feitos de madeira, e eu estava grávida. Procurei na internet
e vi a frase de Punch: É assim que se faz! E achei fofo; não sabia o que significava.
B: Então você estava amarrada. Como Desi levou você para o carro?
A: Ele estacionou o carro na garagem, baixou a porta, me arrastou para dentro, me jogou na
mala e foi embora.
B: E você gritou nessa hora?
A: Sim, gritei, porra. E se soubesse que durante o mês seguinte Desi iria me estuprar toda
noite, depois deitar ao meu lado com um martíni e um sonífero para não ser acordado pelo meu
choro, e que a polícia iria falar com ele e ainda assim não desconfiar e ficar sentada pensando
sobre a morte da bezerra, talvez tivesse gritado mais alto. Sim, talvez eu tivesse.
B: Mais uma vez, peço desculpas. Vocês podem trazer uns lenços de papel para a Sra. Dunne,
por favor? E onde está o caf... Obrigada. Certo, de lá vocês foram para onde, Amy?
A: Fomos em direção a St. Louis, e a caminho de lá lembro que ele parou em Hannibal...
Ouvi o apito do barco a vapor. Acho que foi aí que ele jogou fora minha bolsa. Foi a outra coisa
que ele fez para que parecesse que havia algo errado.
B: Isso é muito interessante. Parece haver muitas coincidências estranhas neste caso. Tipo,
que Desi jogue a bolsa exatamente em Hannibal, aonde sua pista levaria Nick; e em seguida nós
acreditássemos que Nick jogara a bolsa lá. Ou como você decidiu esconder um presente
exatamente no lugar onde Nick ocultava produtos comprados com cartões de crédito secretos.
A: É mesmo? Devo lhe dizer que nada disso me soa coincidência. Parece que um bando de
policiais enfiou na cabeça que meu marido era culpado, e agora que estou viva e ele obviamente
não é culpado, parecem completos idiotas e estão se esforçando para se proteger. Em vez de
aceitar a responsabilidade pelo fato de que, se este caso tivesse sido deixado em suas malditas
mãos incompetentes, Nick estaria no corredor da morte e eu, acorrentada a uma cama, sendo
estuprada todos os dias até morrer.
B: Desculpe, é...
A: Eu me salvei, o que salvou Nick, o que salvou o rabo de vocês.
B: Você está coberta de razão, Amy. Eu lamento, estamos tão... Investimos muito neste caso,
queremos descobrir cada detalhe que deixamos passar, para não repetirmos nossos equívocos.
Mas você está absolutamente certa, estamos deixando de lado a coisa importante: você é uma
heroína. Uma heroína.
A: Obrigada. Agradeço que você diga isso
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