quarta-feira, 19 de agosto de 2015

NICK DUNNE QUARENTA DIAS SUMIDA


Libertado sob fiança, aguardando julgamento. Passei pelos procedimentos e fui libertado —
a despersonalizada entrada e saída da cadeia, a audiência sobre fiança, as digitais e fotos, a
rotação, a passagem, a manipulação; isso não fez com que me sentisse um animal, fez com que
me sentisse como um produto, algo criado em uma linha de montagem. O que eles estavam
criando era Nick Dunne, Assassino. Meses se passariam até que meu julgamento começasse (meu
julgamento: a palavra ainda ameaçava me desfazer completamente, me transformar em um homem
de gargalhadas agudas, um louco). Eu deveria me sentir privilegiado por estar solto sob fiança:
permanecera ali mesmo quando estava claro que seria preso, então se considerava que não havia
risco de fuga. Boney talvez tivesse falado bem de mim, também. Então pude permanecer em
minha própria casa mais alguns meses antes de ser levado para a cadeia e executado pelo estado.
Sim, eu era um homem de sorte, muita sorte.
Estávamos em meados de agosto, o que eu achava permanentemente estranho. Ainda é verão,
pensava. Como pode ter acontecido tanta coisa e ainda não ser nem outono? O calor era
violento. Clima de mangas de camisa, era como minha mãe teria descrito, sempre mais
preocupada com o conforto de seus filhos do que com o termômetro. Clima de mangas de camisa,
clima de casaco, clima de sobretudo, clima de parca — o Ano emAgasalhos. Para mim este ano
seria clima de algemas, depois possivelmente clima de macacão de penitenciária. Ou clima de
terno de funeral, pois eu não planejava ir para a cadeia. Eu me mataria antes.
Tanner tinha uma equipe de cinco detetives tentando localizar Amy. Até o momento, nada.
Como tentar pegar água. Todo dia, durante semanas, eu fizera minha parte de merda: gravar uma
mensagem em vídeo para Amy e colocar no blog Whodunnit da jovem Rebecca. (Ao menos ela
permanecera leal.) Nos vídeos, eu vestia roupas que Amy comprara para mim, penteava os
cabelos do jeito que ela gostava e tentava ler sua mente. Minha raiva por ela era como arame
quente.
As equipes de reportagem estacionavam em meu gramado quase todas as manhãs. Éramos
como soldados inimigos, instalados ao alcance de tiro durante meses, vigiando uns aos outros do
outro lado da terra de ninguém, gerando uma espécie de fraternidade pervertida. Havia um cara
com uma voz de fortão de desenho animado ao qual eu me afeiçoara, nunca o vi, sempre o amei.
Ele estava saindo com uma garota de quem realmente gostava. Toda manhã, sua voz ribombava
por minhas janelas enquanto ele analisava seus encontros; as coisas pareciam estar indo muito
bem. Eu queria ouvir como a história acabava.
Terminei a noite gravando o vídeo para Amy. Estava vestindo a camisa verde que ela gostava
de me ver usar e contara a ela a história de como havíamos nos conhecido, a festa no Brooklyn,
minha medonha frase inicial, uma azeitona só, que me constrangia sempre que Amy a
mencionava. Falara sobre nossa saída do apartamento aquecido demais para o frio congelante,
com a mão dela na minha, o beijo na nuvem de açúcar. Era uma das poucas histórias que
contávamos da mesma forma. Eu a contei com o ritmo de uma história de dormir: tranquilizador,
familiar e repetitivo. Sempre terminando com Volte para casa, para mim, Amy.
Desliguei a câmera e me sentei novamente no sofá (eu sempre gravava sentado no sofá sob
seu pernicioso cuco imprevisível, porque sabia que, se não mostrasse o cuco, ela ficaria se
perguntando se eu tinha finalmente me livrado do cuco, e então simplesmente deixaria de se
perguntar se eu tinha finalmente me livrado do seu cuco, e simplesmente passaria a acreditar que
eu tinha, e então não importaria mais que palavras doces saíssem de minha boca, ela
silenciosamente retrucaria: “e ainda assim ele jogou fora meu cuco”). Inclusive, o cuco estava
prestes a aparecer, sua preparação rascante começando acima da minha cabeça — um som que
inevitavelmente deixava meu maxilar tenso —, quando as equipes de reportagem emitiram um
farfalhar alto, coletivo, oceânico. Alguém estava ali. Ouvi os gritos de gaivota de algumas
mulheres, âncoras de noticiário.
Há algo errado, pensei.
A campainha tocou três vezes seguidas: Nick-nick! Nick-nick! Nick-nick!
Não hesitei. Eu parara de hesitar no último mês: traga logo o problema.
Abri a porta.
Era minha esposa.
De volta.
Amy Elliott Dunne estava descalça na minha porta com um vestido rosa fino que grudava nela
como se estivesse molhado. Seus tornozelos estavam marcados com um anel violeta-escuro. Um
pedaço de barbante pendia de um pulso enfraquecido. Os cabelos estavam curtos e desgastados
nas pontas, como se tivessem sido cortados descuidadamente com tesouras cegas. O rosto dela
tinha hematomas, os lábios estavam inchados. Ela soluçava.
Quando lançou os braços na minha direção, pude ver que seu tronco inteiro estava sujo de
sangue seco. Ela tentou falar; a boca se abriu uma, duas vezes, silenciosa, uma sereia largada na
praia.
— Nick! — gemeu finalmente, um uivo que ecoou em todas as casas vazias, e caiu em meus
braços.
Eu queria matá-la.
Se estivéssemos sozinhos, minhas mãos poderiam ter encontrado seu lugar ao redor do
pescoço dela, meus dedos localizando sulcos perfeitos em sua carne. Sentir aquela forte pulsação
sob meus dedos... Mas não estávamos sós, estávamos diante de câmeras, e eles estavam se dando
conta de quem era aquela mulher estranha, estavam acordando, assim como o cuco do lado de
dentro, alguns cliques, algumas perguntas, e depois uma avalanche de barulho e luz. As câmeras
disparavam sobre nós, os repórteres avançando com microfones, todos gritando o nome de Amy,
berrando, berrando mesmo. Então fiz a coisa certa, eu a abracei e uivei seu nome de volta:
— Amy! Meu Deus! Meu Deus! Meu amor! — Enfiei o rosto no pescoço dela, meus braços
apertados em torno dela, e deixei as câmeras conseguirem seus quinze segundos, e sussurrei bem
no ouvido dela:
— Sua piranha desgraçada.
Depois acariciei seus cabelos, amparei seu rosto em minhas mãos amorosas e a puxei para
dentro.
* * *
Do lado de fora da porta, parecia um concerto de rock exigindo um bis: Amy! Amy! Amy!
Alguém jogou pedrinhas em nossa janela. Amy! Amy! Amy!
Minha esposa recebeu tudo como se fosse merecido, agitando uma mão desdenhosa para a
ralé do lado de fora. Ela se virou para mim com um sorriso cansado, mas triunfante — o sorriso
da vítima de estupro, da sobrevivente de agressão, da incendiária de camas dos velhos filmes da
TV, o sorriso que diz que o desgraçado finalmente recebeu o que merecia e sabemos que nossa
heroína será capaz de seguir em frente com sua vida! Congela a cena.
Apontei para o barbante, os cabelos picotados, o sangue seco.
— E então, qual é sua história, esposa?
— Voltei — gemeu ela. — Consegui voltar para você.
Ela se adiantou para colocar os braços ao redor de mim. Eu me afastei.
— Qual é sua história, Amy?
— Desi — sussurrou, o lábio inferior trêmulo. — Desi Collings me levou. Foi na manhã. Do.
Do nosso aniversário de casamento. E a campainha tocou, e eu achei... não sei, achei que talvez
fossem flores suas para mim.
Vacilei. É claro que ela daria um jeito de encaixar uma reclamação: que eu nunca mandava
flores para ela, quando seu pai mandara flores para sua mãe toda semana desde que se casaram.
Isso dá dois mil quatrocentos e quarenta e quatro buquês de flores versus quatro.
— Flores ou... algo — continuou. — Então não pensei, apenas escancarei a porta. E lá estava
ele, Desi, com uma expressão estranha no rosto. Determinada. Como se ele estivesse se
preparando para isso desde sempre. E eu segurava o manete... da marionete Judy. Você achou as
marionetes? — perguntou, sorrindo chorosa para mim. Ela tinha um ar tão doce.
— Ah, eu achei tudo o que você deixou para mim, Amy.
— Eu acabara de achar o manete da marionete Judy, que tinha caído, e estava segurando ele
quando abri a porta e tentei acertar Desi, e nós lutamos, e ele bateu em mim com o pedaço de
madeira. Com força. E quando dei por mim...
— Você tinha me incriminado por assassinato e desaparecido.
— Posso explicar tudo, Nick.
Eu a encarei por um longo momento, concentradamente. Vi dias sob o sol quente esticados na
areia da praia, sua mão no meu peito, e vi jantares de família na casa dos pais dela, com Rand
sempre enchendo meu copo e me dando tapinhas no ombro, e nos vi esparramados no tapete em
meu apartamento vagabundo de Nova York, conversando enquanto olhávamos para o ventilador
de teto preguiçoso, e vi a mãe do meu filho e a vida incrível que um dia eu planejara para nós.
Tive um instante que durou dois tempos, um, dois, em que desejei violentamente que ela
estivesse dizendo a verdade.
— Na verdade não acho que você possa explicar tudo — disse eu. — Mas vou adorar vê-la
tentar.
— Vou tentar, pode perguntar.
Ela tentou pegar minha mão e eu a afastei. Andei para longe dela, respirei fundo e então me
virei para encará-la. Minha esposa sempre devia ser encarada.
— Vá em frente, Nick. Pergunte.
— Certo, está bem. Por que todas as pistas da caça ao tesouro estavam escondidas em
lugares onde eu tive... relações com Andie?
Ela suspirou, olhou para o chão. Seus tornozelos estavam esfolados.
— Eu nem sabia sobre Andie até ver na TV, enquanto estava amarrada à cama de Desi,
escondida na casa dele no lago.
— Então tudo isso foi... coincidência?
— Todos eram lugares que significavam muito para nós — disse ela, uma lágrima correndo
pelo rosto. — Seu escritório, onde você reacendeu sua paixão pelo jornalismo.
Bufei.
— Hannibal, onde eu finalmente entendi quanto esta região significa para você. A casa do seu
pai; enfrentando o homem que tanto o feriu. A casa de sua mãe, que hoje é a casa de Go, as duas
pessoas que fizeram de você um homem tão bom. Mas... Acho que não me surpreende que você
quisesse partilhar esses lugares com alguém por quem você... — disse, curvando a cabeça —
tinha se apaixonado. Você sempre gostou de reprises.
— Por que cada um desses lugares acabou incluindo pistas que me implicaram no seu
assassinato? Roupa de baixo feminina, sua bolsa, seu diário. Explique seu diário, Amy, com
todas aquelas mentiras.
Ela apenas sorriu e balançou a cabeça como se sentisse pena de mim.
— Tudo, eu posso explicar tudo.
Olhei para aquele rosto doce molhado de lágrimas. Depois baixei os olhos para todo aquele
sangue.
— Amy. Onde está Desi?
Ela balançou a cabeça novamente, um sorrisinho triste.
Fui telefonar para a polícia, mas uma batida na porta me disse que eles já estavam ali.
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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