seda preta na cabeça e uma cesta pendurada no braço.
— Ei, Sra. Dean! — exclamou. — Fala-se muito da senhora, em Gimmerton. Pensei que se tinha afogado no pântano de Blackhorse, e a
menina também, até que o patrão me contou que tinham sido encontradas e
que ele as tinha alojado aqui! Quanto tempo ficaram no pântano? Subiram
para uma ilha ou foi o patrão que as salvou, hein, Sra. Dean? Más não está
com mau aspecto. . . Não passou fome, passou?
— O seu patrão é um canalha! — repliquei. — Mas ele há de pagar por
tudo. Não precisava ter inventado essa mentira: a verdade acabará por vir à tona!
— Que quer dizer com isso? — perguntou Zillah. — Ele não inventou
nada: é o que dizem no povoado: que a senhora e a menina se perderam no
pântano. Mal cheguei a casa, chamei Earnshaw: "Ei, parece que aconteceu
uma desgraça, Sr. Hareton, durante a minha folga. Pobrezinha da menina e da
boa Nelly Dean!" Ele ficou me olhando. Pensei que não soubesse de nada e
contei-lhe o que tinha ouvido. O patrão escutou, sorriu e disse: "Se estiveram
perdidas no pântano, agora já estão salvas, Zillah. Nelly Dean está lá em cima,
no seu quarto. Pode-lhe dizer para sair, quando subir; aqui está a chave.
Bebeu muita água do pântano e queria correr para casa, mas não estava em condições, de modo que resolvi impedi-la de sair enquanto não se acalmasse.
Pode dizer-lhe que vá imediatamente para a granja, se estiver em condições,
avisar que a sua jovem ama seguirá a tempo de assistir aos funerais do pai".
— Quer dizer que o Sr. Edgar ainda não morreu? — perguntei. — Oh,
Zillah, Zillah!
— Não, ainda não. Sente-se, minha boa Nelly — retrucou ela. —
Agora, sim, está com mau aspecto. Ele ainda não morreu; o Dr. Kenneth acha
que talvez dure mais um dia. Encontrei-o na estrada e perguntei-lhe.
Em vez de me sentar, peguei nas minhas coisas e desci correndo,
aproveitando a porta aberta. Ao entrar na sala, olhei em volta, à procura de
alguém que me informasse a respeito de Catherine. A porta estava
escancarada e o sol entrava por ela, mas ninguém parecia estar por perto. Eu
hesitava entre sair logo ou voltar em busca da minha ama, quando uma
tossezinha seca me fez virar para a lareira. Linton jazia no sofá, sozinho,
chupando um pedaço de açúcar-cande e seguindo os meus movimentos com
olhar apático. — Onde está a Srta. Catherine? — perguntei, com voz severa,
supondo que, por tê-lo apanhado assim, a sós, poderia, assustando-o, forçá-lo
a dar-me informações. Mas ele continuou a chupar o açúcar, com ar inocente.
— Ela já foi embora? — insisti.
— Não — respondeu ele. — Está lá em cima. Não vai embora; nós não
vamos deixar.
— Você não vai deixar, seu idiota! — exclamei. — Leve-me
imediatamente para junto dela, ou juro que o faço gritar.
— Papai é que ia fazer você gritar, se tentasse chegar junto dela —
retrucou ele. — Diz para eu não ser mole com Catherine: ela é minha mulher,
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e é uma vergonha querer abandonar-me. Diz que ela me odeia e quer que eu
morra, para ficar com o meu dinheiro; mas ela não há de tê-lo e não há de ir
para casa! Nunca! Pode chorar o quanto quiser e ficar doente, que nunca irá
para casa!
E pôs-se de novo a chupar, fechando os olhos, como se quisesse
dormir.
— Sr. Heathcliff — insisti —, será que já esqueceu tudo o que
Catherine lhe fez no inverno passado, quando lhe declarou que a amava e ela
lhe trouxe livros e lhe cantou baladas e muitas vezes desafiou o vento e a neve
para o vir visitar? Chorava, quando não podia vir, não querendo decepcioná-
lo; e você dizia que ela era demasiado boa; agora, porém, acredita nas
mentiras que o seu pai diz, embora saiba que ele detesta ambos. E põe-se do
lado dele, contra ela. Bela gratidão, não acha?
Os cantos da boca de Linton descaíram e ele tirou o açúcar-cande de
entre os lábios.
— Ela veio até aqui porque o odiava? — continuei. — Pense por si
mesmo! Quanto ao seu dinheiro, ela nem sabe que ele existe. Diz que ela está
doente, mas deixa-a sozinha, numa casa estranha! Deveria saber o que é ser
abandonado à própria sorte! Mas não, só sabe compadecer-se dos seus
próprios sofrimentos; ela também se compadecia, mas ninguém se
compadece dela! Derramei lágrimas, Sr. Heathcliff, como vê (eu, uma mulher
de meia-idade e simples criada), enquanto você, depois de fingir afeto e de ter
razões de sobra para idolatrá-la, poupa as lágrimas para si mesmo e fica aí
deitado, como se nada estivesse acontecendo. Ah, você não passa de um
rapaz egoísta e sem coração!
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— Não posso ficar junto dela — replicou ele, irritado. — Não agüento
ficar com ela. Chora sem parar e não há meio de se calar, mesmo que eu diga
que vou chamar o meu pai. Chamei-o uma vez e ele ameaçou estrangulá-la, se
ela não ficasse quieta; mas ela recomeçou a chorar assim que ele saiu do
quarto e passou a noite gemendo e chorando, embora eu gritasse que não
podia dormir.
— O Sr. Heathcliff saiu? — perguntei, percebendo que a infeliz criatura
não tinha capacidade de solidarizar-se com a prima.
— Está no pátio — respondeu ele —, falando com o Dr. Kenneth, que
lhe disse ser verdade que o meu tio está morrendo. Fico satisfeito, porque
passarei a dono da granja. Catherine sempre se referiu a ela como sendo a
casa dela. Mas não é dela, é minha: papai diz que tudo o que ela tem é meu. Os
seus belos livros são meus; ela disse que os dava a mim e os passarinhos e o
pônei, Minny, se eu fosse buscar a chave do nosso quarto e a deixasse sair;
mas eu respondi que ela não me podia dar nada, pois era tudo meu. Então ela
chorou e tirou um camafeu do pescoço e disse que me daria aquilo: dois
retratos dentro de um camafeu de ouro, de um lado a mãe, do outro o meu
tio, quando eram jovens. Isso foi ontem; disse-lhe que aquilo também era
meu e tentei arrancar-lhe o camafeu. Mas a terrível criatura não me deixou:
empurrou-me e machucou-me. Gritei (isso a assusta), ela ouviu papai se
aproximar e partiu o camafeu ao meio, ficando-me o retrato da mãe dela na
mão; ela tentou esconder a outra metade, mas papai perguntou de que se
tratava e eu disse. Ele tirou a minha metade e ordenou-lhe que me desse a
dela; Catherine recusou-se e aí ele. . . ele a jogou ao chão com um tapa,
arrancou o medalhão da corrente e esmagou-o com o pé.
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— E você gostou de vê-lo bater-lhe? — perguntei, com a intenção de
encorajá-lo a falar.
— Estremeci — respondeu ele. — Estremeço, sempre que vejo meu
pai bater num cão ou num cavalo; bate com tanta força! A princípio gostei;
ela merecia isso por me haver empurrado. Mas, quando papai se foi, ela me
fez chegar à janela e mostrou-me o lábio cortado, contra os dentes, e a boca
enchendo-se de sangue; depois juntou os pedaços do retrato do pai e sentouse
com o rosto para a parede, e desde então nunca mais falou comigo: às
vezes penso que ela não pode falar de dor. Não gosto de pensar nisso; mas ela
é insuportável, chorando sem parar; e está tão pálida, que até parece louca e
eu sinto medo dela.
— E você pode apanhar a chave quando quiser? — perguntei.
— Posso, quando subir — respondeu ele. — Mas agora não vou subir.
— Em que quarto ela está? — insisti.
— Ora — exclamou ele —, não lhe vou dizer onde é! Ninguém, nem
Hareton, nem Zillah, pode saber. É segredo! Pronto, você me cansou. . . Vá-
se embora, vá! — E, apoiando o rosto no braço, fechou novamente os olhos.
Achei melhor sair sem falar com o Sr. Heathcliff e trazer socorros da
granja para a menina. Ao chegar à granja, o espanto dos outros criados e a sua
alegria de me ver foram enormes; e, quando ouviram dizer que a sua jovem
ama estava bem, dois ou três quiseram logo subir a gritar a boa nova à porta
do Sr. Edgar — mas eu própria me encarreguei de lhe dar a notícia. Como o
achei mudado, no decorrer daqueles poucos dias! Era a imagem da tristeza e
da resignação, à espera da morte. Parecia muito jovem; embora a sua idade
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real fosse de trinta e nove anos, dava a impressão de ter dez a menos. Pensava
em Catherine, pois murmurou o seu nome. Toquei-lhe na mão e sussurrei:
— Catherine já vem, querido patrão! Está viva e bem; espero que volte
esta noite mesmo.
Tremi, ante a sua primeira reação à notícia: ele se soergueu, olhou
ansiosamente em volta e desmaiou. Tão logo recobrou os sentidos, narrei-lhe
a nossa visita forçada e a nossa detenção no Morro dos Ventos Uivantes.
Disse-lhe que Heathcliff me obrigara a entrar — o que não era bem verdade.
Falei o menos possível contra Linton e não lhe descrevi a conduta brutal do
pai dele, pois não queria amargurá-lo e afligi-lo ainda mais.
Ele adivinhava que um dos propósitos do seu inimigo era apoderar-se
da sua fortuna pessoal e da propriedade para o filho, ou antes, para si próprio;
por que razão não esperava que ele morresse era algo que intrigava o meu
amo, que ignorava estar o sobrinho tão perto da morte quanto ele mesmo.
Contudo, achou que devia alterar o seu testamento: em vez de deixar a
fortuna de Catherine à sua disposição, resolveu confiá-la a depositários para
seu usufruto enquanto ela vivesse e para o dos filhos, se os tivesse, depois que
morresse. Dessa maneira, não poderia cair nas mãos de Heathcliff, caso
Linton falecesse.
Assim que recebi essas ordens, mandei um criado buscar o advogado e
outros quatro empregados, todos armados, salvarem a minha ama da sua
prisão. Tanto um quanto os outros demoraram muito a voltar. O criado que
fora a Gimmerton regressou primeiro, dizendo que o Sr. Green, o advogado,
não estava, quando ele chegara à sua casa, e que tivera de esperar duas horas
para que voltasse; e que depois o Sr. Green lhe dissera que tinha um caso
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urgente a resolver no povoado, mas que iria à Granja Thrushcross antes que
amanhecesse. Os quatro homens também voltaram desacompanhados,
anunciando que Catherine estava doente, demasiado doente para sair do seu
quarto, e que o Sr. Heathcliff não os deixara vê-la. Passei-lhes uma boa
descompostura por terem dado crédito a tal história, que não poderia
transmitir ao meu amo, e resolvi, assim que rompesse o dia, levar uma tropa
ao Morro e ameaçar invadir a casa, a menos que nos entregassem a
prisioneira. "O pai há de voltar a vê-la", jurei, "mesmo que aquele demônio
seja morto ao tentar barrar-nos a entrada!"
Felizmente, Deus quis poupar-me a viagem e as dificuldades. Eu tinha
descido, às três da manhã, para buscar um jarro de água e estava passando
pelo hall com ele na mão, quando umas fortes pancadas na porta principal
quase me fizeram derramar a água. "Ora, deve ser Green", pensei, serenando.
"Só pode ser." E continuei a andar, decidida a mandar que outra pessoa
abrisse a porta. Mas as batidas continuavam, não com tanta força, mas
insistentes. Pousei o jarro e corri a abrir eu mesma. O luar brilhava, lá fora.
Não era o advogado. A minha queridinha pulou-me para o pescoço,
soluçando:
— Ellen! Ellen! Papai ainda está vivo?
— Está! — falei. — Está, sim, meu anjo. Deus seja louvado por você
estar de novo conosco, sã e salva!
Ela queria correr, mesmo exausta como estava, escada acima, para o
quarto do Sr. Linton; mas eu insisti para que se sentasse, fi-la beber uma
xícara de chá e lavei-lhe o rosto pálido, esfregando-o depois com o meu
avental, até lhe avivar um pouco a cor. Depois convenci-a a deixar-me subir
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primeiro, a fim de anunciar a sua chegada, e implorei-lhe que dissesse ao pai
que seria muito feliz com o jovem Heathcliff. Ela olhou para mim, mas logo
compreendeu por que razão eu a aconselhava a mentir e garantiu-me que não
se queixaria.
Não tive forças para assistir ao encontro deles. Fiquei do lado de fora
do quarto uns bons quinze minutos e só depois me aventurei a me aproximar
da cama. Mas não precisava preocupar-me: o desespero de Catherine era tão
silencioso quanto a alegria do pai. Ela o sustentava calmamente, na aparência;
e ele fixava nas feições dela os seus olhos erguidos, que pareciam dilatados
pelo êxtase.
Morreu feliz, Sr. Lockwood. Beijando-lhe a face, murmurou:
— Vou ter com ela; e você, minha querida, um dia irá ter conosco! —
Depois, não mais falou nem se mexeu, mas continuou a olhá-la daquela
maneira extasiada, radiante, até seu pulso parar imperceptivelmente e a sua
alma partir. Ninguém poderia dizer o exato minuto da sua morte, tão
tranqüila ela foi.
Fosse porque Catherine já tivesse gasto todas as suas lágrimas, fosse
porque a sua dor era demasiado grande para chorar, o certo é que ficou
sentada, sem uma lágrima, até o sol nascer; continuou sentada até o meio-dia
e mais tempo ficaria ainda ao lado da cama onde o pai jazia morto, se eu não
insistisse para que descansasse um pouco. Ainda bem que consegui convencê-
la, pois à hora do almoço apareceu o advogado, após ter ido ao Morro pedir
instruções sobre como proceder. Vendera-se ao Sr. Heathcliff: essa fora a
causa da sua demora em atender ao chamado do meu amo. Felizmente, após a
chegada da filha, ele não pensara mais em nada.
O Sr. Green tomou a casa e os seus habitantes a seu cargo. Deu ordem
a todos os criados, menos a mim, para se irem embora e teria levado a sua
autoridade ao ponto de insistir para que Edgar Linton não fosse enterrado ao
lado da esposa, e sim na capela, com o resto da sua família. Mas havia o
testamento e os meus protestos contra qualquer infração dos seus
dispositivos. O funeral foi apressado; Catherine, agora Sra. Linton Heathcliff,
teve permissão para permanecer na granja até a saída do corpo do pai.
Contou-me ela que a sua aflição levara, por fim, Linton a correr o risco
de soltá-la. Ouvira os homens que eu tinha mandado discutir à porta e
deduzira o sentido da resposta de Heathcliff. Aquilo a desesperara. Linton,
que fora chamado à saleta pouco depois de eu ter saído, de tal maneira ficara
com medo dela que fora buscar a chave antes que o pai subisse. Tivera a
esperteza de passar a chave na fechadura, sem contudo fechar a porta; e, à
hora de ir para a cama, pedira para dormir no quarto de Hareton e seu pedido
fora satisfeito, dessa vez. Catherine fugira antes do raiar do dia. Não ousara
sair pela porta, com medo de que os cães latissem; entrou nos quartos vazios
e examinou as janelas; por sorte, ao chegar ao quarto que fora da sua mãe,
passou facilmente pela janela e daí para o chão, ajudada pelos galhos do
abeto. Seu cúmplice não escapara ao castigo, apesar da tímida colaboração.
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