sexta-feira, 14 de agosto de 2015

CAPÍTULO XXIX


Na noite seguinte ao funeral, eu e a minha patroazinha ficamos sentadas na biblioteca, ora meditando tristemente — ela, desesperadamente — na
nossa perda, ora fazendo conjeturas quanto ao sombrio futuro que nos esperava.
Concordávamos em que o melhor destino que Catherine poderia
esperar seria ter permissão para continuar a residir na granja, pelo menos
enquanto Linton vivesse, podendo ele vir ter com ela e eu permanecer como
governanta. O arranjo parecia demasiado favorável para que se pudessem ter
esperanças, mas a verdade é que eu as tinha e começava a me animar ante a
idéia de conservar a minha casa, o meu lugar e, acima de tudo, a minha
adorada patroazinha, quando um criado — dos que haviam sido despedidos
mas que ainda não se tinham ido — entrou correndo e disse que "aquele
diabo de Heathcliff" estava vindo pelo terreiro; deveria fechar-lhe a porta na
cara?
Mesmo que houvéssemos tido a loucura de ordenar esse procedimento,
não teríamos tempo. Ele não se deu ao trabalho de bater ou de se anunciar:
era o dono e, como tal, entrou direto, sem dizer palavra. A voz do nosso
informante dirigiu-o para a biblioteca: entrou e, fazendo um gesto para que
ele saísse, fechou a porta.
Era a mesma sala na qual ele fora introduzido como visita, dezoito anos
antes; o mesmo luar brilhava através da janela e a mesma paisagem outonal se
estendia lá fora. Ainda não tínhamos acendido as velas, mas o luar tornava
tudo visível, até mesmo os retratos na parede: a esplêndida cabeça da Sra.
Linton e as corretas feições do seu marido. Heathcliff avançou para a lareira.
O tempo também quase não alterara a sua pessoa. Era o mesmo homem: seu
rosto moreno estava mais pálido e mais composto, seu físico um pouco mais
pesado, mas nada mais. Catherine levantara-se, como se fosse sair do
aposento, ao vê-lo entrar.
— Pare! — disse ele, segurando-a pelo braço. — Acabaram-se as fugas!
Para onde iria você? Vim levá-la para casa e espero que seja uma filha
cumpridora dos seus deveres, que não encoraje o meu filho a mais
desobediências. Fiquei sem saber como castigá-lo, quando descobri a sua
participação na fuga: está tão fraquinho que um simples beliscão poderia dar
cabo dele; mas você verá, pelo seu aspecto, que recebeu o que merecia!
Trouxe-o para baixo uma noite, anteontem, sentei-o numa cadeira e não o
toquei. Mandei Hareton para fora e ficamos com a sala só para nós dois. Dali
a duas horas, chamei Joseph para carregá-lo de novo para cima; e, desde
então, a minha presença é tão apavorante quanto um fantasma, para os nervos
dele, e parece que está sempre me vendo, embora eu não esteja por perto.
Hareton diz que ele acorda e grita no meio da noite, quase de hora em hora,
chamando por você para o proteger de mim; e, goste ou não do seu precioso
consorte, você terá de vir comigo: ele agora é seu; deixei de me interessar por ele.
— Por que não permitir que Catherine continue aqui — supliquei — e
mandar o Sr. Linton para cá? Já que o senhor os detesta, não sentiria falta
deles: ao contrário, só podem ser uma autêntica praga para alguém destituído de coração.
— Estou procurando um inquilino para a granja — replicou ele — e
quero os meus filhos junto de mim. Além do mais, essa moça deve-me
serviços em troca do sustento. Não vou mantê-la no luxo e na ociosidade,
depois que Linton se for. Apronte-se depressa, agora; e não me obrigue a
levá-la à força.
— Irei — respondeu Catherine. — Linton é tudo quanto eu tenho para
amar no mundo e, embora o senhor tenha feito o possível para torná-lo
odioso aos meus olhos e vice-versa, não pode fazer com que nos odiemos um
ao outro. Desafio-o a atormentá-lo quando eu estiver perto e desafio-o a
amedrontar-me!
— Você não passa de uma gabola — replicou Heathcliff. — Mas eu
não gosto de você o suficiente para atormentá-lo: você é que será a
atormentada. E não serei eu que o tornarei odioso para você. . . e sim ele
próprio. Está furioso com a sua deserção e suas conseqüências: não espere
agradecimentos pela sua nobre devoção. Ouvi-o descrever a Zillah o que ele
faria se fosse forte como eu: a inclinação é a mesma e a sua própria fraqueza
fará com que ele pense até encontrar um substituto para a força.
— Sei que ele tem mau caráter — disse Catherine. — Basta ser seu
filho. Mas felizmente o meu caráter é melhor, capaz de perdoá-lo; sei que ele
me ama e, por essa razão, eu o amo também. Sr. Heathcliff, o senhor não tem
ninguém que o ame; e, por mais sofrimento que nos cause, sempre teremos a
vingança de pensar que a sua crueldade resulta de um sofrimento ainda maior.
O senhor é desgraçado, não é? Só, igual ao Demônio, e invejoso como ele!
Ninguém o ama. . . ninguém chorará pelo senhor, quando morrer! Não queria
estar no seu lugar!
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Catherine falou com um ar de triunfo; parecia ter-se resolvido a entrar
no espírito da sua futura família e tirar prazer dos sofrimentos dos seus
inimigos.
— Você terá mas é pena de ser você mesma — retrucou o sogro — se
ficar nesta sala mais um minuto. Fora, diabo, e vá arrumar as suas coisas!
Ela se retirou, com ar desdenhoso. Aproveitei a sua ausência para
suplicar que ele me desse o lugar de Zillah, na casa do Morro, oferecendo-me
para trocar de posto com ela; mas ele não queria nem ouvir falar nisso. Mandou-me
calar e, pela primeira vez, se permitiu olhar em volta da sala e para os
retratos. Depois de ter contemplado o da Sra. Linton, falou:
— Este retrato há de ser meu. Não porque precise dele, mas porque. . .
— Voltou-se abruptamente para o fogo e continuou com o que, à falta de
palavra melhor, devo chamar um sorriso: — Vou lhe dizer o que fiz ontem.
Convenci o coveiro que estava abrindo a sepultura de Linton a remover a
terra de cima do caixão dela e abri-lo. Pensei, por um minuto, em ficar lá:
quando vi novamente o rosto dela (permanece o mesmo), ele teve muito trabalho
para me tirar dali; mas disse que, se o ar entrasse, alteraria o rosto, de
modo que desprendi um dos lados do caixão e voltei a cobri-lo: não o lado
que dá para Linton, diabos o levem! Por minha vontade, o seu caixão seria
soldado com chumbo. E dei dinheiro ao coveiro para tirar o corpo dela para
fora, quando me enterrar, e o meu também; mandarei fazer o meu caixão
especialmente. E então, quando Linton chegar a nós não saberá quem é
quem!
— O senhor é mesmo um homem perverso! — exclamei. — Não teve
vergonha de perturbar a paz dos mortos?
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— Eu não perturbei ninguém, Nelly! — replicou ele. — O que dei foi
um pouco de tranqüilidade a mim mesmo. Doravante, sentir-me-ei mais
confortado; e vocês terão mais oportunidade de me manterem debaixo da
terra, quando eu lá chegar. Eu, perturbá-la? Ela é que me perturbou, noite e
dia, durante dezoito anos. . . incessantemente . . . inexoravelmente. . . até
anteontem; anteontem à noite, eu fiquei tranqüilo. Sonhei que estava
dormindo o último sono junto dela, com o meu coração parado e a minha
face gelada contra a sua.
— E se ela tivesse se dissolvido na terra, ou pior ainda, com que é que
o senhor teria sonhado? — perguntei.
— Teria sonhado em me dissolver com ela e a minha felicidade seria
ainda maior! — respondeu ele. — Você acha que eu tenho medo disso?
Esperava vê-la transformada em terra, quando abri a tampa do caixão, mas
prefiro que isso não tenha começado antes de eu poder partilhar também
dessa alteração. Além do mais, a menos que eu tivesse recebido uma
impressão diferente das suas feições impassíveis, esse estranho sentimento
dificilmente teria sido modificado. Você sabe como fiquei fora de mim,
depois que ela morreu; e eternamente, diariamente, pedia que ela me
devolvesse o seu espírito! Acredito piamente em fantasmas: estou convencido
de que eles podem existir. . . e existem. . . entre nós! No dia em que ela foi
enterrada, caiu uma nevada. À noite, fui até o cemitério. Soprava um vento
desolado, como se fosse inverno . . . tudo em volta estava solitário. Não tinha
medo de que o imbecil do marido dela fosse até ali tão tarde; e ninguém mais
tinha o que fazer no cemitério. Sozinho e sabendo que a única barreira entre
nós eram dois metros de terra solta, disse comigo mesmo: "Hei de apertá-la
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novamente nos braços! Se ela estiver fria, pensarei que é este vento do norte
que me gela; e, se ela estiver imóvel, que está dormindo". Apanhei uma pá na
casa de ferramentas e comecei a cavar com todas as minhas forças, até bater
no caixão; depois pus-me a trabalhar com as mãos; a madeira já estalava nas
dobradiças; eu estava quase alcançando o meu objetivo, quando me pareceu
ouvir um suspiro de alguém que estivesse à beira da cova e debruçado sobre
ela. "Se eu pudesse tirar isto para fora!", murmurei. "Gostaria que nos
cobrissem de terra, a nós dois!" E tentei mais desesperadamente ainda abrir o
caixão. Nisso, ouvi outro suspiro, junto a mim, e pareceu-me sentir um hálito
quente varrer o vento carregado de granizo. Sabia que não havia ninguém por
perto, nenhuma criatura viva, em carne e osso; mas, da mesma forma que a
gente percebe a aproximação de um corpo no escuro, embora não se possa
vê-lo, assim eu tive a certeza de que Catherine estava ali: não debaixo de mim,
mas sobre a terra. Uma súbita sensação de alívio fluiu do meu coração para
todos os membros. Desisti dos meus esforços desesperados e senti-me
imediatamente consolado. . . indescritivelmente consolado. A presença dela
estava comigo; permaneceu comigo enquanto eu enchia de novo a sepultura e
conduziu-me para casa. Você pode rir, se quiser, mas eu tinha a certeza de
que a veria lá. Ao chegar ao Morro, corri ansiosamente para a porta. Estava
trancada e lembro-me de que o maldito Earnshaw e a minha mulher não me
queriam deixar entrar. Lembro-me de o moer a pontapés e de precipitar-me
escada acima, para o meu quarto e o dela. Olhei em torno, impaciente. . .
sentia-a junto a mim. . . quase a podia ver e, contudo, não podia! Devo ter suado
sangue, tal a angústia do meu desejo. . . tal o fervor das minhas súplicas de
vê-la pelo menos uma vez! Mas não. Ela se mostrou, como tantas vezes em
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vida, um demônio para comigo! E, desde então, às vezes mais e outras vezes
menos, tenho sido alvo dessa intolerável tortura! De uma tortura infernal, que
me põe os nervos numa tal tensão que, se não parecessem feitos de categute,
há muito teriam ficado tão fracos quanto os de Linton. Quando estava em
casa com Hareton, parecia-me que, se saísse, a encontraria; quando caminhava
pela charneca, era como se fosse encontrá-la, ao entrar em casa. Quando saía
de casa, apressava-me a voltar: eu estava certo de que ela estaria em algum
lugar, lá no Morro! E quando dormia no quarto dela. . . era horrível! Não
podia repousar; desde o momento em que fechava os olhos, ela estava ou do
lado de fora da janela, ou correndo os painéis de madeira, ou entrando no
quarto, ou até mesmo pousando a sua querida cabeça no mesmo travesseiro
que eu, como fazia em criança; e eu tinha de abrir os olhos para vê-la. Abriaos
e fechava-os uma centena de vezes por noite. . . para levar sempre uma
decepção! Era uma tortura! Muitas vezes gemia em voz alta, fazendo com que
aquele diabo de Joseph sem dúvida pensasse que a consciência estava me
atormentando. Agora, desde que a vi, fiquei em paz. . . um pouco. Foi uma
estranha maneira de matar, não por polegadas, mas por frações e fios de
cabelo, enganar-me com o espectro de uma esperança, durante dezoito anos!
O Sr. Heathcliff fez uma pausa e enxugou a testa; o cabelo estava
grudado nela, molhado de suor; seus olhos estavam fixos nas brasas
vermelhas do fogo, as sobrancelhas não contraídas, mas erguidas quase até as
têmporas; diminuindo o ar severo do seu rosto, mas emprestando-lhe um
peculiar aspecto de perturbação e de dolorosa tensão mental provocada por
um assunto absorvente. Mal se dirigia a mim e eu guardava silêncio. Não
gostava de ouvir falar! Após um curto período, voltou a concentrar-se no
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retrato, tirou-o da parede e apoiou-o contra o sofá, para melhor o contemplar;
enquanto isso, Catherine entrou, anunciando que estava pronta e que só
faltava selar o seu pônei.
— Mande-me esse retrato amanhã — ordenou Heathcliff, falando
comigo; depois, voltando-se para ela, acrescentou: — Você pode prescindir
do pônei; está uma noite linda e não vai precisar de pôneis no Morro dos
Ventos Uivantes; para os passeios que der, os seus pés vão-lhe servir. Vamos.
— Adeus, Ellen! — murmurou a minha adorada patroazinha. Beijoume,
com os lábios frios como gelo. — Venha visitar-me, Ellen; não se
esqueça.
— Cuidado para não fazer tal coisa, Sra. Dean! — ameaçou Heathcliff.
— Quando eu quiser lhe falar, virei até aqui. Não quero nenhuma intromissão
da sua parte na minha casa!
Fez sinal para que Cathy o precedesse. Lançando-me um olhar que me
cortou o coração, ela obedeceu. Vi-os, da janela, descerem o jardim.
Heathcliff prendeu o braço de Catherine no seu, embora ela visivelmente
tentasse soltar-se; e, com passadas rápidas, arrastou-a pela aléia cujas árvores
os esconderam.

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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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