segurou a porta com a mão, quando fui perguntar por ela, e não me deixou
entrar. Disse que a Sra. Linton estava ocupada e que o patrão não estava em
casa. Zillah contou-me alguma coisa da maneira como vivem; de outra forma,
eu mal saberia quem tinha morrido e quem continuava vivo. Acha Catherine
orgulhosa e, pelos seus comentários, deduzo que não gosta dela. A minha
jovem ama pediu-lhe ajuda, assim que chegou, mas o Sr. Heathcliff disse-lhe
que cuidasse da sua vida e deixasse a sua nora cuidar de si mesma — ao que
Zillah aquiesceu de boa vontade, pois é uma mulher mesquinha e egoísta.
Catherine reagiu infantilmente a esse descaso; pagou-o com desdém e assim
colocou a minha informante entre os seus inimigos, como se lhe tivesse feito
alguma coisa. Há cerca de mês e meio, tive uma longa conversa com Zillah —
pouco antes de o senhor vir para cá —, um dia em que nos encontramos na
charneca, e eis o que ela me contou:
— A primeira coisa que a Sra. Linton fez, ao chegar ao Morro, foi
correr escada acima, sem sequer dar boa-noite a mim e a Joseph; fechou-se no
quarto de Linton e lá ficou até de manhã. Depois, quando o patrão e Earnshaw
estavam tomando o desjejum, entrou na sala e perguntou, com voz
trêmula, se podia chamar o médico, pois o seu primo estava muito mal.
" 'Já sabemos disso!', respondeu Heathcliff. 'Mas a vida dele não vale
dez réis e não vou gastar dinheiro com ele.'" 'Mas eu não sei o que fazer', insistiu ela, 'e se ninguém me ajudar ele
morrerá!'
" 'Saia da sala', gritou o patrão, 'e nunca mais me fale dele! Ninguém
aqui se importa com o que lhe possa acontecer; se você se importa, cuide
dele; se não, tranque-o no quarto e deixe-o morrer.'
"Ela então começou a. aborrecer-me e eu lhe respondi que já tinha tido
bastante trabalho com aquele garoto impertinente; cada qual tinha a sua tarefa
e a dela era cuidar de Linton. O Sr. Heathcliff ordenara-me que deixasse isso a
seu cargo.
"Como eles faziam, eu não sei. Imagino que ele se queixasse muito e
gemesse noite e dia e que ela quase não descansasse; a gente podia ver isso
pela palidez do seu rosto e pelas olheiras. Às vezes ela entrava na cozinha
com ar alarmado, como se quisesse pedir ajuda; mas eu não ia desobedecer ao
patrão: nunca me atrevo a desobedecer-lhe, Sra. Dean; e, embora achasse que
Kenneth devia ser chamado, não era da minha conta dar conselhos ou
reclamar, e sempre me recusei a intrometer-me. Uma ou duas vezes, depois
de me haver deitado, aconteceu ter de abrir a porta do quarto e vi-a chorando,
no alto da escada; mas tratei logo de fechar a porta, com medo de ser
obrigada a interferir. Tinha pena dela, claro; mas não queria perder o
emprego, a senhora compreende.
"Finalmente, uma noite ela entrou resolutamente no meu quarto e
assustou-me terrivelmente, dizendo:
" 'Vá dizer ao Sr. Heathcliff que o filho está morrendo. . . tenho a
certeza de que está, desta vez. Levante-se e vá lhe dizer isso.'
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"Disse isso e desapareceu. Fiquei um quarto de hora tremendo e de
ouvido alerta. Nada se movia. A casa estava em silêncio.
" 'Ela está enganada', pensei com os meus botões. 'Ele teve um acesso,
mas já passou. Não preciso incomodá-los.' E comecei a cochilar. Mas o meu
sono foi interrompido, uma segunda vez, pelo toque estridente da campainha,
a única campainha que temos, instalada propositadamente para Linton; e o
patrão chamou-me para saber o que estava acontecendo e informar-lhes que
não queria estrondo àquela hora.
"Transmiti-lhe o recado de Catherine. Ele praguejou e dali a poucos
minutos saiu com uma vela acesa, a caminho do quarto deles. Acompanhei-o.
A Sra. Heathcliff estava sentada junto à cama, com as mãos cruzadas no
regaço. O sogro entrou, aproximou a vela do rosto de Linton, olhou para ele
e tocou-o; depois, voltou-se para ela.
" 'Como é que você se sente agora, Catherine?', perguntou.
"Ela não respondeu. Ele insistiu.
" 'Ele está livre e eu também', falou, por fim. 'Devia me sentir bem,
mas. . .', continuou, com uma amargura que não conseguia esconder, 'o
senhor me deixou tanto tempo lutando sozinha contra a morte, que eu só
sinto e vejo morte! Sinto-me como morta, também.'
"E parecia mesmo! Dei-lhe um pouco de vinho. Hareton e Joseph, que
tinham sido acordados pela campainha e pelo barulho de passos e das nossas
vozes, entraram no quarto. Joseph estava ansioso, eu acho, para que o rapaz
fosse removido; Hareton parecia um pouco emocionado, embora estivesse
mais ocupado a olhar para Catherine do que a pensar em Linton. Mas o
patrão mandou-o voltar para a cama: não precisávamos da sua ajuda. Depois,
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ordenou que Joseph levasse o corpo para o seu quarto e disse-me para voltai
para o meu, deixando a Sra. Heathcliff sozinha.
"De manhã, mandou-me dizer-lhe que ela devia descer para o desjejum.
Ela se despira, aparentemente para se deitar, e disse que não se sentia bem, o
que não me surpreendeu. Informei disso o Sr. Heathcliff, que retrucou:
" 'Bem, deixe-a em paz até depois do funeral; e suba de vez em quando,
para lhe levar o que for preciso. Tão logo ela pareça melhor, avise-me'."
Cathy ficou no quarto duas semanas, segundo Zillah, que a ia visitar
duas vezes por dia, e ter-se-ia mostrado bem mais amiga, se as suas tentativas
de aproximação não fossem pronta e orgulhosamente repelidas.
Heathcliff subiu tão logo pôde, para lhe mostrar o testamento de
Linton. Legara tudo o que era dele e os bens móveis dela ao pai: a pobre
criatura devia ter sido ameaçada ou levada ardilosamente a fazer isso durante
a semana em que estivera ausente pela morte do pai. Quanto às terras, sendo
ele menor de idade, não podia dispor delas. Contudo, o Sr. Heathcliff apelou
e conservou-as em nome da esposa e do seu próprio, creio que legalmente: de
qualquer maneira, privada de dinheiro e de amigos, Catherine não pode fazer
nada contra isso.
— Ninguém — contou Zillah — aproximou-se do quarto dela, exceto
dessa vez, senão eu; e ninguém fez qualquer pergunta sobre ela. A primeira
vez que ela desceu para a sala foi um domingo à tarde. Queixara-se, quando
lhe levei o almoço, de que não podia mais suportar o frio, e eu disse-lhe que o
patrão ia à Granja Thrushcross e que eu e Earnshaw não a impedíamos de
descer; de modo que, mal ouviu o galope do cavalo de Heathcliff se afastar,
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apareceu, toda vestida de preto e com os cachos louros penteados para trás
das orelhas, como se fosse uma quacre: não tinha vontade de se arrumar.
"Eu e Joseph geralmente vamos à capela aos domingos" (a igreja, como
o senhor sabe, não tem agora ministro — explicou a Sra. Dean — e chamam
capela ao templo dos metodistas ou dos batistas. . . não sei bem qual. . . que
há em Gimmerton). "Joseph tinha ido", continuou ela, "mas eu achei
conveniente ficar em casa. Os jovens precisam sempre de alguém mais velho
para vigiá-los e Hareton, com toda a sua timidez, não é um modelo de bom
comportamento. Dei-lhe a entender que a sua prima viria, provavelmente,
fazer-nos companhia e que estava habituada a respeitar os domingos, de
modo que era melhor ele deixar de lado as suas espingardas e os seus trabalhos,
enquanto ela estivesse presente. Ele ficou vermelho e olhou para as
mãos e para a roupa. Depois, pôs a pólvora e o óleo lubrificante fora de vista.
Percebi que queria fazer-lhe companhia e adivinhei que desejava estar
apresentável; por isso, rindo — como não me atrevo a rir, quando o patrão
está por perto —, ofereci-me para auxiliá-lo, se ele quisesse, e trocei da sua
confusão. Ele se zangou e começou a praguejar.
"Ora, Sra. Dean", prosseguiu Zillah, vendo que não me agradava a sua
maneira de falar, "decerto a senhora acha a sua menina demasiado fina para o
Sr. Hareton — e tem razão; mas eu confesso que gostaria de ver o orgulho
dela diminuído. E de que lhe adiantam agora todos os seus conhecimentos e
delicadezas? Está tão pobre quanto eu ou a senhora: ainda mais pobre, eu
acho, porque a senhora está poupando e eu também."
Hareton permitiu que Zillah o ajudasse e ela, mediante lisonjas,
restituiu-lhe o bom humor, de modo que, quando Catherine entrou, já quase
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esquecida dos seus antigos insultos, ele tentou mostrar-se agradável, segundo
a narrativa da governanta.
— A senhora entrou — disse ela —, fria como gelo e altiva como uma
princesa. Levantei-me e ofereci-lhe o meu lugar na poltrona, mas ela arrebitou
o nariz. Earnshaw também se levantou e disse-lhe que se sentasse no sofá,
perto do fogo, pois certamente ela estaria com frio.
" 'Tenho estado com frio há um mês e tanto', respondeu ela, da maneira
mais desdenhosa possível.
"Puxou uma cadeira e colocou-a bem afastada de nós dois. Quando já
se sentia aquecida, começou a olhar em volta e descobriu alguns livros no
aparador; pôs-se imediatamente de pé e esticou-se para tentar alcançá-los, mas
eles estavam demasiado altos. O primo, que acompanhava todos os seus
gestos, finalmente criou coragem e resolveu ajudá-la; ela levantou o vestido e
ele lhe jogou no regaço o primeiro volume que apanhou.
"Era um grande progresso, para o rapaz. Ela não lhe agradeceu, mas
assim mesmo ele ficou satisfeito por ela ter aceito a sua ajuda e atreveu-se a
ficar de pé atrás da cadeira e até a inclinar-se e apontar para o que mais lhe
chamava a atenção numas velhas gravuras que o livro tinha. Fingia não
reparar na maneira impertinente como ela virava as páginas de modo a lhe
afastar o dedo e contentava-se com recuar um pouco e olhar para ela, em vez
de para o livro. Ela continuava a ler ou a procurar alguma coisa para ler. Aos
poucos, a atenção dele foi se concentrando na contemplação dos grossos e
sedosos cachos dela: não lhe podia ver o rosto, nem ela o podia ver. E, talvez
sem saber o que fazia, mas atraído como uma criança para uma vela, por fim
ele estendeu a mão e tocou num cacho, tão suavemente como se fosse um passarinho. Mas foi como se lhe tivesse enfiado uma faca na nuca, tal a reação
dela.
" 'Saia daí imediatamente! Como é que você ousa tocar-me? Por que
está aí, de pé?', gritou, num tom de repulsa. 'Não posso com você! Voltarei
para o meu quarto, se você se aproximar de mim.'
"O Sr. Hareton recuou, com ar apatetado; sentou-se, muito quieto, no
sofá e ela continuou a virar as páginas por mais meia hora; finalmente,
Earnshaw atravessou a sala e falou no meu ouvido:
" 'Quer pedir a ela para ler para nós, Zillah? Estou cansado de não fazer
nada; e gostava. . . Acho que gostava de ouvir ela ler! Não diga que eu pedi,
tá?'
" 'O Sr. Hareton gostaria que a senhora lesse para nós', falei
imediatamente. 'Gostaria muito. . . Ficaria muito grato.'
"Ela franziu a testa e, olhando para nós, respondeu:
" 'O Sr. Hareton e todos vocês fiquem sabendo que rejeito todas as
simulações de amizade que têm a hipocrisia de me oferecer! Desprezo-os e
não tenho nada a dizer a nenhum de vocês! Quando teria dado a minha vida
por uma boa palavra ou mesmo por ver o rosto de vocês, todos me falharam.
Mas não me queixarei! O frio me impeliu a vir até aqui, não para distraí-los ou
gozar da sua companhia'.
" 'Que foi que eu fiz?', começou Earnshaw. 'Que culpa que eu tenho?'
" 'Bem, você é uma exceção', respondeu a Sra. Heathcliff. 'Nunca senti
falta dos seus cuidados.'
" 'Mas eu me ofereci mais de uma vez', retrucou ele, abespinhando-se.
'Pedi ao Sr. Heathcliff para me deixar sair da cama pra lhe atender. . .'
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" 'Cale-se! Irei daqui para fora, sei lá para onde, para não ter de ouvir a
sua voz horrível!', disse a minha ama.
"Hareton resmungou que, por ele, ela podia ir para o inferno e,
pegando na espingarda, não se incomodou mais em guardar o domingo.
Passou a falar alto e livremente, até que ela achou melhor retirar-se para a sua
solidão; mas o degelo começara e, apesar do seu orgulho, ela foi obrigada a
condescender cada vez mais com a nossa companhia. Contudo, resolvi não
deixar que ela voltasse a fazer pouco do meu bom gênio; desde então, tenho
me mostrado tão seca quanto ela e a sua ama não tem quem goste dela —
nem merece —, pois não se pode dizer-lhe uma palavra, que ela logo se
enfurece, sem respeito pôr ninguém! Responde até para o patrão e desafia-o a
surrá-la; e quanto mais sofre mais cheia de veneno fica."
Assim que Zillah acabou de me contar isso, resolvi deixar o meu
emprego, alugar uma casinha e fazer com que Catherine viesse viver comigo;
mas o Sr. Heathcliff nunca permitiria isso, da mesma maneira que não instalaria
Hareton numa casa independente; de modo que não vejo saída,
atualmente, para esse estado de coisas, a menos que ela pudesse voltar a casar, coisa que está fora do meu alcance.
A história da Sra. Dean terminou aqui. Não obstante o prognóstico do
médico, estou recobrando rapidamente as forças e, embora estejamos apenas
na segunda semana de janeiro, pretendo, dentro de um ou dois dias, ir a
cavalo até o Morro dos Ventos Uivantes, a fim de informar o meu senhorio
de que passarei os próximos seis meses em Londres e que, se ele quiser, pode procurar outro inquilino para alugar a granja a partir de outubro. Eu não passaria
outro inverno aqui por nada deste mundo.
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