sexta-feira, 14 de agosto de 2015

CAPÍTULO XXXI


Ontem fez um dia de sol, calmo e frio. Fui até o Morro, conforme
pensara; minha governanta pediu-me para levar um bilhete à sua jovem ama e
eu não recusei, pois a boa mulher não via nada de estranho no pedido. A
porta da frente estava aberta, mas o portão continuava zelosamente trancado,
como quando da minha última visita. Bati e chamei Earnshaw, ocupado entre
os canteiros do jardim; ele veio abrir e eu entrei. O rapaz é um belo tipo
rústico. Desta vez reparei bem nele; mas parece fazer o possível por não tirar
partido das suas qualidades.
Perguntei se o Sr. Heathcliff estava em casa. Ele respondeu que não,
mas que viria para o almoço. Eram onze da manhã e anunciei a minha
intenção de entrar e esperar por ele, diante do que imediatamente largou as
ferramentas e me acompanhou, mais como um cão de guarda do que como
um substituto para o dono da casa.
Entramos juntos; Catherine estava na sala, preparando hortaliças para o
almoço; pareceu-me mais taciturna e menos animada do que da primeira vez
em que a vira. Mal levantou os olhos para mim e continuou na sua tarefa com
o mesmo descaso para as mais corriqueiras normas de polidez que antes — não retribuindo, de nenhuma maneira, a minha reverência e os meus bonsdias.

"Não me parece tão amável", pensei, "quanto a Sra. Dean quer me levar
a crer. É muito bonita, sem dúvida, mas não é nenhum anjo."

Earnshaw ordenou-lhe que levasse as suas coisas para a cozinha. —
Leve-as você — retrucou ela, empurrando-as para longe, tão logo terminou; e,
sentando-se num banquinho junto à janela, começou a recortar figuras de
pássaros e animais nas cascas de nabo que tinha ao regaço. Aproximei-me,
fingindo querer ver o jardim, e — pelo menos no meu entender — deixei-lhe
cair no colo o bilhete da Sra. Dean, sem que Hareton se apercebesse disso.
Mas ela perguntou, em voz alta: — O que é isso? — e sacudiu-o.
— Uma carta de uma velha amiga, a governanta da granja — respondi,
aborrecido por ela ter revelado a minha boa ação e temeroso de que se
pensasse que era uma carta minha. Ela a teria de bom grado apanhado, mas
Hareton foi mais rápido; pegou-a e colocou-a no colete, dizendo que o Sr.
Heathcliff a leria primeiro. Ao ouvir isso, Catherine voltou-se silenciosamente
de costas para nós e, disfarçadamente, tirou o lenço e levou-o aos olhos; ao
que o primo, após ter lutado contra os seus bons sentimentos, puxou da carta
e jogou-a no chão, aos pés dela, da maneira mais brutal possível. Catherine
apanhou-a e leu-a ansiosamente; depois fez-me algumas perguntas a respeito
dos habitantes, racionais e irracionais, da sua antiga casa e, olhando na direção
dos morros, murmurou, num solilóquio:
— Como gostaria de descer aquela colina montada em Minny! Como
gostaria de subir àquele morro! Oh! como estou cansada. . . Sinto-me
embolorada, Hareton! — E reclinou a bonita cabeça no peitoril, com um misto
de bocejo e suspiro, que lhe dava um ar de abstrata tristeza, não se
importando nem querendo saber se a estávamos vendo.
— Sra. Heathcliff — disse eu, após ter passado algum tempo calado —,
sabe que a conheço muito bem? Tão bem, que acho estranho a senhora não
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falar comigo. A minha governanta não se cansa de falar na senhora e de
elogiá-la. Ficará muito desapontada, se eu voltar sem outra notícia a não ser
que a senhora recebeu a carta e não disse nada!
Ela pareceu pensar no que eu lhe dizia e perguntou:
— Ellen gosta do senhor?
— Muito — respondi, sem hesitar.
— Diga-lhe — continuou ela — que eu gostaria de poder responder à
carta, mas não tenho com que escrever: nem mesmo um livro, do qual
arrancar uma folha.
— Nem um livro! — exclamei. — Como pode viver aqui sem livros, se
me permite perguntar?! Embora tenha à mão uma grande biblioteca, muitas
vezes me sinto entediado, na granja; se me tirassem os livros, ficaria desesperado!

— Eu também estava sempre lendo quando tinha livros — retrucou
Catherine. — Mas o Sr. Heathcliff nunca lê e meteu na cabeça a idéia de
destruir os meus livros. Há meses que não vejo uma letra. Ou melhor, uma
vez passei em revista os volumes de teologia de Joseph, para sua grande
irritação; e outra vez, Hareton, descobri uma biblioteca secreta no seu quarto:
alguns livros em latim e grego e alguns volumes de contos e poesia, todos
velhos amigos. Trouxe os últimos para cá. . . e você os arrecadou como uma
pega junta colheres de prata, pelo simples prazer de roubar! Não lhe servem
para nada; ou então você os escondeu com a má intenção de, já que não os
pode ler, não deixar ninguém mais ter essa alegria. Quem sabe se a sua inveja
não induziu o Sr. Heathcliff a tirar-me os meus tesouros? Mas tenho a maioria
gravada na cabeça e no coração e disso vocês não podem privar-me!
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Earnshaw enrubesceu, ao ouvir a prima revelar o seu secreto acervo
literário, e tartamudeou uma indignada defesa das suas acusações.
— O Sr. Hareton está desejoso de aumentar a sua cultura — falei,
acorrendo em defesa dele. — Não o move a inveja e sim o desejo de emular os
seus conhecimentos. Em poucos anos será uma pessoa culta.
— E, enquanto isso, quer me ver transformada em burra — replicou
Catherine. — Sim, às vezes ouço-o tentando soletrar e ler sozinho, e não
imagina os erros que faz! Gostaria que repetisse Chevy Chase como o leu ontem:
era de morrer de rir. Fique sabendo que o ouvi; e ouvi-o folhear o
dicionário, para procurar as palavras difíceis, e depois praguejar porque não
conseguia ler as explicações!
O jovem, evidentemente, ficou furioso de ser objeto de troça pela sua
ignorância e ridicularizado por tentar acabar com ela. Eu também achei aquilo
de muito mau gosto e, lembrando-me do que a Sra. Dean me contara a
respeito da sua primeira tentativa de acabar com as trevas em que fora criado,
observei:
— Mas, Sra. Heathcliff, todos nós começamos do nada e todos
tropeçamos e vacilamos no início. Se os nossos mestres tivessem feito pouco
de nós, em vez de nos ajudar, ainda estaríamos tropeçando e vacilando.
— Ora — retrucou ela —, eu não quero limitar os conhecimentos dele;
contudo, ele não tem o direito de se apropriar do que é meu e de torná-lo
ridículo aos meus ouvidos com os seus erros crassos e a sua terrível pronúncia!
Esses livros, sejam de prosa ou poesia, são para mim sagrados e
detesto vê-los profanados por ele! Além do mais, ele escolheu os trechos que
eu mais gosto de repetir, como que de propósito.
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O peito de Hareton arquejou um momento em silêncio: ele estava num
estado de mortificação e raiva que não era fácil suprimir. Levantei-me e,
desejoso de lhe poupar embaraços, postei-me junto à porta, olhando a
paisagem. Ele seguiu o meu exemplo e saiu da sala; mas logo voltou, trazendo
meia dúzia de livros nas mãos, os quais jogou no regaço de Catherine,
dizendo:
— Pegue eles! Nunca mais vou querer ler eles ou pensar neles!
— Agora não os quero — retrucou ela. — Sempre que os lesse
pensaria em você e os odiaria.
Abriu um volume que estava, visivelmente, muito manuseado e leu um
trecho, à maneira hesitante de um principante; deu uma risada e jogou-o
longe. — E escute só — continuou, provocadoramente, começando a ler uma
velha balada do mesmo jeito.
Mas o amor-próprio dele não agüentava mais humilhações. Ouvi — e
não posso dizer que o desaprovasse — o ruído sonoro de uma bofetada. A
impertinente fizera o possível por ferir a sensibilidade, embora inculta, do
primo e um violento tapa foi a única maneira que teve de pagar os tormentos
morais por ela infligidos. Depois, juntou os livros e lançou-os ao fogo. Li no
seu rosto um sentimento de angústia por ter de sacrificá-los. Imaginei que, ao
vê-los se consumirem, ele recordava o prazer que já lhe tinham dado e o
triunfo e a satisfação cada vez maior que esperara deles; e adivinhei o estímulo
que ele tinha para os seus estudos secretos. Contentara-se com os trabalhos
do campo e as diversões animalescas, até que Catherine surgira no seu
caminho. Vergonha de ser escarnecido por ela e a esperança da sua aprovação
haviam-no feito dar os primeiros passos; mas, ao invés de evitar o escárnio e
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ganhar a estima, os seus esforços para progredir só tinham produzido o efeito
oposto.
— Sim, essa é a única vantagem que um bruto como você pode obter
dos livros: alimentar o fogo! — gritou Catherine, mordendo o lábio ferido e
com um brilho de indignação nos olhos.
— Acho melhor você calar a boca! — exclamou ele, furioso.
A sua agitação pôs fim à conversa; avançou a passos largos para a porta,
e dei-lhe passagem. Mas, antes que ele tivesse ultrapassado a soleira, o Sr.
Heathcliff, subindo o jardim, deu de encontro com ele e, pondo-lhe a mão no
ombro, perguntou:
— Que aconteceu, rapaz?
— Nada, nada — respondeu ele, e afastou-se, para ruminar sozinho o
seu sofrimento e a sua ira.
Heathcliff ficou a olhá-lo e suspirou.
— Seria estranho se eu me contradissesse — murmurou, sem saber que
eu estava atrás dele. — Mas, quando busco o pai no rosto dele, a cada dia que
passa é a ela que encontro mais. Como diabos é ele tão parecido? Mal posso
olhar para ele.
Pôs os olhos no chão e entrou, a testa franzida. Havia em seu rosto
uma expressão inquieta, aflita, que nunca antes lhe notara; e parecia mais
magro. Ao vê-lo chegar, pela janela, a nora imediatamente fugiu para a
cozinha, de modo que só eu fiquei na sala.
— Apraz-me vê-lo novamente de pé, Sr. Lockwood — disse ele, em
resposta aos meus cumprimentos —, em parte por razões egoístas: é difícil
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suprir a sua falta neste deserto. Mais de uma vez perguntei o que o teria
trazido até aqui.
— Receio que apenas um capricho — respondi —, ou talvez seja um
capricho que me vai agora levar daqui. Partirei para Londres na próxima
semana e devo avisá-lo de que não pretendo alugar a Granja Thrushcross
além dos doze meses do contrato. Acho que não voltarei a morar lá.
— Ah, sim? Está cansado de viver retirado do mundo, não? —
perguntou ele. — Mas, se veio pedir-me para deixar de pagar, a viagem foi em
vão: nunca perdôo dívidas a ninguém.
— Não vim pedir nada — exclamei, muito irritado. — Se quiser, posso
acertar contas já — e puxei da minha carteira.
— Não, não — retrucou ele, friamente. — O senhor deixará o
suficiente, em depósito, para cobrir as suas dívidas, se não voltar: não estou
com tanta pressa. Sente-se e almoce conosco; um convidado sobre quem
estamos certos de que não vai repetir a visita é, geralmente, bem-vindo.
Catherine, traga as coisas para pôr a mesa. Onde é que você está?
Catherine reapareceu, carregando uma bandeja cheia de facas e garfos.
— Pode almoçar com Joseph — murmurou Heathcliff, num aparte —
e ficar na cozinha até o Sr. Lockwood ir embora.
Ela obedeceu logo; talvez não tivesse desejo de desobedecer. Vivendo
entre rústicos e misantropos, provavelmente não sabe apreciar gente superior
quando a vê.
Com o Sr. Heathcliff taciturno, de um lado, e Hareton, absolutamente
mudo, do outro, tive um almoço bem pouco agradável e despedi-me cedo.
Teria saído pelos fundos, a fim de dar uma última olhadela a Catherine e aborrecer o velho Joseph; mas Hareton recebeu ordens para conduzir o meu
cavalo e o meu anfitrião veio pessoalmente acompanhar-me até a porta, de
modo que não pude realizar o meu desejo.
"Que vida horrível se leva naquela casa!", pensei, enquanto cavalgava
pela estrada. Que coisa mais romântica do que uma história de fadas teria sido
para a jovem Sra. Linton Heathcliff se ela e eu tivéssemos iniciado um idílio,
como a sua boa governanta desejava, e emigrado juntos para a agitada
atmosfera da cidade!
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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