domingo, 16 de agosto de 2015

NICK DUNNE CINCO DIAS SUMIDA


Eu me apoiei na porta, olhando para minha irmã. Ainda podia sentir o cheiro de Andie, e
queria aquele momento para mim por um segundo, porque, agora que ela partira, eu podia curtir a
ideia dela. Ela sempre tinha gosto de caramelo e cheiro de lavanda. Xampu de lavanda,
hidratante de lavanda. Lavanda dá sorte, ela me explicara uma vez. Eu precisaria de sorte.
— Quantos anos ela tem? — Go exigia, com as mãos nos quadris.
— É por aí que você quer começar?
— Quantos anos ela tem, Nick?
— Vinte e três.
— Vinte e três. Brilhante.
— Go, não...
— Nick. Você não se dá conta de como está fodido? — perguntou. — Fodido e burro.
Ela fez burro — uma palavra de criança — me ferir como se eu tivesse dez anos outra vez.
— Não é a situação ideal — concedi, a voz baixa.
— Situação ideal! Você é... Você é um traidor, Nick. Quer dizer, o que aconteceu com você?
Você sempre foi um dos caras legais. Ou será que eu fui uma idiota o tempo todo?
— Não — respondi, olhando para o chão, para o mesmo ponto para o qual olhava quando
criança quando minha mãe me sentava no sofá e me dizia que eu era melhor do que aquilo que
acabara de fazer.
— E agora? Você é um homem que trai a esposa, você nunca vai poder desfazer isso —
disse Go. — Meu Deus, nem mesmo papai traía. Você é tão... Quer dizer, sua esposa está
desaparecida, Amy está sabe-se lá onde, e você está aqui passando o tempo com uma pequena...
— Go, estou gostando desse revisionismo histórico em que você é defensora de Amy. Quer
dizer, você nunca gostou de Amy, nem no começo, e desde que tudo isso aconteceu, é como se...
— É como se eu tivesse compaixão por sua esposa desaparecida, é, Nick. Estou preocupada.
É, estou. Lembra-se de antes, quando eu disse que você estava esquisito? Você está... É uma
loucura o modo como está agindo.
Ela andou de um lado para outro da sala, roendo a unha do polegar.
— Se a polícia descobrir isso, eu nem sei — refletiu ela. — Estou assustada para caralho,
Nick. Esta é a primeira vez que estou realmente com medo por você. Não acredito que eles ainda
não descobriram. Eles devem ter pedido seu histórico telefônico.
— Eu usei um celular descartável.
Ela parou ao ouvir isso.
— Isso é ainda pior. Isso é... tipo premeditação.
— Traição premeditada, Go. Sim, sou culpado disso.
Ela sucumbiu por um momento, desabou no sofá, a nova realidade assentando em sua mente.
Na verdade eu estava aliviado por Go saber.
— Quanto tempo? — perguntou ela.
— Pouco mais de um ano — respondi, obrigando-me a erguer os olhos do chão e encará-la.
— Mais de um ano? E você nunca me contou.
— Eu tinha medo de que você me mandasse parar. Que você pensasse mal de mim e então eu
teria de parar. E eu não queria. As coisas com Amy...
— Mais de um ano — disse Go. — E nem desconfiei. Oito mil conversas embriagadas e
você nunca confiou em mim o suficiente para me contar. Não sabia que você podia fazer isso,
esconder totalmente algo de mim.
— É a única coisa.
Go deu de ombros: Como posso acreditar em você agora?
— Você a ama? — indagou, dando um tom brincalhão para mostrar como isso era
improvável.
— Sim. Realmente acho que amo. Amava. Amo.
— Você se dá conta de que se você realmente a namorasse, a visse regularmente, vivesse
com ela, ela iria encontrar alguma falha em você, certo? Que iria encontrar algumas coisas em
você que a deixariam louca. Que exigiria coisas de você que você não iria gostar. Que ficaria
com raiva de você?
— Eu não tenho dez anos, Go. Sei como os relacionamentos funcionam.
Ela deu de ombros novamente. Sabe?
— Precisamos de um advogado — concluiu ela. — Um bom advogado com habilidades de
relações públicas, porque as redes, alguns programas da TV a cabo, estão farejando. Precisamos
garantir que a imprensa não o transforme no marido mulherengo malvado, porque, se isso
acontecer, acho que tudo estará acabado.
— Go, você está soando um pouco dramática.
Eu na verdade concordava com ela, mas não suportava ouvir as palavras de Go em voz alta.
Eu tinha de desmerecê-las.
— Nick, isso é um pouco dramático. Vou dar uns telefonemas.
— Como quiser, se isso faz com que você se sinta melhor.
Go enfiou dois dedos duros em meu esterno.
— Não venha com essa para cima de mim, Lance, porra. “Ah, as garotas exageram demais.”
Isso é babaquice. Você está realmente em apuros, meu amigo. Largue de ser babaca e comece a
me ajudar a consertar isso.
Eu podia sentir sob a camisa o ponto em minha pele ardendo enquanto Go dava as costas e,
graças a Deus, voltava para seu quarto. Eu me sentei no sofá, entorpecido. Então me deitei,
prometendo a mim mesmo que ia levantar.
* * *
Sonhei com Amy: ela engatinhava pelo chão da nossa cozinha, tentando chegar à porta dos
fundos, mas o sangue a cegava, e ela se movia muito lentamente, lentamente demais. Sua bela
cabeça estava estranhamente deformada, amassada do lado direito. Sangue pingava de um cacho
de cabelo comprido, e ela gemia meu nome.
Acordei e soube que era hora de ir para casa. Eu precisava ver o lugar — a cena do crime
—, precisava encará-lo.
* * *
Não havia ninguém do lado de fora no calor. Nosso bairro estava tão vazio e solitário quanto
no dia em que Amy desaparecera. Passei pela minha porta da frente e me obriguei a respirar.
Estranho que uma casa tão nova pudesse parecer assombrada, e não no sentido romântico de um
romance vitoriano, mas simplesmente arruinada de um jeito macabro, horroroso. Uma casa com
história, e tinha apenas três anos. Os peritos haviam percorrido o lugar todo; superfícies estavam
sujas, grudentas e manchadas. Eu me sentei no sofá, e ele tinha o cheiro de alguém, de uma
pessoa real, o odor de um estranho, de uma loção pós-barba forte. Abri as janelas apesar do
calor, deixei entrar um pouco de ar. Bleecker desceu as escadas trotando, e eu o peguei no colo e
o acariciei enquanto ele ronronava. Alguém, um policial, enchera a tigela dele por mim. Um gesto
simpático, após desmontarem minha casa. Eu o coloquei cuidadosamente no primeiro degrau,
depois subi para o quarto, desabotoando a camisa. Deitei atravessado na cama e coloquei o rosto
no travesseiro, a mesma fronha azul-marinho para a qual olhara na manhã de nosso aniversário de
casamento, A Manhã Do.
Meu telefone tocou. Go. Eu atendi.
— Ellen Abbott está fazendo um programa especial ao meio-dia. É sobre Amy. Você. Eu, hã,
não parece bom. Quer que eu passe aí?
— Não, posso assistir sozinho, obrigado.
Ambos aguardamos na linha. Esperando que o outro se desculpasse.
— Certo, nos falamos depois — disse Go.
Ellen Abbott Live era um programa da TV a cabo especializado em mulheres desaparecidas,
assassinadas, estrelado pela permanentemente furiosa Ellen Abbott, uma ex-promotora e
defensora dos direitos das vítimas. O programa começava com Ellen, cabelo armado e brilho nos
lábios, olhando fixamente para a câmera. “Uma história chocante para relatarmos hoje: uma linda
e jovem mulher que foi a inspiração para a série de livros Amy Exemplar. Desaparecida. Casa
revirada. O marido é Lance Nicholas Dunne, um jornalista desempregado que hoje é dono de
um bar que comprou com o dinheiro da esposa. Querem saber quão preocupado ele está? Eis as
fotos tiradas desde que sua esposa, Amy Elliott Dunne, desapareceu em 5 de julho — seu quinto
aniversário de casamento.”
Corta para minha foto na coletiva, o sorriso babaca. Outra de mim acenando e sorrindo como
em um concurso de beleza enquanto saía do carro (eu estava acenando de volta para Marybeth;
estava sorrindo porque sorrio quando aceno).
Depois veio a foto de celular de mim e Shawna Kelly, cozinheira de frito pie. Nossas
bochechas se encostando, dentes branco-pérola brilhando. Depois a verdadeira Shawna apareceu
na tela, bronzeada, esculpida e soturna enquanto Ellen a apresentava aos Estados Unidos. Gotas
de suor brotaram no meu corpo todo.
ELLEN: Então, Lance Nicholas Dunne — você pode descrever para nós o comportamento dele, Shawna? Você o conheceu
quando todos procuravam pela esposa desaparecida dele, e Lance Nicholas Dunne estava... Como?
SHAWNA: Ele estava muito calmo, muito simpático.
ELLEN: Desculpe-me, desculpe-me. Ele foi simpático e calmo? A esposa dele está desaparecida, Shawna. Que tipo de
homem fica simpático e calmo?
A foto grotesca surgiu novamente na tela. De alguma forma, parecíamos ainda mais alegres.
SHAWNA: Ele foi até um pouco sedutor...
Você deveria ter sido mais legal com ela, Nick. Você deveria ter comido a porra da torta.
ELLEN: Sedutor? Enquanto a esposa está Deus sabe onde, Lance Dunne é... Bem, lamento, Shawna, mas essa foto é
simplesmente... Não conheço palavra melhor que revoltante. Não é a aparência de um homem inocente...
O restante do bloco foi basicamente Ellen Abbott, insufladora profissional, obcecada com
minha falta de álibi: “Por que Lance Nicholas Dunne não tem um álibi até o meio-dia? Onde ele
esteve naquela manhã?”, questionou ela, em seu sotaque arrastado de xerife texano. Seu grupo de
convidados concordou que não parecia nada bom.
Telefonei para Go e ela disse:
— Bem, você conseguiu quase uma semana antes que eles voltassem os olhos para você.
Depois xingamos um pouco. Shawna desgraçada puta piranha maluca.
— Faça alguma coisa realmente, realmente útil hoje, proativa — aconselhou Go. — As
pessoas agora estarão prestando atenção.
— Não conseguiria ficar parado mesmo que quisesse.
* * *
Dirigi até St. Louis quase furioso, repassando o bloco do programa na cabeça, respondendo a
todas as perguntas de Ellen, fazendo-a calar a boca. Hoje, Ellen Abbott, sua piranha
desgraçada, rastreei um dos perseguidores de Amy. Desi Collings. Eu o rastreei para
descobrir a verdade. Eu, o marido herói. E se eu tivesse uma música tema grandiosa eu a teria
tocado. Eu, o cara legal da classe trabalhadora, enfrentando o garoto rico e mimado. A imprensa
teria de engolir isto: perseguidores obsessivos são mais intrigantes do que um assassino de
esposa qualquer. Os Elliott, pelo menos, iriam ficar agradecidos. Liguei para Marybeth, mas caiu
na caixa postal. Em frente.
À medida que entrava no bairro dele, tive de mudar minha visão de Desi de rico para
extremamente, doentiamente rico. O cara vivia em uma mansão em Ladue que provavelmente
custava pelo menos cinco milhões de dólares. Tijolos caiados, venezianas laqueadas de preto,
iluminação a gás e hera. Eu tinha me vestido para a ocasião, um terno decente com gravata, mas
me dei conta, enquanto tocava a campainha, de que um terno de quatrocentos dólares naquele
bairro era mais patético do que se eu tivesse ido de jeans. Pude ouvir o barulho de sapatos
sociais vindo dos fundos da casa, e a porta se abriu com um ruído de sucção, como uma
geladeira. Ar frio saiu na minha direção.
Desi tinha a aparência que eu sempre quisera ter: um camarada muito bonito, muito decente.
Algo nos olhos, ou no maxilar. Ele tinha olhos castanho-claros fundos, olhos de ursinho de
pelúcia, e covinhas nas duas bochechas. Se você nos visse juntos, suporia que ele era o cara
bonzinho.
— Ah — disse Desi, analisando meu rosto. — Você é Nick. Nick Dunne. Deus do céu,
lamento muito por Amy. Entre, entre.
Ele me conduziu a uma sala de estar severa, de uma masculinidade imaginada por um
decorador. Muito couro escuro e desconfortável. Apontou para uma poltrona com encosto
particularmente rígido; tentei ficar confortável, como me fora solicitado, mas descobri que a
única posição que a cadeira permitia era a de um estudante repreendido: Preste atenção e sente
direito.
Desi não me perguntou por que eu estava na sala da sua casa. Nem explicou como me
reconhecera imediatamente. Embora eles estivessem se tornando mais comuns, as espiadelas e os
sussurros disfarçados.
— Posso oferecer uma bebida? — perguntou Desi, apertando as duas mãos: primeiro,
negócios.
— Estou bem.
Ele se sentou à minha frente. Vestia tons impecáveis de azul-marinho e creme; até os seus
cadarços pareciam passados a ferro. Mas tudo aquilo lhe caía bem. Não era o almofadinha inútil
que eu estivera esperando. Desi parecia a definição de um cavalheiro: um cara que poderia citar
um grande poeta, pedir um scotch raro e comprar a joia vintage certa para uma mulher. De fato,
ele parecia um homem que sabia inerentemente o que as mulheres queriam — diante dele, eu
sentia meu terno amassar, meus modos se tornarem desajeitados. Eu tinha uma necessidade
crescente de discutir futebol e peidar. Esse tipo de cara sempre mexia comigo.
— Amy. Alguma pista? — perguntou Desi.
Ele parecia alguém conhecido, um ator, talvez.
— Nenhuma boa.
— Ela foi levada... de casa. Correto?
— De nossa casa, sim.
Então soube quem ele era: o sujeito que aparecera sozinho no primeiro dia de buscas, o
sujeito que não parava de olhar para a foto de Amy.
— Você esteve no centro de voluntários, não esteve? No primeiro dia.
— Estive — respondeu Desi, sensato. — Estava prestes a dizer isso. Gostaria de ter podido
conhecê-lo naquele dia, apresentar minhas condolências.
— Fez uma viagem longa.
— Poderia dizer o mesmo a você — falou, sorrindo. — Veja, eu gosto muitíssimo de Amy.
Ao ouvir o que havia acontecido, bem, tinha de fazer algo. Eu simplesmente... É terrível dizer
isso, Nick, mas quando vi no noticiário eu apenas pensei: é claro.
— Claro?
— Claro que alguém iria... querê-la — disse. Ele tinha uma voz grave, uma voz de lareira. —
Você sabe, ela sempre teve aquele jeito. De fazer com que as pessoas a quisessem. Sempre. Você
conhece o velho clichê: os homens a querem e as mulheres querem ser como ela. ComAmy, isso
era verdade.
Desi cruzou as mãos grandes sobre as calças elegantes. Eu não conseguia decidir se ele
estava me sacaneando. Eu disse a mim mesmo para ir com calma. É a regra de todas as
entrevistas potencialmente espinhosas: não parta para o ataque até ser obrigado; primeiro
descubra se eles se enforcarão sozinhos.
— Você teve uma relação muito intensa com Amy, certo? — perguntei.
— Não era apenas a aparência dela — refletiu Desi. Ele se apoiou sobre um joelho, o olhar
distante. — Pensei muito nisso, claro. Primeiro amor. Decididamente pensei nisso. O
autocentrado que há em mim. Filosofia demais. — Ele deu um sorriso tímido. As covinhas
surgiram. — Veja bem, quando Amy gosta de você, quando está interessada em você, os
cuidados dela são calorosos e tranquilizadores, totalmente envolventes. Como um banho de
banheira quente.
Eu ergui as sobrancelhas.
— Acompanhe meu raciocínio — instruiu. — Você se sente bem consigo mesmo. Totalmente
bem, talvez pela primeira vez. E então ela vê suas falhas, se dá conta de que você é apenas outra
pessoa comum com a qual tem de lidar. Você na verdade é Andy, o Capaz, e na vida real, Andy,
o Capaz, nunca estaria com a Amy Exemplar. Então o interesse dela se esvai e você deixa de se
sentir bem, você pode sentir aquela velha frieza novamente, como se estivesse nu no piso do
banheiro, e tudo o que você mais quer é voltar para a banheira.
Eu conhecia aquela sensação — eu estava no piso do banheiro havia uns três anos — e senti
uma onda de desgosto por partilhar essa emoção com aquele homem.
— Estou certo de que você entende o que quero dizer — disse Desi, e sorriu para mim,
piscando.
Que homem estranho, pensei. Quem compara a esposa de outro homem a uma banheira na
qual gostaria de afundar? A esposa desaparecida de outro homem?
Atrás de Desi, uma comprida mesa lateral envernizada com várias fotos em porta-retratos
prateados. No centro havia uma foto grande demais de Desi e Amy no ensino médio, em trajes
brancos de tênis — os dois tão absurdamente estilosos, tão cobertos de dinheiro que poderiam
estar em um filme de Hitchcock. Imaginei Desi, o adolescente Desi, entrando no dormitório de
Amy, jogando as roupas no chão, se acomodando nos lençóis frios, engolindo cápsulas de
remédio. Esperando para ser encontrado. Era uma forma de punição, de fúria, mas não do tipo
que ocorria em minha casa. Eu podia entender por que a polícia não estava muito interessada.
Desi acompanhou meu olhar.
— Ah, bem, você não pode me culpar por isso. — Sorriu. — Quero dizer, você jogaria fora
uma foto tão perfeita?
— De uma garota que não vejo há vinte anos? — retruquei, antes que conseguisse me conter.
Eu me dei conta de que meu tom fora mais agressivo do que deveria.
— Conheço Amy — explicou Desi, irritado. Tomou fôlego. — Eu a conhecia. Conhecia
muito bem. Não há nenhuma pista? Eu tenho de perguntar... O pai dela, ele está... lá?
— Claro que está.
— Eu não suponho que... Ele certamente estava em Nova York quando aconteceu, certo?
— Ele estava em Nova York. Por quê?
Desi deu de ombros. Apenas curioso, nenhuma razão. Ficamos sentados em silêncio por
meio minuto, brincando de quem desviaria os olhos primeiro. Nenhum de nós piscou.
— Na verdade vim aqui para ver o que você poderia me contar, Desi.
Novamente tentei imaginar Desi fugindo com Amy. Será que ele tinha uma casa no lago em
algum lugar por perto? Todos esses tipos tinham. Seria plausível aquele homem refinado e
sofisticado mantendo Amy em alguma sala de jogos elegante no porão; Amy andando de um lado
para outro sobre o carpete, dormindo em um sofá empoeirado com uma cor brilhante exclusiva
dos anos sessenta, amarelo-limão ou coral? Desejei que Boney e Gilpin estivessem ali, que
tivessem testemunhado o tom de voz proprietário de Desi: Conheço Amy.
— Eu? — reagiu Desi, rindo. Ele tinha um riso rico. A frase perfeita para descrever o som.
— Não tenho nada a contar. Como você disse, eu não a conheço.
— Mas você acabou de dizer que conhecia.
— Certamente não a conheço como você.
— Você a perseguia no ensino médio.
— Eu a perseguia? Nick, ela era minha namorada.
— Até deixar de ser — falei. — E você não arredava o pé.
— Ah, eu provavelmente sofri por ela, sim. Mas nada fora do comum.
— Você chama tentar se matar no quarto dela de comum?
Ele balançou a cabeça, apertou os olhos. Abriu a boca para falar, depois baixou os olhos
para as mãos.
— Não estou certo do que você está falando, Nick — disse, finalmente.
— Estou falando de você perseguir minha esposa. No ensino médio. Agora.
— É disso mesmo que se trata? — perguntou, novamente rindo. — Deus do céu, achei que
você estivesse levantando dinheiro para uma recompensa ou algo assim. Que, aliás, fico feliz em
bancar. Como já disse, nunca deixei de desejar o melhor para Amy. Se eu a amo? Não. Não a
conheço mais, não de verdade. Nós às vezes trocamos cartas. Mas é interessante você vir aqui.
Você está confundindo as coisas. Porque tenho de lhe dizer, Nick, na TV, caramba, aqui, agora,
você não parece um marido sofrido e preocupado. Você parece... afetado. A polícia, aliás, já
conversou comigo, graças, creio, a você. Ou aos pais de Amy. Estranho você não saber; achei
que eles contassem tudo ao marido se ele não fosse suspeito.
Meu estômago deu um nó.
— Estou aqui porque queria ver seu rosto quando falasse sobre Amy — admiti. — E tenho de
lhe dizer, isso me preocupa. Você parece um pouco... inquieto.
— Um de nós tem de estar — disse Desi, novamente de modo sensato.
— Querido? — disse uma voz vinda dos fundos da casa, e outro par de sapatos caros estalou
na direção da sala de estar. — Qual era o nome daquele livro...
A mulher era uma visão borrada de Amy. Amy em um espelho embaçado — a cor exata,
traços extremamente semelhantes, mas um quarto de século mais velha, a pele, os traços, tudo um
pouco alargado como um tecido fino. Ela ainda era esplêndida, uma mulher que escolhera
envelhecer com elegância. Suas formas eram uma espécie de origami: cotovelos em ângulos
agudos, clavículas de cabide. Usava um vestido justo azul-celeste e tinha a mesma atração que
Amy: quando estava em um aposento, você ficava virando a cabeça na direção dela. Ela me deu
um sorriso um tanto predatório.
— Olá, sou Jacqueline Collings.
— Mãe, esse é o marido de Amy, Nick — apresentou Desi.
— Amy. — A mulher sorriu de novo. Ela tinha uma voz que parecia vir do fundo de um poço,
grave e estranhamente ressonante. — Temos andado muito interessados nessa história por aqui.
Sim, muito interessados. — Ela se virou friamente para o filho. — Nunca conseguimos deixar de
pensar na esplêndida Amy Elliott, não é mesmo?
— Amy Dunne agora — cortei.
— Claro — concordou Jacqueline. — Lamento muito, Nick, pelo que está passando. — Ela
me encarou por um instante. — Lamento, devo... Eu não imaginava Amy com um rapaz tão...
americano — disse, parecendo não falar comigo nem com Desi. — Deus do céu, ele tem até
furinho no queixo.
— Vim ver se seu filho tinha alguma informação — expliquei. — Sei que ele escreveu muitas
cartas para minha esposa ao longo dos anos.
— Ah, as cartas! — Jacqueline sorriu com raiva. — Uma forma muito interessante de passar
o tempo, não concorda?
— Amy as mostrou a você? — perguntou Desi. — Fico surpreso.
— Não — respondi, virando-me para ele. — Ela sempre as jogava fora, fechadas.
— Todas elas? Sempre? Tem certeza? — perguntou Desi, ainda sorrindo.
— Certa vez eu revirei o lixo para ler uma — disse, voltando-me para Jacqueline. — Só para
saber exatamente o que estava acontecendo.
— Bom para você — concluiu Jacqueline, ronronando para mim. — Não esperaria nada
menos de meu marido.
— Amy e eu sempre trocamos cartas — contou Desi. Ele tinha a cadência da mãe, o tom que
indicava que tudo o que ele dizia era algo que você queria ouvir. — Era uma coisa nossa. Acho
e-mail algo tão... pobre. E ninguém os guarda. Ninguém guarda e-mails, porque são inerentemente
impessoais. Eu me preocupo com a posteridade em geral. Todas as grandes cartas de amor, de
Simone de Beauvoir para Sartre, de Samuel Clemens à sua esposa, Olivia, não sei, sempre penso
no que será perdido...
— Você guardou todas as minhas cartas? — perguntou Jacqueline. Estava de pé junto à
lareira, olhando de cima para nós, um braço comprido e definido na cornija.
— Claro.
Ela se virou para mim dando de ombros, elegante.
— Apenas curiosidade.
Estremeci. Estava prestes a ir na direção da lareira em busca de calor, mas lembrei que era
julho.
— Parece uma devoção bastante estranha de se manter por todos esses anos — falei. — Quer
dizer, ela não lhe escrevia de volta.
Aquilo acendeu os olhos de Desi.
— Ah — foi tudo o que ele disse, o som de alguém avistando fogos de artifício.
— A mim soa estranho, Nick, que você venha aqui e pergunte a Desi sobre a relação dele, ou
falta de, com sua esposa — disse Jacqueline Collings. — Você e Amy não são próximos? Posso
lhe garantir: Desi não teve qualquer contato real com Amy em décadas. Décadas.
— Estou apenas verificando, Jacqueline. Algumas vezes é preciso ver as coisas
pessoalmente.
Jacqueline começou a andar na direção da porta; virou-se e fez um único gesto de cabeça
para me garantir que era hora de partir.
— Muito intrépido de sua parte, Nick. Muito faça-você-mesmo. Você também constrói seus
próprios deques?
Ela riu com a palavra e abriu a porta para mim. Olhei fixamente para seu pescoço e me
perguntei por que ela não estava usando um colar de pérolas. Mulheres daquele tipo sempre têm
grossos colares de pérolas fazendo barulho. Mas eu podia sentir seu cheiro, um cheiro feminino,
vaginal e estranhamente lascivo.
— Foi interessante conhecê-lo, Nick — disse ela. — Esperamos que Amy volte para casa em
segurança. Até que isso aconteça, da próxima vez que quiser entrar em contato com Desi...
Ela colocou um cartão grosso e cremoso em minhas mãos.
— Ligue para nosso advogado, por favor.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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