sábado, 15 de agosto de 2015

NICK DUNNE A NOITE DO


Boney e Gilpin transferiram nossa conversa para a delegacia, que parece um banco indo à
falência. Eles me deixaram sozinho em uma salinha por quarenta minutos, eu me obrigando a ficar
parado. Fingir calma é estar calmo, de certa forma. Eu me larguei sobre a mesa, apoiei o queixo
no braço. Esperei.
— Você quer ligar para os pais de Amy? — perguntara Boney.
— Não quero deixá-los em pânico — respondi. — Se não tivermos notícia dela em uma hora,
ligarei.
Tivemos essa conversa três vezes.
Os policiais finalmente entraram e se sentaram em frente a mim. Lutei contra a vontade de rir
de quanto aquilo parecia um programa de TV. Aquela era a mesma sala que eu tinha visto no
canal a cabo tarde da noite nos últimos dez anos, e os dois policiais — cansados, intensos —
agiam como os atores. Absolutamente falso. Delegacia Epcot. Boney estava inclusive segurando
um copo descartável com café e uma pasta de papelão que mais parecia um elemento cênico.
Cenário policial. Eu me senti tonto, senti por um momento que todos éramos de mentira: Vamos
brincar de Esposa Sumida!
— Tudo bem, Nick? — perguntou Boney.
— Estou bem, por quê?
— Você está sorrindo.
A tontura escorregou para o piso de cerâmica.
— Lamento, é que tudo é tão...
— Eu sei. É estranho demais, eu sei — disse Boney, lançando-me um olhar que era como um
tapinha na mão. Depois pigarreou. — Para começar, queremos ter certeza de que você está à
vontade aqui. Se precisar de alguma coisa, é só dizer. Quanto mais informação puder nos dar
agora, melhor, mas você pode ir embora a qualquer momento, isso também não é um problema.
— Tudo o que você precisar.
— Certo, ótimo, obrigada — disse ela. — Ahn, certo. Quero primeiro eliminar as coisas
chatas. As besteiras. Se sua esposa realmente foi sequestrada, e não sabemos disso ainda, mas se
for isso, queremos pegar o cara, e quando pegarmos o cara queremos pegá-lo em cheio. Sem
saída. Sem manobra.
— Certo.
— Então temos de descartar você rápida e facilmente. Para que o cara não possa vir e dizer
que não descartamos você, entende o que quero dizer?
Eu confirmei com um aceno de cabeça, mecanicamente. Na verdade não entendia o que ela
queria dizer, mas queria parecer o mais cooperativo possível.
— Tudo o que você precisar.
— Não queremos assustá-lo — acrescentou Gilpin. — Só queremos ter todas as informações.
— Por mim, tudo bem.
É sempre o marido, pensei. Todo mundo sabe que é sempre o marido, então por que eles
não podem simplesmente dizer isso? Suspeitamos de você porque você é o marido, e é sempre
o marido. É só assistir a Dateline.
— Certo, ótimo, Nick — disse Boney. — Primeiro, vamos pegar uma amostra da parte
interna da sua bochecha para podermos eliminar todo DNA na casa que não seja o seu. Tudo bem
com isso?
— Claro.
— Também gostaria de amostras de suas mãos para verificar resíduos de pólvora. Mais uma
vez, só para...
— Espere um pouco. Vocês encontraram alguma coisa que os leve a pensar que minha esposa
foi...
— Não, não, não, Nick — interrompeu Gilpin.
Ele levou uma cadeira até a mesa e se sentou nela com o encosto virado para a frente. Fiquei
pensando se policiais realmente faziam aquilo. Ou será que algum ator esperto fez isso e então os
policiais começaram a fazer porque viram os atores interpretando policiais fazerem isso e
pareceu legal?
— É só o protocolo — continuou Gilpin. — Tentamos cobrir tudo: verificar suas mãos, pegar
uma amostra de DNA, e se também pudéssemos examinar seu carro...
— Claro. Como eu disse, tudo o que precisarem.
— Obrigado, Nick. Eu realmente agradeço. Algumas vezes os caras tornam as coisas difíceis
para nós só porque podem.
Eu era exatamente o oposto. Meu pai encheu minha infância de culpa não explicitada; ele era
o tipo de homem que se esgueirava em busca de coisas com as quais se irritar. Isso havia tornado
Go defensiva e nada disposta a aceitar desaforo. E me transformara em um puxa-saco
incontrolável com figuras de autoridade. Mãe, pai, professores: qualquer coisa para tornar seu
trabalho mais fácil, senhor ou senhora. Eu ansiava por um fluxo constante de aprovação. “Você
literalmente mentiria, enganaria e roubaria — caramba, você até mataria — para convencer as
pessoas de que é um bom sujeito”, disse Go certa vez. Estávamos na fila dos knishes no Yonah
Schimmel’s, não muito longe do antigo apartamento de Go em Nova York — lembro-me até
disso, de tão bem que me lembro desse momento —, e perdi o apetite, porque era absolutamente
verdade e nunca havia me dado conta, e mesmo enquanto ela dizia aquilo, eu pensei: Nunca me
esquecerei disso, este é um daqueles momentos que ficarão gravados no meu cérebro para
sempre.
Jogamos conversa fora, os policiais e eu, sobre os fogos do Quatro de Julho e o clima,
enquanto minhas mãos eram examinadas em busca de resíduos de pólvora e o interior de minha
bochecha era raspado com um cotonete. Fingindo que era normal, uma consulta com o dentista.
Quando terminou, Boney colocou outro copo de café na minha frente, apertou meu ombro.
— Lamento por isso. A pior parte do trabalho. Você se importaria de responder a algumas
perguntas agora? Isso nos ajudaria muito.
— Sim, claro, pode mandar.
Ela colocou um estreito gravador digital na mesa em frente a mim.
— Você se importa? Dessa forma não terá de responder às mesmas perguntas o tempo todo...
Ela queria me gravar falando para que eu ficasse preso a uma única história. Eu devia
chamar um advogado, pensei, mas apenas pessoas culpadas precisam de advogados, então
confirmei com um aceno de cabeça: sem problema.
— Então: Amy — começou Boney. — Há quanto tempo vocês moram aqui?
— Há quase dois anos.
— E ela é de Nova York. A cidade.
— Sim.
— Ela trabalha, tem um emprego? — perguntou Gilpin.
— Não. Ela costumava escrever testes de personalidade.
Os detetives trocaram olhares: testes?
— Para revistas adolescentes, revistas femininas — expliquei. — Sabe: “Você é do tipo
ciumento? Faça nosso teste e descubra! Os rapazes acham você muito intimidadora? Faça nosso
teste e descubra!”
— Muito legal, adoro esses testes — disse Boney. — Não sabia que era um emprego de
verdade. Escrever isso. Tipo, uma carreira.
— Bem, não é. Não mais. A internet está cheia de testes gratuitos. Os de Amy eram mais
inteligentes, ela tinha mestrado em psicologia. Tem mestrado em psicologia — corrigi e ri,
incomodado com a minha gafe. — Mas inteligente não ganha de gratuito.
— E aí?
Dei de ombros.
— Aí nos mudamos para cá. Ela meio que fica em casa no momento.
— Ah! Vocês têm filhos, então? — gorjeou Boney, como se tivesse ouvido uma boa notícia.
— Não.
— Ah. Então o que ela faz a maior parte do tempo?
Essa também era a minha pergunta. Amy um dia fora uma mulher que fazia um pouco de tudo,
o tempo todo. Quando fomos morar juntos, ela estudara intensamente culinária francesa, exibindo
rapidíssimas habilidades com facas e um boeuf bourguignon inspirado. No aniversário de trinta
e quatro anos dela, voamos para Barcelona e ela me espantou com longos discursos em espanhol,
aprendido em meses de aulas secretas. Minha esposa tinha um cérebro brilhante e explosivo, uma
curiosidade voraz. Mas suas obsessões tendiam a ser alimentadas pela competição: ela precisava
surpreender os homens e deixar as mulheres com inveja. Claro que Amy sabe preparar pratos da
culinária francesa, falar espanhol fluente, fazer jardinagem, tricotar, correr maratonas,
negociar ações, pilotar um avião e parecer uma modelo enquanto faz isso. Ela precisava ser
Amy Exemplar o tempo todo. Aqui no Missouri as mulheres fazem compras na Target, cozinham
refeições esforçadas e reconfortantes, riem do pouco que se lembram do espanhol aprendido no
ensino médio. A competição não lhes interessa. As incansáveis conquistas de Amy são recebidas
com aceitação serena e talvez um pouco de pena. Era o pior desfecho possível para minha esposa
competitiva: uma cidade de derrotados satisfeitos.
— Ela tem muitos hobbies — expliquei.
— Alguma coisa o preocupa? — perguntou Boney, parecendo preocupada. — Você não está
pensando em drogas ou álcool? Não estou falando mal de sua esposa. Muitas donas de casa, mais
do que você imagina, passam o dia assim. Os dias se tornam longos quando a pessoa está
sozinha. E se o vício no álcool passa para as drogas... e não estou nem falando em heroína, mas
mesmo analgésicos com receita... bem, há uns tipos realmente medonhos vendendo isso aqui no
momento.
— O comércio de drogas ficou sério aqui — completou Gilpin. — Tivemos muitos cortes na
polícia, um quinto da força, e já estávamos no limite. Quer dizer, a situação está bastante ruim,
estamos soterrados de trabalho.
— Uma dona de casa, boa pessoa, teve um dente arrancado no mês passado por causa de
oxicodona — acrescentou Boney.
— Não, Amy pode tomar uma taça de vinho ou algo assim, mas não drogas.
Boney me encarou; aquela claramente não era a resposta que ela queria.
— Ela tem amigos aqui? Gostaríamos de ligar para alguns, só para garantir. Não se ofenda,
mas algumas vezes o cônjuge é o último a saber quando há drogas envolvidas. As pessoas ficam
envergonhadas, especialmente mulheres.
Amigos. Em Nova York, Amy fazia e desfazia amizades semanalmente; eram como seus
projetos. Ela ficava intensamente entusiasmada com eles: Paula, que lhe deu aulas de canto e
tinha uma puta voz (Amy estudara em um colégio interno em Massachusetts; eu adorava os
poucos momentos em que ela se revelava totalmente Nova Inglaterra: uma puta voz); Jessie, do
curso de moda. Mas então eu perguntava sobre Jessie ou Paula um mês depois e Amy me olhava
como se eu estivesse inventando coisas.
E havia também os homens que estavam sempre atrás de Amy, ansiosos para fazer todas as
coisas de marido que o marido dela não fazia. Consertar a perna de uma cadeira, encontrar seu
chá asiático importado preferido. Homens que ela jurava serem apenas amigos, bons amigos.
Amy os mantinha exatamente a um braço de distância — suficientemente longe para que eu não
ficasse aborrecido demais, perto o bastante para que pudesse chamar com o dedo e eles
satisfizessem seus desejos.
No Missouri... Deus do céu, eu realmente não sabia. Isso só me ocorreu naquele momento.
Você é realmente um babaca , pensei. Estávamos ali havia dois anos, e depois da onda inicial de
apresentações, aqueles primeiros meses maníacos, Amy não tinha ninguém que encontrasse
regularmente. Ela tinha minha mãe, que estava morta, e eu — e nossa principal forma de conversa
era ataque e contestação. Quando fez um ano que estávamos ali eu perguntei em um falso
galanteio: “E o que está achando de North Carthage, Sra. Dunne?” “Nova Carthage, você quer
dizer?”, ela retrucara. Eu me recusei a pedir a referência a ela, mas sabia que era um insulto.
— Ela tem alguns bons amigos, mas quase todos estão na Costa Leste.
— Os pais dela?
— Moram em Nova York. A cidade.
— E você ainda não ligou para nenhuma dessas pessoas? — perguntou Boney, um sorriso
confuso no rosto.
— Estive fazendo todas as outras coisas que vocês me pediram para fazer. Não tive
oportunidade.
Eu assinara uma permissão para rastrearem cartões de crédito e saques, e rastrearem o
celular de Amy, dera o número do celular de Go e o nome de Sue, a viúva d’O Bar, que
presumivelmente poderia confirmar a hora em que eu chegara.
— O bebê da família. — Ela balançou a cabeça. — Você realmente me lembra meu irmão
mais novo. — Pausa. — Isso é um elogio, juro.
— Ela é louca por ele — explicou Gilpin, escrevendo em um bloco. — Certo, então você
saiu de casa por volta de sete e meia da manhã, e apareceu n’O Bar por volta do meio-dia, e
nesse ínterim você esteve na praia.
Há uma pequena praia a cerca de quinze quilômetros ao norte de nossa casa, um encontro não
muito agradável de areia, lama e cacos de garrafas de cerveja. Tonéis de lixo transbordando de
copos descartáveis e fraldas sujas. Mas há uma mesa de piquenique onde o vento bate e que
recebe um belo sol, e se você olhar diretamente para o rio consegue ignorar as outras coisas.
— Às vezes eu levo meu café e o jornal e fico só sentado ali. A gente tem que aproveitar o
verão.
Não, eu não tinha conversado com ninguém na praia. Não, ninguém me viu.
— Fica vazia durante a semana — concedeu Gilpin.
Se a polícia falasse com alguém que me conhecesse, descobriria logo que eu raramente ia à
praia e que eu nunca “às vezes levava meu café apenas para aproveitar a manhã”. Tenho pele
branca de irlandês e impaciência para a inércia: não sou um cara de praia. Eu disse isso à polícia
porque fora ideia de Amy, que eu fosse me sentar num lugar onde poderia ficar sozinho, observar
o rio que eu adorava e pensar em nossa vida juntos. Ela me dissera isso naquela manhã, após
termos comido os crepes. Inclinara-se sobre a mesa e dissera: “Sei que estamos passando por um
momento difícil. Eu ainda o amo muito, Nick, e sei que tenho muitas coisas nas quais preciso
melhorar. Quero ser uma boa esposa para você, e quero que você seja meu marido, e que seja
feliz. Mas você precisa decidir o que quer.”
Ela claramente havia ensaiado o discurso; sorria, orgulhosa, ao falar. E mesmo quando minha
esposa me oferecia essa gentileza, eu pensava: Claro que ela tem de encenar isso. Ela quer a
imagem de mim e do rio rápido e selvagem, meus cabelos soprando à brisa enquanto eu olho
para o horizonte e reflito sobre nossa vida juntos. Eu não posso simplesmente ir ao Dunkin’
Donuts.
Você precisa decidir o que quer. Infelizmente para Amy, eu já decidira.
Boney tirou os olhos brilhantes de suas anotações.
— Pode me dizer qual é o tipo sanguíneo de sua esposa? — perguntou.
— Hum, não, eu não sei.
— Você não sabe o tipo sanguíneo da sua esposa?
— Talvez O? — chutei.
Boney franziu a testa, depois fez um som como de ioga.
— Ok, Nick, eis as coisas que nós estamos fazendo para ajudar.
Ela enumerou: o celular de Amy estava sendo monitorado; sua foto, distribuída; seus cartões
de crédito, rastreados. Criminosos sexuais conhecidos na região estavam sendo interrogados.
Nossa vizinhança esparsa estava sendo vasculhada. O telefone de nossa casa estava grampeado
para o caso de algum pedido de resgate.
Eu não sabia ao certo o que dizer. Procurei as falas na memória: o que o marido diz a essa
altura do filme? Depende se ele é culpado ou inocente.
— Não posso dizer que isso me tranquiliza. Vocês... Isso é um sequestro, um caso de pessoa
desaparecida, o que exatamente está acontecendo?
Eu conhecia as estatísticas, conhecia-as do mesmo programa de TV no qual eu estava
estrelando: se as primeiras quarenta e oito horas de um caso não dessem em nada, ele
provavelmente ficaria sem solução. As primeiras quarenta e oito horas eram cruciais.
— Quer dizer, minha esposa sumiu. Minha esposa sumiu!
Percebi que era a primeira vez que eu dizia isso da forma que tinha de ser dito: em pânico e
com raiva. Meu pai era um homem de infinitas variedades de amargura, raiva, desgosto. Na
minha luta de toda uma vida para evitar ser como ele, eu desenvolvera uma incapacidade de
demonstrar qualquer emoção negativa. Era outra coisa que fazia com que eu parecesse um cretino
— meu estômago podia estar cheio de enguias oleosas e você não saberia nada pela minha
expressão, e ainda menos por minhas palavras. Era um problema constante: controle demais ou
nenhum controle.
— Nick, estamos levando isso extremamente a sério — disse Boney. — O pessoal do
laboratório está na sua casa enquanto conversamos, e isso nos dará mais informações para
prosseguir. Neste momento, quanto mais você puder nos contar sobre sua esposa, melhor. Como
ela é?
As habituais frases de marido vieram à minha cabeça. Ela é gentil, ela é ótima, ela é legal,
ela me apoia.
— Como ela é em que sentido? — perguntei.
— Dê uma ideia de sua personalidade — retrucou Boney. — Tipo: o que você comprou para
ela de aniversário de casamento? Joias?
— Eu ainda não tinha comprado nada — respondi. — Ia fazer isso esta tarde.
Esperei que ela risse e falasse “o bebê da família” novamente, mas não fez isso.
— Certo. Então, bem, fale sobre ela. É extrovertida? É... Não sei como dizer isso... Novaiorquina?
Do tipo que poderia parecer rude a alguns? Do tipo que poderia irritar algumas
pessoas?
— Não sei. Ela não é o tipo de pessoa que faz amigos para a vida toda, mas não é... agressiva
o suficiente para que alguém queira... machucá-la.
Essa era minha décima primeira mentira. A Amy de hoje era agressiva o suficiente para você
às vezes querer machucá-la. Falo especificamente da Amy de hoje, que só é remotamente
parecida com a mulher por quem me apaixonei. Havia sido uma medonha transformação de conto
de fadas às avessas. Em poucos anos, a antiga Amy, a garota da grande gargalhada e do jeito
fácil, livrou-se dela mesma, uma pilha de pele e alma no chão, e dali saiu essa nova Amy, tensa e
amarga. Minha esposa não era mais minha esposa, mas um nó de arame farpado me intimando a
desfazê-lo, e eu não estava à altura do trabalho, com meus dedos grossos insensíveis e nervosos.
Dedos caipiras. Dedos não treinados para o intrincado trabalho de resolver Amy. Quando eu
erguesse meus cotos ensanguentados, ela suspiraria e pegaria o secreto bloco de anotações
mentais em que registrava todos os meus defeitos, para sempre anotando desapontamentos,
fragilidades, falhas. Minha antiga Amy, caramba, ela era divertida. Era engraçada. Ela me fazia
rir. Eu tinha me esquecido disso. E ela ria. Do fundo da garganta, bem de trás daquele pequeno
vazio em forma de dedo que é de onde vem o melhor riso. Ela soltava seus ressentimentos como
comida de passarinho. Estão ali, e então desapareceram.
Ela não era a coisa na qual se transformou, a coisa que eu mais temia: uma mulher com raiva.
Eu não era bom com mulheres com raiva. Elas despertavam em mim algo repulsivo.
— Ela é mandona? — perguntou Gilpin. — Controladora?
Pensei na agenda de Amy, aquela que avançava três anos no futuro, e se você olhasse um ano
à frente encontraria realmente consultas marcadas com dermatologista, dentista, veterinário.
— Ela é uma planejadora, sabe, não improvisa nada. Gosta de fazer listas e ir riscando as
coisas. Resolver coisas. É por isso que essa história não faz sentido...
— Isso é de enlouquecer — disse Boney, solidária. — Quando o outro não é assim. Você
parece uma personalidade tipo B.
— Acho que sou um pouco mais relaxado — disse. Então acrescentei a parte que esperavam
que eu acrescentasse: — Nós nos completamos.
Olhei para o relógio na parede e Boney tocou minha mão.
— Ei, por que não liga para os pais de Amy? Tenho certeza de que ficariam agradecidos.
Passava de meia-noite. Os pais dela iam dormir às nove horas; eles se vangloriavam
estranhamente desse horário precoce. Estariam dormindo profundamente naquele momento; logo,
aquele seria um telefonema-urgente-no-meio-da-noite. Os celulares sempre eram desligados às
oito e quarenta e cinco, de modo que Rand Elliott teria de caminhar de sua cama até o final do
corredor para pegar o velho e pesado telefone; ele estaria atrapalhado com os óculos, com o
abajur. Estaria dizendo a si mesmo todos os motivos para não se preocupar com um telefonema
no meio da noite, todos os motivos inofensivos pelos quais o telefone podia estar tocando.
Disquei o número duas vezes e desliguei antes de ouvir o toque. Quando ouvi, foi Marybeth,
não Rand, quem atendeu, sua voz grave zumbindo em meu ouvido. Só consegui chegar até
“Marybeth, aqui é o Nick”, antes de perder o controle.
— O que houve, Nick?
Respirei fundo.
— É a Amy? Fale.
— Eu, ahn, desculpe-me por ter ligado...
— Fale, caramba!
— Não estamos c-conseguindo encontrar Amy — gaguejei.
— Vocês não estão conseguindo encontrar Amy?
— Eu não sei...
— Amy está desaparecida?
— Não temos certeza, ainda estamos...
— Desde quando?
— Não sabemos bem. Eu saí de manhã, um pouco depois das sete...
— E esperou até agora para nos telefonar?
— Desculpe-me, eu não queria...
— Meu Deus do céu. Nós jogamos tênis esta noite. Tênis, e poderíamos ter... Meu Deus. A
polícia está envolvida? Você avisou a polícia?
— Estou na delegacia neste momento.
— Passe o telefone para quem está no comando, Nick. Por favor.
Como uma criança, eu fui buscar Gilpin. Minha sogra quer falar com você.
Telefonar para os Elliott tornava aquilo oficial. A emergência — Amy sumiu — estava se
espalhando para o mundo exterior.
* * *
Eu estava voltando para a sala de interrogatório quando ouvi a voz do meu pai. Às vezes, em
momentos particularmente vergonhosos, eu ouvia a voz dele em minha cabeça. Mas aquela era a
voz do meu pai ali. Suas palavras emergiam em bolhas molhadas como algo saído de um pântano
fedorento. Piranha, piranha, piranha. Meu pai, ensandecido, passara a lançar a palavra contra
qualquer mulher que o aborrecesse mesmo que vagamente: piranha, piranha, piranha. Olhei
para dentro de uma sala de reuniões e lá estava ele, sentado em um banco encostado na parede.
Ele um dia fora um homem bonito, intenso e com um furinho no queixo. Desconcertantemente
lindo, como minha tia o descrevera. Agora ele estava murmurando para o chão, seus cabelos
louros embaraçados, calças enlameadas e braços arranhados, como se tivesse aberto caminho
por um espinheiro. Um fio de saliva escorria brilhante por seu queixo como a trilha de uma
lesma, e ele contraía e relaxava músculos dos braços que ainda não haviam degenerado. Uma
policial tensa estava junto a ele, os lábios crispados de raiva, tentando ignorá-lo: piranha,
piranha, piranha, eu disse, piranha.
— O que está acontecendo? — perguntei. — Este é meu pai.
— Recebeu nosso telefonema?
— Que telefonema?
— Para vir buscar seu pai — disse ela, articulando exageradamente as palavras, como se eu
fosse uma criança burra de dez anos.
— Eu... Minha esposa está desaparecida. Passei a maior parte da noite aqui.
Ela ficou olhando para mim sem nenhuma empatia. Eu podia ver que ela estava decidindo se
devia sacrificar sua posição de poder e pedir desculpas, fazer perguntas. Então meu pai
recomeçou, piranha, piranha, piranha, e ela escolheu manter sua posição de poder.
— Senhor, a Comfort Hill tentou entrar em contato o dia inteiro. Seu pai escapou por uma
saída de incêndio hoje de manhã cedo. Está com alguns arranhões e machucados, como pode ver,
mas nenhum ferimento sério. Nós o pegamos há algumas horas descendo a River Road,
desorientado. Estávamos tentando falar com o senhor.
— Eu estava bem aqui — expliquei. — Na maldita porta ao lado, como ninguém juntou as
duas coisas?
Piranha, piranha, piranha, disse meu pai.
— Senhor, não use esse tom de voz comigo.
Piranha, piranha, piranha.
* * *
Boney ordenou que um policial — do sexo masculino — levasse meu pai de volta ao asilo
para que eu pudesse terminar ali. Ficamos de pé na escada do lado de fora da delegacia e
assistimos enquanto ele era colocado no carro, ainda murmurando. Em nenhum momento ele
registrou minha presença. Quando partiram, ele nem sequer olhou para trás.
— Vocês não são próximos? — perguntou ela.
— Nós somos a definição de não próximos.
* * *
A polícia terminou com suas perguntas e me colocou em uma viatura por volta das duas horas
da manhã com a recomendação de ter uma boa noite de sono e retornar às onze horas para me
preparar para uma entrevista coletiva ao meio-dia.
Eu não perguntei se podia ir para casa. Fiz com que me levassem até a casa de Go, porque
sabia que ela ficaria acordada e tomaria uma bebida comigo, faria um sanduíche para mim.
Patético, mas era tudo o que eu queria naquele momento: uma mulher que me preparasse um
sanduíche e não me fizesse perguntas.
* * *
— Você não quer ir procurar por ela? — sugeriu Go enquanto eu comia. — Podemos dar uma
volta.
— Isso me parece inútil — respondi. — Onde eu iria procurar?
— Nick, isso é sério para caralho.
— Eu sei, Go.
— Então aja de acordo, está bem, Lance? Nada de nhe-nhe-nhem, cacete.
Era um barulho pastoso, o barulho que ela sempre fazia para transmitir minha indecisão,
acompanhado de um revirar de olhos espantado e do uso raríssimo de meu prenome legal.
Ninguém com meu rosto precisa ser chamado de Lance. Ela me deu um copo com scotch.
— Tome isso, mas só isso. Você não vai querer estar de ressaca amanhã. Onde ela pode
estar, porra? Meu Deus, estou com o estômago embrulhado.
Ela serviu-se de um copo, deu um grande gole e depois tentou bebericar andando de um lado
para outro na cozinha.
— Você não está preocupado, Nick? Que algum cara, tipo, tenha visto Amy na rua e
simplesmente decidido apanhá-la? Que a tenha acertado na cabeça e...
Eu me irritei.
— Por que você disse a tenha acertado na cabeça, que porra é essa?
— Desculpe, não queria imaginar a cena, eu só... Não sei, eu fico pensando... em algum
maluco — disse, derramando mais scotch no seu copo.
— Por falar em maluco, papai fugiu de novo hoje, eles o encontraram vagando pela River
Road. Voltou para a Comfort agora.
Ela deu de ombros: certo. Era a terceira vez em seis meses que nosso pai fugia. Go estava
acendendo um cigarro, ainda pensando em Amy.
— Quer dizer, não há ninguém com quem possamos falar? — perguntou ela. — Algo que
possamos fazer?
— Meu Deus, Go! Você precisa mesmo me fazer sentir mais impotente do que estou me
sentindo agora? — interrompi. — Não tenho ideia do que deveria estar fazendo. Não existe uma
aula básica para “Quando sua esposa desaparece”. A polícia disse que eu podia ir embora. Eu
fui. Só estou fazendo o que eles mandam.
— Claro que está — murmurou Go, que tinha uma antiga missão fracassada de me
transformar em um rebelde.
Não ia funcionar. Eu era o garoto do ensino médio que voltava para casa na hora certa. Eu
era o jornalista que cumpria prazos, mesmo os falsos. Eu respeito regras, porque, se você segue
as regras, as coisas funcionam bem, normalmente.
— Porra, Go, eu vou estar na delegacia de novo em algumas horas, ok? Será que você pode
ser legal comigo por um segundo, por favor? Estou morrendo de medo.
Fizemos uma competição de encarar o outro sem piscar durante cinco segundos, depois Go
encheu meu copo mais uma vez em um pedido de desculpas. Ela se sentou ao meu lado e colocou
a mão no meu ombro.
— Pobre Amy — disse.
Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário

Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

Total de visualizações

Seguidores

Livros populares

Search