sábado, 15 de agosto de 2015

NICK DUNNE O DIA DO


Escancarei a porta do meu bar, entrei na escuridão e respirei fundo pela primeira vez no dia,
sentindo o cheiro de cigarros e cerveja, o picante de um bourbon derramado, o toque de pipoca
velha. Só havia uma cliente no bar, sentada sozinha no canto mais distante: uma mulher mais
velha chamada Sue que ia toda quinta-feira com o marido, até ele morrer, três meses antes. Agora
ela ia sozinha toda quinta, nunca muito disposta a conversar, apenas ficava sentada com uma
cerveja e palavras cruzadas, preservando um ritual.
Minha irmã estava trabalhando atrás do balcão, os cabelos puxados para trás com presilhas
de nerd, os braços rosados de mergulhar e tirar os copos de cerveja da água quente com sabão.
Go é esguia e tem um rosto estranho, o que não significa que ela é feia. Seus traços apenas
precisam de um tempo para fazer sentido: o maxilar largo, o belo nariz estreito, os globos
oculares escuros. Se isso fosse um filme de época, um homem empurraria seu chapéu de feltro
para trás, assoviaria ao vê-la e diria “Uau, que broto!”. O rosto de uma rainha da comédia
maluca dos anos trinta nem sempre dá certo na nossa época de princesas élficas, mas pelos anos
que vivemos juntos sei que os homens gostam da minha irmã, e muito, o que me coloca naquela
estranha esfera fraternal, na qual fico ao mesmo tempo orgulhoso e desconfiado.
— Ainda fabricam mortadela temperada? — disse ela à guisa de cumprimento, sem erguer os
olhos, apenas sabendo que era eu, e senti o alívio que costumava sentir quando a via: as coisas
podiam não estar ótimas, mas ficariam bem.
Minha gêmea, Go. Eu já disse essa frase tantas vezes que ela se tornou uma espécie de mantra
tranquilizador, em vez de palavras de verdade: minhagêmeago. Nós nascemos nos anos setenta,
quando gêmeos eram raros, um pouco mágicos: primos do unicórnio, irmãos dos elfos. Nós até
temos um pouco da telepatia dos gêmeos. Go é na verdade a única pessoa em todo o mundo com
quem sou totalmente eu mesmo. Não sinto a necessidade de explicar meus atos para ela. Não
esclareço, não duvido, não me preocupo. Não conto tudo a ela, não mais, mas conto mais a ela do
que a qualquer outra pessoa, de longe. Conto a ela tudo o que posso. Passamos nove meses com
as costas coladas um no outro, cobrindo um ao outro. Tornou-se um hábito para a vida toda.
Nunca me importou que ela fosse menina, algo estranho para um garoto profundamente
envergonhado. O que posso dizer? Ela sempre foi simplesmente legal.
— Mortadela temperada é um tipo de frio, certo? Acho que fabricam, sim.
— Deveríamos comprar — disse ela, erguendo uma sobrancelha para mim. — Estou
intrigada.
Sem perguntar, ela serviu Pabst Blue Ribbon em uma caneca cuja limpeza era questionável.
Quando me flagrou olhando para a borda suja, levou o copo à boca e lambeu a sujeira, deixando
uma mancha de saliva. Colocou a caneca bem na minha frente.
— Melhor assim, meu príncipe?
Go acredita profundamente que eu recebi o melhor de tudo o que nossos pais tinham para dar,
que eu era o garoto que eles haviam planejado ter, o filho único que poderiam sustentar, e que ela
se esgueirara para dentro deste mundo agarrando meu tornozelo, uma estranha indesejada. (Para
meu pai, uma estranha particularmente indesejada.) Ela acredita que foi deixada por conta
própria durante toda a infância, uma criatura digna de pena com coisas usadas e aleatórias,
autorizações de viagem esquecidas, orçamento apertado e desapontamento geral. Essa ideia
podia ser até certo ponto verdadeira; mal consigo admitir isso.
— Sim, minha pequena serva esquálida — disse, e agitei as mãos em dispensa régia.
Eu me curvei sobre a cerveja. Precisava me sentar e tomar uma ou três cervejas. Meus nervos
ainda estavam agitados da manhã.
— O que há com você? Está parecendo nervoso — perguntou.
Ela jogou um pouco de espuma em mim, mais água que sabão. O ar-condicionado entrou em
ação, agitando o cabelo no topo da nossa cabeça. Passávamos mais tempo n’O Bar do que era
necessário. Ele tinha se tornado o clube da casa na árvore que nunca tivemos. Certa noite de
bebedeira, no ano passado, abrimos as caixas guardadas no porão de nossa mãe, em um momento
em que ela ainda estava viva, mas já no fim, quando estávamos precisando de consolo, e
revisitamos os brinquedos e jogos com muitos ohs e ahs entre goles de cerveja em lata. Natal em
agosto. Depois que mamãe morreu, Go se mudou para nossa antiga casa, e lentamente
transferimos nossos brinquedos, um de cada vez, para O Bar. Uma boneca Moranguinho, já sem
perfume, aparece em um banco certo dia (meu presente para Go). Um pequeno El Camino da Hot
Wheels sem uma roda surge em uma prateleira no canto (de Go para mim).
Estávamos pensando em criar uma noite de jogos de tabuleiro, embora a maioria dos nossos
clientes fosse velha demais para ter saudade de nossos Hipopótamos Comilões, nosso Jogo da
Vida com seus pequenos carros de plástico a serem preenchidos com pequenas esposas de
plástico e pequenos bebês de plástico. Não consigo me lembrar de como se vencia. (Pensamento
“profundo” do dia.)
Go encheu novamente meu copo, e o seu próprio. Sua pálpebra esquerda estava ligeiramente
caída. Era exatamente meio-dia, 12:00, e me perguntei há quanto tempo ela estaria bebendo. Ela
teve uma década difícil. Minha irmã curiosa, com cérebro poderosíssimo e espírito de rodeio,
abandonou a faculdade e se mudou para Manhattan no final dos anos noventa. Ela foi um dos
fenômenos das ponto.com — ganhou uma dinheirama durante dois anos, depois se deu mal
quando a bolha da internet estourou em 2000. Go não se abalou. Ela estava mais perto dos vinte
que dos trinta; estava bem. No segundo ato ela se formou e entrou para o mundo de ternos cinza
dos bancos de investimento. Tinha um cargo intermediário, nada ostensivo, nada digno de culpa,
mas perdeu o emprego — rápido — com o colapso financeiro de 2008. Eu nem sabia que ela
havia deixado Nova York até que me telefonou da casa da mamãe: eu desisto. Supliquei, bajuleia
para que ela voltasse, sem conseguir nada além de um silêncio irritado do outro lado da linha.
Depois de desligar, fiz uma peregrinação ansiosa ao apartamento dela na Bowery e vi Gary, seu
adorado fícus, morto e amarelo na escada de incêndio, e soube que ela nunca voltaria.
O Bar parecia animá-la. Ela cuidava das finanças, servia as cervejas. Roubava dinheiro do
pote de gorjetas com certa regularidade, mas também trabalhava mais do que eu. Nunca
falávamos sobre nossas antigas vidas. Éramos os Dunne, estávamos falidos e estranhamente
contentes com isso.
— E então? — perguntou Go, seu modo habitual de iniciar uma conversa.
— Hum.
— Hum o quê? É ruim? Você está com uma cara ruim.
Com um dar de ombros, confirmei; ela analisou meu rosto.
— Amy? — perguntou.
Era uma pergunta fácil. Dei de ombros de novo, dessa vez uma confirmação, um dar de
ombros que dizia fazer o quê?
Go me mostrou sua expressão divertida, os dois cotovelos no balcão, mãos sustentando o
queixo, preparando-se para dissecar incisivamente meu casamento. Go, uma junta de
especialistas composta de uma só pessoa.
— O que há com ela?
— Dia ruim. É só um dia ruim.
— Não deixe que ela o preocupe — disse Go, acendendo um cigarro. Ela fumava exatamente
um por dia. — As mulheres são malucas.
Go não se considerava parte da categoria genérica mulheres, palavra que usava de forma
pejorativa.
Soprei a fumaça de Go de volta para a dona.
— Hoje é nosso aniversário de casamento. Cinco anos.
— Uau.
Minha irmã inclinou a cabeça para trás. Ela havia sido madrinha, toda de violeta — “a
gloriosa dame de cabelos negros vestida de ametista”, como a mãe de Amy a apelidara —, mas
aniversários de casamento não eram algo de que ela se lembrasse.
— Deus do céu. Cacete. Cara. Chegou rápido — exclamou ela, soprando mais fumaça para
cima de mim, um jogo preguiçoso de pegue o câncer. — Ela vai fazer uma de suas, ahn, como
vocês chamam isso, não é busca do tesouro...
— Caça ao tesouro — corrigi.
Minha esposa adorava jogos, principalmente jogos mentais, mas também jogos reais para
diversão, e para nosso aniversário de casamento ela sempre montava uma elaborada caça ao
tesouro, com cada pista levando ao esconderijo da pista seguinte até que eu chegasse ao fim, e ao
meu presente. Era o que o pai dela sempre fizera com a mãe no aniversário de casamento deles, e
não pense que não vejo a inversão de papéis aqui, que eu não saco a dica. Mas eu não cresci na
família de Amy, cresci na minha, e o último presente que eu lembro de meu pai ter dado à minha
mãe foi um ferro de passar, colocado no balcão da cozinha, sem papel de embrulho.
— Será que fazemos uma aposta sobre quão furiosa ela vai ficar com você este ano? —
perguntou Go, sorrindo por cima da borda de seu copo de cerveja.
O problema com as caças ao tesouro de Amy: eu nunca entendo as pistas. No nosso primeiro
aniversário de casamento, em Nova York, eu descobri duas de sete. Foi meu melhor ano. Dica
inicial:
Este lugar é uma espécie de buraco escavado,
Mas tivemos um ótimo beijo lá certa terça-feira no outono passado.
Já esteve em um concurso de soletrar quando criança? Sabe aquele segundo, branco como
neve, depois do anúncio da palavra, quando você revira seu cérebro para descobrir se sabe
soletrá-la? Foi assim, aquele pânico vazio.
— Um bar irlandês em um lugar não tão irlandês — provocou Amy.
Eu mordi o lábio, comecei a dar de ombros, examinando nossa sala como se a resposta
pudesse aparecer. Ela me deu outro minuto muito longo.
— Estávamos perdidos na chuva — disse em uma voz que se encaminhava para a irritação.
Eu terminei de dar de ombros.
— McMann’s, Nick. Lembra quando nos perdemos na chuva em Chinatown tentando
encontrar aquele restaurante de dim sum que devia ser perto da estátua de Confúcio, mas havia
duas estátuas de Confúcio e acabamos naquele bar irlandês desconhecido, encharcados, viramos
alguns uísques, você me agarrou e me beijou, e foi...
— Sei! Você deveria ter dado uma pista com Confúcio, eu teria sacado.
— O importante não era a estátua. O importante era o lugar. O momento. Achei que tinha sido
especial.
Ela disse essas últimas palavras com o ritmo infantil que algum dia eu já achei encantador.
— Foi especial — disse, puxando-a para mim e lhe dando um beijo. — Esse beijo foi minha
reencenação especial de aniversário de casamento. Vamos lá, fazer isso de novo no McMann’s.
No McMann’s, o bartender, um grande filhote de urso barbado, nos viu entrar e sorriu.
Serviu dois uísques e entregou a pista seguinte.
Quando estou desanimada e deprimida
Só há um lugar que melhora minha vida.
Esse lugar acabou sendo a estátua de Alice no País das Maravilhas no Central Park, que,
Amy me contara — ela me contara, ela sabia que tinha me contado muitas vezes —, a animava
quando criança. Eu não me lembro de nenhuma dessas conversas. Estou sendo honesto,
simplesmente não me lembro. Tenho um ligeiro déficit de atenção, e sempre achei minha esposa
um tanto ofuscante, no sentido mais puro da palavra: perder a visão clara, especialmente ao olhar
para uma luz brilhante. Era suficiente estar perto dela e ouvi-la falar, nem sempre importava o
que ela estava dizendo. Deveria, mas não importava.
Quando chegamos ao final do dia, à hora de trocar nossos presentes de verdade — os
tradicionais presentes de papel para o primeiro ano de casamento —, Amy não estava mais
falando comigo.
— Eu amo você, Amy. Você sabe disso — falei, seguindo-a entre os bandos de turistas
assombrados parados no meio da calçada, distraídos e de boca aberta. Amy deslizava pelas
multidões do Central Park, manobrando entre compenetrados corredores e patinadores, pais
ajoelhados e crianças pequenas correndo como bêbadas, sempre logo à minha frente, lábios
apertados, indo apressada para lugar nenhum. Eu tentando alcançá-la, agarrar seu braço. Ela
finalmente parou, encarando-me impassível enquanto eu me explicava, um dedo mental contendo
minha exasperação.
— Amy, não entendo por que tenho de provar meu amor por você me lembrando exatamente
das mesmas coisas que você, exatamente da mesma forma que você. Isso não significa que não
amo nossa vida juntos.
Um palhaço próximo encheu um balão em forma de animal, um homem comprou uma rosa,
uma criança lambeu uma casquinha de sorvete e nasceu uma verdadeira tradição, uma que eu
nunca esqueceria: Amy sempre se empenhando exageradamente, eu nunca, jamais, valendo o
esforço. Feliz aniversário de casamento, cretino.
— Aposto que... cinco anos? Ela vai ficar realmente puta — continuou Go. — Então espero
que você tenha comprado um presente muito bom para ela.
— Está na lista de tarefas.
— Qual é o, tipo, símbolo para cinco anos? Papel?
— Papel é o primeiro ano — respondi.
No final da inesperadamente dolorosa caça ao tesouro do Ano Um, Amy me presenteou com
um conjunto de papéis de carta elegantes, minhas iniciais gravadas no alto, o papel tão macio que
eu achei que meus dedos ficariam hidratados ao tocá-lo. Em troca, eu presenteara minha esposa
com uma reluzente pipa de papel vermelho de uma loja de 1,99, imaginando o parque,
piqueniques, brisas quentes de verão. Nenhum de nós gostou dos respectivos presentes; teríamos
preferido o do outro. Era um conto de O. Henry às avessas.
— Prata? — chutou Go. — Bronze? Osso de baleia esculpido? Ajude.
— Madeira — disse. — Não há nenhum presente romântico para madeira.
Na outra ponta do bar, Sue dobrou seu jornal cuidadosamente e o deixou sobre o balcão com
sua caneca vazia e uma nota de cinco dólares. Todos trocamos sorrisos silenciosos enquanto ela
saía.
— Já sei — disse Go. — Vá para casa, trepe durante horas com ela, depois bata nela com o
pênis e grite: “Tome aqui um pau, sua piranha!”
Nós rimos. Depois ambos ficamos rosados no mesmo ponto das bochechas. Era o tipo de
brincadeira vulgar nada fraterna que Go gostava de tacar para cima de mim como uma granada.
Também o motivo pelo qual no ensino médio sempre houvera boatos de que transávamos
escondidos. Incesto de gêmeos. Éramos próximos demais: nossas piadas internas, nossos
sussurros na periferia dos grupos. Tenho quase certeza de que não preciso dizer isso, mas você
não é Go, poderia me interpretar mal, então direi: minha irmã e eu nunca transamos ou sequer
pensamos em transar. Apenas gostamos muito um do outro.
Naquele momento, Go estava simulando uma surra de pau na minha esposa.
Não, Amy e Go nunca seriam amigas. Ambas eram muito territoriais. Go estava acostumada a
ser a garota alfa em minha vida, Amy estava acostumada a ser a garota alfa na vida de todo
mundo. Para duas pessoas que viviam na mesma cidade — a mesma cidade duas vezes: primeiro
Nova York, depois aqui —, elas mal se conheciam. Apareciam e desapareciam da minha vida
como atrizes com ótima noção de tempo, uma saindo pela porta enquanto a outra entrava, e, nas
raras oportunidades em que as duas ocupavam o mesmo espaço, davam a impressão um tanto
confusas com a situação.
Antes que Amy e eu namorássemos sério, noivássemos e nos casássemos, eu tinha vislumbres
das opiniões de Go em uma frase ou outra. É engraçado, não consigo chegar a uma conclusão
sobre ela, tipo, quem ela realmente é. E: Você meio que não parece você mesmo com ela . E:
Há uma diferença entre realmente amar alguém e amar a ideia dessa pessoa . E finalmente: O
importante é que ela faz você realmente feliz.
Isso na época em que Amy me fazia realmente feliz.
Amy ofereceu as próprias ideias sobre Go: Ela é muito... Missouri, não é? E: A gente só
precisa estar no clima certo para ela. E: Ela é um pouco carente em relação a você, mas
também imagino que não tenha mais ninguém.
Eu esperara que quando todos estivéssemos de volta ao Missouri, as duas deixassem para lá
— concordar em discordar, livres para ser você e eu. Nenhuma das duas fez isso. Mas Go era
mais engraçada que Amy, então era uma batalha desigual. Amy era inteligente, devastadora,
sarcástica. Amy podia me deixar irritado, encontrava argumentos excelentes e perspicazes, mas
Go sempre me fazia rir. É perigoso rir do seu cônjuge.
— Go, achei que havíamos combinado que você nunca mais mencionaria minha genitália —
lembrei-lhe. — E que nos limites de nossa relação fraterna eu não tenho genitália.
O telefone tocou. Go tomou mais um gole de cerveja e atendeu, revirou os olhos e sorriu.
— Claro que ele está aqui, um momento, por favor! — disse, e articulou para mim em
silêncio: — Carl.
Carl Pelley morava do outro lado da rua, em frente a mim e Amy. Aposentado havia três
anos. Divorciado havia dois. Mudou-se para nosso condomínio logo depois. Fora vendedor
itinerante — artigos para festas infantis — e eu sentia que após quatro décadas morando em
hotéis ele não se sentia exatamente em casa quando estava em casa. Aparecia no bar praticamente
todo dia com um saco da lanchonete Hardee’s, de cheiro forte, reclamando de dinheiro até ganhar
uma primeira bebida por conta da casa. (Essa foi outra coisa que aprendi sobre Carl nos seus
dias n’O Bar — que era um alcoólatra funcional, mas grave.) Ele fazia a gentileza de aceitar
qualquer coisa de que estivéssemos “tentando nos livrar”, e falava sério: durante um mês inteiro,
Carl não bebeu nada além de garrafas empoeiradas de cooler Zima, circa 1992, que tínhamos
descoberto no porão. Quando uma ressaca o mantinha em casa, ele encontrava um motivo para
telefonar: Sua caixa de correio parece incrivelmente cheia hoje, Nicky, talvez tenha chegado
um pacote. Ou: Deve chover, acho que seria bom você fechar suas janelas. Os motivos eram
desculpas. Carl só precisava ouvir barulho de copos, o gargarejo de uma bebida sendo servida.
Peguei o telefone, sacudindo um copo com gelo perto do fone para que Carl pudesse imaginar
seu gim.
— Oi, Nicky — cumprimentou ele com sua voz insípida. — Desculpe-me por incomodar. Só
achei que você deveria saber... Sua porta está escancarada, e aquele seu gato está do lado de
fora. Ele não deveria ir lá fora, certo?
Soltei um grunhido dúbio.
— Eu poderia ir lá e conferir, mas estou um pouco indisposto — continuou com dificuldade.
— Não se preocupe — falei. — De qualquer forma, já está na hora de eu ir para casa.
* * *
Eram quinze minutos de carro rumo ao norte em linha reta pela River Road. Entrar em nosso
condomínio me dava arrepios algumas vezes, o número de casas escuras e vazias — casas que
nunca conheceram moradores, ou que haviam tido donos e os viram ser expulsos, a casa se
erguendo triunfantemente esvaziada, desumana.
Quando Amy e eu nos mudamos para lá, nossos poucos vizinhos pularam em cima de nós:
uma mãe solteira de meia-idade com três filhos, levando um ensopado; um jovem pai de
trigêmeos com uma embalagem de seis cervejas (a esposa tendo sido deixada em casa com os
trigêmeos); um casal cristão mais velho que vivia algumas casas adiante; e, claro, Carl, do outro
lado da rua. Nós nos sentamos no nosso cais do quintal e olhamos o rio, e todos eles falavam
tristemente sobre hipotecas de juros variáveis, juro zero e zero de entrada, e depois todos
observaram como Amy e eu éramos os únicos com acesso ao rio, os únicos sem filhos.
— São só vocês dois? Nesta casa enorme? — perguntou a mãe solteira, distribuindo alguma
coisa com ovos mexidos.
— Só nós dois — confirmei com um sorriso e fiz um aceno com a cabeça, agradecendo
enquanto comia uma garfada vacilante dos ovos.
— Parece solitário.
Nisso ela estava certa.
Quatro meses depois, a mulher da casa enorme perdera a batalha contra a hipoteca e
desaparecera na noite com os três filhos. Sua casa permaneceu vazia. A janela da sala de estar
ainda tem um desenho infantil de uma borboleta colado nela, o marcador brilhante tornado
marrom pelo sol. Certa noite, não faz muito tempo, passei de carro por ali e vi um homem
barbado, imundo, olhando para fora por trás do desenho, flutuando no escuro como um peixe
triste de aquário. Ele me viu olhando e se retirou apressado para os fundos da casa. No dia
seguinte, deixei um saco de papel pardo cheio de sanduíches no degrau da entrada; ele ficou uma
semana no sol, intocado, mofando, até que eu o peguei de volta e joguei fora.
Silêncio. O condomínio estava sempre incomodamente silencioso. Ao me aproximar de nossa
casa, consciente do barulho do motor do carro, pude ver que o gato definitivamente estava nos
degraus. Ainda nos degraus, vinte minutos depois do telefonema de Carl. Aquilo era estranho.
Amy amava aquele gato, o gato não tinha garras, o gato nunca era deixado do lado de fora,
jamais, porque o gato, Bleecker, era amável mas extremamente burro, e, apesar do dispositivo de
rastreamento enfiado em algum ponto do seu corpo gordo e peludo, Amy sabia que nunca mais o
veria caso ele saísse. Ele iria diretamente para o rio Mississippi — lá lá lá — e flutuaria até o
Golfo do México para a boca de um tubarão-cabeça-chata faminto.
Mas na verdade o gato não era sequer inteligente o bastante para ir além dos degraus.
Bleecker estava encarapitado na beirada da varanda, uma sentinela balofa, mas orgulhosa —
Soldado Esforçado. Quando parei na entrada de carros, Carl saiu e parou em seus próprios
degraus da frente, e eu pude sentir o gato e o velho me observando enquanto descia do carro e
caminhava na direção de casa, as peônias vermelhas na lateral parecendo gordas e suculentas,
pedindo para serem devoradas.
Eu estava prestes a me colocar em posição de bloqueio para pegar o gato quando vi que a
porta da frente estava aberta. Carl dissera isso, mas ver por conta própria foi diferente. Aquilo
não era um aberto tipo vou-tirar-o-lixo-e-já-volto. Era um escancarado-e-assustadoramenteaberto.
Carl rondava do outro lado da rua, esperando minha reação, e como em uma performance
artística horrorosa, eu me senti interpretando o Marido Preocupado. Parei no degrau do meio e
franzi a testa, depois subi a escada rapidamente, dois degraus de cada vez, chamando o nome de
minha esposa.
Silêncio.
— Amy, você está em casa?
Corri para o segundo andar. Nada de Amy. A tábua de passar estava montada, o ferro ainda
ligado, um vestido esperando para ser passado.
— Amy!
Enquanto eu corria escada abaixo, podia ver Carl ainda emoldurado pelo batente da porta,
mãos nos quadris, assistindo. Desviei para a sala e parei de repente. O carpete reluzia com cacos
de vidro, a mesa de centro quebrada. As mesas de canto estavam caídas, livros espalhados pelo
chão como cartas de baralho. Até o pesado divã antigo estava de cabeça para baixo, seus quatro
pequenos pés no ar como algo morto. No meio da confusão havia uma tesoura afiada.
— Amy!
Comecei a correr, berrando seu nome. Atravessei a cozinha, onde uma chaleira queimava,
desci para o porão, cujo quarto de hóspedes estava vazio, e então saí pela porta dos fundos.
Atravessei correndo nosso quintal até o estreito cais de barcos que se projetava sobre o rio.
Espiei do lado para ver se ela estava em nosso barco a remo, onde a encontrara certo dia, o
barco amarrado ao cais, balançando na água, o rosto dela ao sol, olhos fechados. E enquanto eu
fitava os estonteantes reflexos do rio, seu lindo rosto imóvel, ela de repente abrira os olhos azuis
e não me dissera nada, e eu não dissera nada para ela em resposta e entrara em casa sozinho.
— Amy!
Ela não estava na água, ela não estava na casa. Amy não estava ali.
Amy havia sumido.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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