sumida há quase uma semana. Uma vigília à luz de velas acontecerá esta noite no Tom Sawyer
Park, que, segundo a imprensa, era “um dos lugares preferidos de Amy Elliott Dunne”. (Nunca
soube que Amy tivesse colocado os pés no parque; a despeito do nome, o lugar não é nem
remotamente charmoso. Genérico, sem árvores, com uma caixa de areia que está sempre cheia de
fezes de animais; é profundamente não Twain.) Nas últimas vinte e quatro horas, a história se
tornara nacional — estava em toda parte, assim, de repente.
Deus abençoe os fiéis Elliott. Marybeth me telefonou ontem à noite enquanto eu tentava me
recuperar do chocante interrogatório policial. Minha sogra assistira ao Ellen Abbott Show e
classificara a mulher de “piranha oportunista em busca de audiência”. Ainda assim, passáramos a
maior parte do dia de hoje concebendo uma estratégia para lidar com a imprensa.
A imprensa (minha antiga turma, meu pessoal!) estava moldando a história, e adorava a faceta
Amy Exemplar e o longo casamento dos Elliott. Nenhum comentário sarcástico sobre o fim da
série ou a quase falência dos autores — no momento eram apenas gentilezas para com os Elliott.
A imprensa os adorava.
A mim, nem tanto. A imprensa já estava apresentando motivos de preocupação. Não apenas
as coisas que haviam vazado — minha falta de álibi, a cena do crime possivelmente “forjada”
—, mas traços de personalidade reais. Contavam que no ensino médio eu nunca namorara
nenhuma garota por mais que alguns meses e que, portanto, eu era claramente um mulherengo.
Descobriram que havíamos internado meu pai na Comfort Hill e que eu raramente o visitava,
portanto eu era um ingrato que abandonara o pai.
— Isto é um problema: eles não gostam de você — dizia Go após cada nova matéria. — É
um problema muito real, Lance.
A imprensa ressuscitara meu primeiro nome, que eu odiava desde o ensino fundamental,
sofrendo no começo de cada ano letivo quando o professor fazia a chamada: “É Nick, todos me
chamam de Nick!” Todo setembro, um ritual de primeiro dia de aula: “Nick, todos me chamam de
Nick!” Sempre algum espertinho passava o recreio desfilando como um rapaz afetado: “Oi, eu
sou Laaaance”, com uma voz esvoaçante. Depois isso era esquecido até o ano seguinte.
Mas não agora. Agora estava em todos os noticiários, aquele terrível veredicto de três nomes
reservado para assassinos e serial killers — Lance Nicholas Dunne —, e não havia nada que eu
pudesse dizer.
* * *
Rand e Marybeth Elliott, Go e eu fomos juntos à vigília. Não era claro quanta informação os
Elliott estavam recebendo, quantas atualizações condenatórias sobre seu genro. Eu sabia que eles
tinham informações sobre o local “forjado”:
— Vou levar um pessoal meu lá e eles nos dirão exatamente o oposto; que foi claramente o
cenário de uma briga — disse Rand, confiante. — A verdade é flexível; você só precisa escolher
o especialista certo.
Rand não sabia sobre as outras coisas, os cartões de crédito, o seguro de vida, o sangue e
Noelle, a melhor amiga amarga de minha esposa com as alegações condenatórias: agressão,
cobiça, medo. Ela estava programada para o Ellen Abbott desta noite, depois da vigília. Noelle e
Ellen poderiam ambas ficar ofendidas comigo para os telespectadores.
Nem todos sentiam repulsa por mim. Na última semana, os negócios n’O Bar estavam a toda:
centenas de clientes se aglomeravam para tomar cerveja e beliscar pipoca no lugar de
propriedade de Lance Nicholas Dunne, o talvez-assassino. Go tivera de contratar quatro garotos
novos para cuidar d’O Bar; ela passara lá uma vez e dissera que não podia voltar, não suportava
ver como estava cheio, malditos enxeridos, mórbidos, todos bebendo nosso álcool e trocando
histórias sobre mim. Era revoltante. Ainda assim, Go raciocinou, o dinheiro seria útil se...
Se. Amy sumida havia seis dias, e todos pensavam em ses.
Nós nos aproximamos do parque em um carro silencioso a não ser pelo constante tamborilar
das unhas de Marybeth na janela.
— Parece quase um encontro de dois casais. — Rand riu, o riso quase histérico: agudo e
guinchado.
Rand Elliott, o genial psicólogo, autor de best-sellers, amigo de todos, estava surtando.
Marybeth começara a se automedicar: doses de um álcool claro tomado com absoluta precisão,
em quantidade suficiente para relaxar um pouco mas permanecer alerta. Rand, por outro lado,
estava literalmente perdendo a cabeça; eu quase esperava vê-la saindo dos seus ombros em um
salto de boneco de mola — cucoooo! A natureza simpática de Rand tornara-se maníaca: ele
ficava desesperadamente íntimo de todos que conhecia, abraçando policiais, repórteres,
voluntários. Ele estava particularmente próximo de nosso ajudante no Days Inn, um garoto
desajeitado e tímido chamado Donnie, que Rand gostava de provocar e informá-lo de que estava
fazendo isso. “Ah, estou só provocando você, Donnie”, dizia, e Donnie dava um sorriso alegre.
“Aquele garoto não pode buscar afeto em algum outro lugar?”, reclamei com Go certa noite.
Ela disse que eu estava apenas com ciúme porque minha figura paterna gostava mais de outra
pessoa do que de mim. Eu estava mesmo.
* * *
Marybeth deu tapinhas nas costas de Rand enquanto caminhávamos para o parque, e pensei
em quanto eu queria que alguém fizesse aquilo comigo, apenas um toque rápido, e de repente dei
um suspiro-soluço, um rápido gemido choroso. Eu queria alguém, mas não sabia se era Andie ou
Amy.
— Nick? — chamou Go.
Ela ergueu a mão na direção do meu ombro, mas eu me encolhi e a afastei.
— Desculpe. Uau, desculpe por isso — falei. — Um surto estranho, nada característico dos
Dunne.
— Sem problema. Estamos ambos nos descaracterizando — disse Go, e desviou os olhos.
Desde que descobrira minha situação — que é como passáramos a chamar minha
infidelidade —, Go se afastara um pouco, os olhos distantes, o rosto sempre sorumbático. Eu
estava me esforçando muito para não ficar ressentido com isso.
Quando entramos no parque, as equipes de televisão estavam por toda parte, não só
emissoras locais, mas as redes. Os Dunne e os Elliott caminharam pela periferia da multidão,
Rand sorrindo e acenando com a cabeça como um dignitário em visita. Boney e Gilpin
apareceram quase imediatamente, nos nossos calcanhares como cães de caça amistosos; estavam
se tornando familiares, como uma mobília, o que claramente era a ideia. Boney vestia as mesmas
roupas que usava em qualquer evento público: saia preta simples, blusa listrada cinza,
prendedores dos dois lados dos cabelos escorridos. I got a girl named Bony Moronie... A noite
estava abafada; sob as axilas de Boney, duas manchas escuras de transpiração formavam carinhas
sorridentes. Ela até sorriu para mim, como se as acusações de ontem — eram acusações, não
eram? — não tivessem sido feitas.
Os Elliott e eu subimos os degraus para um tablado instável e improvisado. Olhei para minha
gêmea, ela acenou com a cabeça para mim e simulou respirar profundamente, e eu me lembrei de
respirar. Centenas de rostos estavam voltados para nós, e também câmeras disparando e
espocando. Não sorria, disse a mim mesmo. Não sorria.
Da frente de dezenas de camisetas Encontre Amy, minha esposa me analisava.
Go disse que eu precisaria fazer um discurso (“Você precisa se humanizar, e rápido”), então
foi o que fiz, caminhei até o microfone. Ele estava baixo demais, à altura da barriga, então
briguei com ele por alguns segundos e ele subiu poucos centímetros, o tipo de defeito que
normalmente iria me enfurecer, mas eu não podia mais ficar furioso em público, então respirei
fundo, me abaixei e li as palavras que minha irmã escrevera para mim:
— Minha esposa, Amy Dunne, está desaparecida há quase uma semana. Não tenho como
transmitir a angústia que nossa família sente, o grande vazio em nossas vidas deixado pelo
desaparecimento de Amy. Amy é o amor da minha vida, o núcleo de sua família. Para aqueles
que não a conhecem, ela é engraçada, encantadora e gentil. É inteligente e carinhosa. É minha
companheira e parceira em todos os sentidos.
Ergui os olhos para a multidão e, como mágica, vi Andie, com uma expressão de desgosto no
rosto; rapidamente voltei os olhos para minhas anotações.
— Amy é a mulher com quem quero envelhecer, e sei que isso acontecerá.
PAUSA. RESPIRE. NÃO SORRIA. Go havia realmente escrito essas palavras em minha
ficha. Acontecerá, acontecerá, acontecerá. Minha voz ecoou pelos alto-falantes, rolando na
direção do rio.
— Pedimos que entrem em contato conosco com qualquer informação. Acendemos velas esta
noite na esperança de que ela volte para casa logo e em segurança. Eu amo você, Amy.
Mantive meus olhos se movendo em todas as direções menos na de Andie. O parque se
acendeu com velas. Deveria haver um momento de silêncio, mas bebês choravam, e um sem-teto
trôpego ficava perguntando em voz alta:
— Ei, o que é isto? Para que é isto?
E alguém sussurrava o nome de Amy, e o cara falava mais alto:
— O quê? Isto é para quê?
Noelle Hawthorne começou a avançar, saindo do meio da multidão, os trigêmeos anexados a
ela, um no quadril, os outros dois agarrados à sua saia, todos parecendo ridiculamente pequenos
para um homem que não passava nenhum tempo perto de crianças. Noelle obrigou a multidão a
abrir passagem para ela e os filhos, marchando diretamente para a beirada do tablado, de onde
ergueu os olhos para mim. Encarei-a — a mulher que havia me difamado —, então percebi pela
primeira vez o volume em sua barriga e me dei conta de que estava grávida de novo. Fiquei
boquiaberto por um segundo — quatro filhos em menos de quatro anos, Deus do céu — e depois
aquele olhar seria analisado e debatido, a maioria das pessoas acreditando que era uma
sequência de raiva e medo.
— Oi, Nick.
A voz dela foi captada pelo microfone baixo e ribombou para o público.
Comecei a mexer no microfone, mas não conseguir achar o botão de desligar.
— Só queria ver seu rosto — disse ela, e caiu em prantos. Um soluço molhado percorreu a
plateia, todos hipnotizados. — Onde ela está? O que você fez comAmy? O que você fez com sua
esposa?
Esposa, esposa, a voz dela ecoou. Dois de seus assustados filhos começaram a chorar.
Noelle não conseguiu falar durante um segundo, de tanto que chorava. Ela estava louca,
furiosa, e agarrou o suporte do microfone e puxou a coisa toda para si. Pensei em pegá-lo de
volta, mas sabia que não podia fazer nada com aquela mulher com vestido de grávida e três
crianças pequenas. Esquadrinhei a multidão em busca de Mike Hawthorne — controle sua
esposa —, mas ele não estava em lugar algum. Noelle se virou para se dirigir à multidão.
— Amy é minha melhor amiga!
Amiga, amiga, amiga. As palavras ecoavam em todo o parque, assim como o lamento dos
filhos.
— Apesar dos meus esforços, a polícia parece não estar me levando a sério. Então vou
apresentar a questão a esta cidade, esta cidade que Amy amava e que a amava! Este homem, Nick
Dunne, precisa responder a certas perguntas. Ele precisa nos dizer o que fez com a esposa dele!
Boney disparou da lateral do palco para alcançá-la, Noelle se virou, e as duas se encararam.
Boney fez um gesto frenético simulando cortar a própria garganta: Pare de falar!
— A esposa grávida dele!
E ninguém mais conseguiu ver as velas, porque os flashes estavam alucinados. Perto de mim,
Rand fez um ruído como um balão esvaziando. Abaixo de mim, Boney colocou os dedos entre as
sobrancelhas, como se contendo uma dor de cabeça. Eu via todos sob uma frenética luz
estroboscópica que correspondia à minha pulsação.
Olhei para a multidão em busca de Andie, a vi me encarando, o rosto rosado e retorcido, as
bochechas úmidas, e quando nossos olhos se encontraram, ela fez “Babaca!” com a boca e saiu
cambaleando em meio à multidão.
— Melhor irmos embora.
Era minha irmã, de repente ao meu lado, sussurrando em meu ouvido, puxando meu braço. As
câmeras disparavam sobre mim enquanto eu ficava parado como uma espécie de monstro de
Frankenstein, com medo e perturbado pelas tochas dos aldeões. Flash, flash. Começamos a nos
mover, dividindo-nos em dois grupos: minha irmã e eu fugindo na direção do carro de Go, os
Elliott ali, de boca aberta no tablado, deixados para trás, salve-se quem puder. Os repórteres
repetiam a pergunta para mim. Nick, Amy estava grávida? Nick, você estava aborrecido por
Amy estar grávida? Eu, saindo do parque, encolhido como se sob uma chuva de granizo:
grávida, grávida, grávida, a palavra pulsando na noite de verão ao ritmo das cigarras.
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