quinta-feira, 6 de agosto de 2015

NOTICIA BIOGRÁFICA SOBRE ELLIS E ACTON BELL


Pensou-se, durante algum tempo, que todas as obras editadas com os
nomes de Currer, Ellis e Acton Bell fossem, realmente, o produto da pena de
uma só pessoa. Tentei corrigir esse engano mediante algumas palavras de
retificação, apensas à terceira edição de Jane Eyre. Mas, como parece que
tampouco elas mereceram crédito, aconselham-me agora, por ocasião desta
nova edição de O Morro dos Ventos Uivantes, que esclareça o caso de uma vez por todas.
Efetivamente, eu própria acho que é mais do que tempo de dissipar a
obscuridade que cerca esses dois nomes, Ellis e Acton. O pequeno mistério,
que outrora proporcionou um certo prazer inocente, já perdeu o interesse; as
circunstâncias mudaram. Torna-se, pois, meu dever explicar sucintamente a
origem e a autoria dos livros escritos por Currer, Ellis e Acton Bell.
Há cerca de cinco anos, após um prolongado período de separação, eu
e minhas duas irmãs voltamos a reunir-nos em casa. Residindo num remoto
distrito, onde a instrução pouco progresso fizera e onde, em conseqüência,
não havia satisfação em procurar relações sociais fora do círculo doméstico,
dependíamos inteiramente de nós mesmas e umas das outras, da leitura e do
estudo para preenchermos as necessidades de diversão e de ocupação das
nossas vidas. O mais alto estímulo e o maior prazer que conhecêramos desde
a infância baseara-se em tentativas de composição literária. A princípio
costumávamos mostrar o que escrevíamos; ultimamente, porém, esse hábito  de comunicação e consulta fora posto de lado, daí resultando ignorarmos
mutuamente os progressos que cada qual tinha feito.
Um belo dia, no outono de 1845, descobri, acidentalmente, um caderno
de versos escritos na letra de minha irmã Emily. Não fiquei surpresa, pois
sabia que ela escrevia versos: li-os e algo mais do que surpresa tomou conta
de mim — a certeza de que aquelas não eram efusões comuns, nem de forma
alguma semelhantes aos versos que as mulheres geralmente escrevem. Acheios
condensados e tensos, vigorosos e genuínos. Pareciam-me, também, ter
uma música peculiar — selvagem, melancólica e inspiradora.
Minha irmã Emily não era pessoa comunicativa, nem permitia que
ninguém — nem mesmo a família — penetrasse, sem pedir licença, nos
recessos da sua mente ou dos seus sentimentos. Foram necessárias horas para
que se reconciliasse comigo pela descoberta que eu fizera e dias para persuadila
de que aqueles poemas mereciam ser publicados. Eu sabia que uma
personalidade como a dela não podia deixar de conter alguma centelha latente
de ambição honrada e recusei-me a desistir das minhas tentativas de inflamá-
la.
Entretanto, a minha irmã mais jovem ia buscar algumas das suas
próprias composições, alegando que, como os versos de Emily me tinham
dado prazer, talvez eu quisesse também ler os dela. Embora o meu juízo fosse
parcial, achei que também aqueles versos demonstravam uma emoção sincera
e original.
Desde muito cedo, tínhamos alimentado o sonho de virmos um dia a
ser escritoras. Esse sonho, nunca abandonado mesmo quando a distância nos
dividia e diferentes tarefas nos absorviam, de repente adquiria força e consistência, revestindo-se das características de uma resolução. Concordamos em
fazer uma pequena seleção dos nossos poemas e, se possível, editá-los.
Adversas à publicidade pessoal, ocultamos os nossos nomes sob os
pseudônimos de Currer, Ellis e Acton Bell, sendo a escolha ditada por uma
espécie de escrúpulo que nos levava a assumir nomes positivamente
masculinos, não querendo confessarmo-nos mulheres porque — embora
então não suspeitássemos de que a nossa maneira de pensar e de escrever não
era o que se chama "feminina" — tínhamos a impressão de que as escritoras
eram encaradas com espírito preconcebido.
Notáramos que os críticos por vezes usavam a arma do desprezo pelos
escritos femininos ou, ao contrário, da lisonja gentil ao belo sexo.
A publicação do nosso livrinho foi trabalho árduo. Como era de
esperar, nem nós nem a nossa poesia fomos bem acolhidas. Mas estávamos
preparadas para isso; embora inexperientes, conhecíamos a experiência de
outros. A maior dificuldade estava em obter uma resposta qualquer dos
editores aos quais nos dirigíamos. Bastante desencorajada por esse obstáculo,
aventurei-me a escrever aos Srs. Chambers, de Edimburgo, pedindo-lhes
conselho. Talvez eles tenham esquecido as circunstâncias, mas eu não, pois
deles recebi uma resposta breve, porém polida e sensata, com base na qual
agimos e, finalmente, conseguimos levar avante o nosso sonho.
O livro foi publicado: pouca gente o conhece e tudo o que dele merece
ser conhecido são os poemas de Ellis Bell. A convicção que eu tinha e tenho
do valor desses poemas não recebeu a confirmação de uma crítica muito
favorável; não obstante, mantenho a minha opinião.

O insucesso não nos abateu: o simples esforço para triunfar dera um
novo sabor à nossa existência; tinha de ser continuado. Cada uma de nós
começou a trabalhar numa obra em prosa: Ellis Bell escreveu O Morro dos
Ventos Uivantes, Acton Bell produziu Agnes Grey e Currer Bell também
escreveu uma novela em um volume. Todos esses trabalhos foram
perseverantemente enviados a vários editores durante um ano e meio; seu
destino era sempre uma abrupta e humilhante recusa.
Finalmente, O Morro dos Ventos Uivantes e Agnes Grey foram aceitos em
termos algo desfavoráveis para as duas autoras; quanto ao livro de Currer
Bell, não encontrou aceitação em parte alguma, nem qualquer
reconhecimento de mérito, e algo como o gelo do desespero começou a
invadir-lhe o coração. Como última esperança, Currer Bell tentou mais uma
editora — Smith, Elder & Co. Em muito menos tempo do que aquele que a
experiência lhe ensinara a esperar, chegou-lhe uma carta, que abriu, na triste
expectativa de encontrar duas linhas secas e desencorajadoras, informando
que Smith, Elder & Co. "não estavam interessados na publicação do
manuscrito". Em vez disso, saiu do envelope uma carta de duas páginas, que
Currer Bell leu com mãos trêmulas. A editora recusava-se, realmente, a
publicar a novela, por razões comerciais, mas apontava os seus méritos e os
seus defeitos de maneira tão cortês, com um espírito tão racional, com uma
visão tão esclarecida, que a recusa foi para a autora muito mais encorajadora
do que o teria sido uma vulgar aceitação. A carta acrescentava que uma obra
em três volumes receberia a melhor das atenções.
Eu estava então terminando Jane Eyre, em que trabalhara enquanto a tal
novela de um volume batia às portas das editoras: mandei-a em três semanas e mãos amigas e competentes a receberam. Foi isso no começo de setembro de
1847; antes do fim de outubro, Jane Eyre via a luz, ao passo que O Morro dos
Ventos Uivantes e Agnes Grey, os livros das minhas irmãs, que havia meses
estavam na tipografia, demoraram ainda a sair por outras editoras.
Finalmente, apareceram. Os críticos não lhes fizeram justiça. Os
poderes imaturos, mas autênticos, revelados em O Morro dos Ventos Uivantes
mal foram reconhecidos; a sua significação e natureza foram
incompreendidas; a identidade da sua autora foi confundida: afirmou-se ser o
romance uma prévia e rude experiência da mesma pena que escrevera Jane
Eyre. Injusto e tremendo engano! Fez-nos rir na ocasião, mas agora lamento-o
profundamente. Acho que daí surgiu um preconceito contra o livro. Um
autor que fosse capaz de tentar impingir uma produção imatura e inferior
aproveitando-se de um sucesso posterior deveria, efetivamente, preocupar-se
muito com a sua obra secundária e ser lamentavelmente indiferente ao
verdadeiro galardão. Se os críticos e o público de fato acreditaram nisso, não
admira que encarassem com maus olhos o novo livro.
Contudo, não quero que se pense que estou fazendo disso motivo de
queixa ou censura; não ouso fazê-lo; o respeito pela memória de minha irmã
proíbe-me tal coisa. Qualquer manifestação desse gênero teria por ela sido
considerada como uma indigna e ofensiva demonstração de fraqueza.
É meu dever, bem como meu prazer, fazer constar uma exceção à regra
geral das críticas. Um comentarista (Vide o Palladium de setembro de 1850),
dotado da visão lúcida e da bela percepção do gênio, discerniu a verdadeira
natureza de O Morro dos Ventos Uivantes e, com igual precisão, indicou-lhe as
belezas e os defeitos. Muitas vezes os críticos nos recordam a quantidade de
astrólogos, caldeus e adivinhos reunidos diante de uma "inscrição mural" e
incapazes de decifrar-lhe os caracteres ou tornar conhecida a sua
interpretação. Temos o direito de nos felicitarmos quando por fim aparece
um autêntico vidente, alguém de grande espírito, ao qual foram dadas luz,
sabedoria e compreensão e que é capaz de traduzir exatamente o Mene, Mene,
Tekel, Upharsin de uma mente original (por mais imatura, pouco cultivada e
parcialmente desenvolvida que essa mente seja) e dizer, com absoluta certeza:
"É esta a interpretação do que aí está escrito".
Entretanto, até mesmo a pessoa a quem me refiro compartilha o
engano sobre a sua autoria e me faz a injustiça de crer que cometi um erro ao
rejeitar essa honra (pois considero-a uma honra). Posso assegurar-lhe que,
neste e noutros casos iguais, jamais cometeria erros dessa natureza. Acho que
a língua nos foi dada para tornar claro o que queremos dizer e não para o
envolvermos numa dúvida desonesta.
O locatário de Wildfell Hall, por Acton Bell, também teve uma acolhida
desfavorável. Disso, porém, não me posso espantar. A escolha do assunto foi
um completo erro. Nada menos de acordo com a natureza da autora poderia
ter sido concebido. Os motivos que lhe ditaram essa escolha foram, creio,
puros, mas ligeiramente mórbidos. Durante a sua vida coubera-lhe
contemplar, de perto e por longo tempo, os terríveis efeitos de talentos malempregados
e de faculdades desperdiçadas; o seu temperamento era
naturalmente sensível, reservado e aflito; o que viu impressionou-a
grandemente e fez-lhe mal. Meditou naquilo até julgar seu dever reproduzir
todos os detalhes (obviamente com personagens, incidentes e situações fictícios),
como uma lição para quem a lesse. Detestava o seu trabalho, mas prosseguia nele. Encarava os comentários que lhe fazíamos a propósito do
assunto como uma tentação a combater. Tinha de ser honesta: não podia
enfeitar, abrandar ou esconder nada. Essa bem-intencionada decisão
acarretou-lhe uma interpretação errônea e muitas críticas, que ela recebeu
como era seu costume receber as coisas desagradáveis — com paciência e
resignação. Era uma verdadeira, sincera cristã, mas o timbre da melancolia
religiosa imprimiu um contorno triste à sua curta e inocente vida.
Nem Ellis nem Acton se permitiram, por um momento sequer,
desanimar por falta de encorajamento; a energia estimulava a primeira, a
resistência amparava a segunda. Estavam ambas preparadas para tentar de
novo e creio que nelas a esperança e a sensação de serem capazes ainda
continuavam fortes. Mas ocorreu então uma grande mudança: algo se abateu
sobre elas nessa forma que se teme antecipar e que tanta dor causa recordar.
Em pleno calor do dia, as lavradoras tombaram sobre a sua seara.
Minha irmã Emily foi a primeira. Os pormenores da sua doença estão
marcados a fogo na minha memória, mas deter-me neles, seja em pensamento
ou em narrativa, está além das minhas forças. Nunca na sua vida ela demorara
a cumprir o que tinha pela frente, e dessa vez tampouco demorou. Declinou
rapidamente. Apressou-se em nos deixar. E contudo, embora perecendo
fisicamente, mentalmente se tornava mais forte do que jamais a tínhamos
conhecido. Dia a dia, ao vê-la enfrentar com tal fortaleza o sofrimento, eu a
olhava com uma angústia feita de amor e admiração. Nunca vi nada assim;
mas, também, nunca vi ninguém que se lhe comparasse em nada. Mais forte
do que um homem, mais simples do que uma criança, a sua natureza era
única. O terrível era que, cheia de compaixão pelos outros, dela própria não

tinha pena. O espírito continuava inexorável; da mão trêmula, dos membros
inertes, dos olhos apagados era exigido o mesmo serviço que eles tinham
prestado quando sãos. Testemunhar isso e não ousar protestar era uma dor
que não se pode traduzir por palavras.
Dois cruéis meses de esperança e temor se passaram e chegou
finalmente o dia em que o terror e os padecimentos da morte seriam
suportados por aquele tesouro, que se fora tornando mais e mais caro aos
nossos corações à medida que definhava aos nossos olhos. No fim desse dia,
nada mais tínhamos de Emily senão os seus restos mortais, tais como a tísica
os deixara. Faleceu a 19 de dezembro de 1848.
Achamos o golpe demasiado: pois nos enganávamos redonda e
presunçosamente. Ela ainda não fora sepultada, quando Anne caiu doente.
Não havia uma quinzena que o enterro se realizara, quando percebemos que
era necessário prepararmo-nos para ver a caçula acompanhar a irmã mais
velha. Conforme o seu temperamento, ela seguiu o mesmo caminho com
passo mais lento e uma paciência que igualava a fortaleza da outra. Já disse
que ela era religiosa, e foi nessas doutrinas cristãs, em que tão firmemente
acreditava, que Anne encontrou apoio para a sua dolorosa jornada.
Testemunhei a sua eficácia no momento supremo e no calmo triunfo que elas
lhe proporcionaram. Anne faleceu a 28 de maio de 1849.
Que mais direi acerca delas? Não posso e nem preciso dizer muito mais.
Exteriormente, eram duas mulheres discretas; uma existência perfeitamente
reclusa dera-lhes modos e hábitos retraídos. Em Emily, os extremos do vigor
e da simplicidade pareciam encontrar-se. Sob uma cultura destituída de
sofisticação, gostos naturais e uma aparência modesta, jaziam um fogo e um poder secretos, que poderiam ter inflamado as veias e alimentado o cérebro
de um herói; mas ela não tinha conhecimentos mundanos; os seus poderes
não se adaptavam aos aspectos práticos da vida: ela não saberia defender os
seus mais manifestos direitos, lutar pelas suas mais legítimas conveniências.
Teria sempre de haver alguém entre ela e o mundo. A sua vontade não era
flexível e geralmente se opunha aos seus interesses. O seu gênio era
magnânimo, mas quente e impetuoso; o seu espírito, um modelo de firmeza.
O caráter de Anne era mais dócil e passivo; não tinha ó poder, o fogo, a
originalidade da irmã, mas era bem dotada de virtudes próprias. Estóica,
abnegada, refletida e inteligente, a reserva e a taciturnidade colocavam-na e
mantinham-na na sombra, cobrindo-lhe a mente e, principalmente, os
sentimentos com uma espécie de véu de freira, que ela raramente levantava.
Nem Emily nem Anne eram intelectuais; não lhes passava pela cabeça
aproveitar os frutos de outras mentes; escreviam sempre sob o impulso da sua
natureza, sob os ditames da intuição e com os dados de observação que a sua
limitada experiência lhe permitira acumular. Sumarizando, direi que, para os
estranhos, elas não eram nada e para os observadores superficiais, menos que
nada; mas, para aqueles que as haviam conhecido durante toda a vida, na
intimidade de relações estreitas, elas eram genuinamente boas e verdadeiramente
grandes.
Esta notícia foi escrita porque achei ser um dever sagrado remover-lhes a poeira das lápides e limpar os seus caros nomes.
 Currer Bell
(Charlotte Brontë)
19 de setembro de 1850
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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