sábado, 8 de agosto de 2015

PREFÁCIO DO EDITOR À NOVA EDIÇÃO DE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES


Acabei de reler O Morro dos Ventos Uivantes e, pela primeira vez, obtive
uma clara visão daquilo a que se chama (e, talvez, com razão) os seus defeitos;
consegui ter uma noção definida de como o livro surge aos olhos de outras
pessoas — às pessoas que não conheceram a autora, que desconhecem a
localidade em que a história se desenrola, para quem os habitantes, os costumes,
as características naturais dos distantes morros e povoados a oeste de Yorkshire são coisas estranhas e até exóticas.
Para todas essas pessoas, O Morro dos Ventos Uivantes deve parecer um
livro rude e esquisito. As bravias charnecas do norte da Inglaterra não podem
ter, para elas, qualquer interesse; a linguagem, as maneiras, as próprias
moradas e os usos domésticos dos poucos habitantes dessas regiões devem
ser, para tais leitores, em grande parte ininteligíveis e — quando inteligíveis —
repulsivos. Homens e mulheres que, talvez por natureza muito calmos, com
sentimentos moderados e pouco marcados, tenham sido desde o berço
ensinados a observar a mais completa temperança de maneiras e o mais
perfeito policiamento de linguagem sem dúvida não saberão como encarar o
linguajar forte, as paixões brutalmente manifestadas, as aversões não contidas
e as obstinadas parcialidades dos camponeses iletrados e dos fidalgos não
refinados que vivem nessa região, e que se criaram sem outros ensinamentos e
outras contenções que os de mentores tão rudes quanto eles próprios.
Da mesma forma, uma vasta classe de leitores se chocará grandemente
com a introdução, nas páginas deste livro, de palavras escritas com todas as suas letras, quando se tornou costume apresentá-las apenas pela inicial e a
última letra — um traço ou reticências preenchendo o intervalo. Devo logo ir
dizendo que, quanto a isso, foge à minha capacidade pedir desculpas, já que
eu próprio acho racional escrever as palavras por extenso. A prática de
insinuar, por meio de uma ou duas letras, os expletivos com os quais as
pessoas profanas e violentas habitualmente guarnecem as suas falas parece-me
um procedimento que, embora bem-intencionado, peca pela fraqueza e pela
futilidade. Não entendo que bem isso faz, que sensibilidade isso poupa, que
horrores isso oculta.
A respeito da rusticidade de O Morro dos Ventos Uivantes, admito a
acusação pois lhe sinto a qualidade. É todo ele rústico, selvagem e espinhoso
como uma raiz de urze. Nem seria natural que fosse de outra maneira, uma
vez que a autora era nascida e criada nas charnecas. Sem dúvida, houvesse ela
nascido numa cidade, e os seus escritos — se ela tivesse escrito — teriam
possuído outras características. Mesmo que o acaso ou o gosto a tivessem
levado a escolher um assunto parecido, ela o teria tratado de outra forma.
Tivesse Ellis Bell sido uma dama ou um cavalheiro acostumados àquilo a que
se chama "o mundo", a sua visão de uma região remota e abandonada, bem
como dos seus habitantes, teria diferido grandemente da focalizada por essa
moça confinada à sua casa e à sua charneca. Sem dúvida teria sido mais
ampla: mais original ou mais verdadeira é que já não garanto. No que toca ao
cenário, dificilmente poderia ter sido tão sentido: Ellis Bell não o descreveu
como o faria alguém cuja vista ou gosto, apenas, encontrassem prazer em
fazê-lo; para ela, os seus morros nativos eram muito mais do que uma paisagem;
eram o lugar onde ela vivia e representavam tanto quanto as aves selvagens, suas habitantes, ou as urzes, seu produto. Portanto, as suas
descrições do cenário natural são exatamente o que deveriam ser, e nada mais do que isso.
No que toca à delineação do caráter humano, o caso é diferente. Devo
confessar que ela tinha pouco mais conhecimento prático dos camponeses
entre os quais vivia do que aquele que uma freira tem das pessoas que às
vezes atravessam os portões do seu convento. O temperamento de minha
irmã não era naturalmente sociável e as circunstâncias favoreciam e
estimulavam a sua tendência à reclusão; exceto para ir à igreja ou dar um
passeio pelos morros, ela raramente saía de casa. Embora olhasse com
benevolência para as pessoas à sua volta, nunca procurou relacionar-se com
elas e nem, com poucas exceções, as contatou. Não obstante, ela as conhecia:
conhecia os seus costumes, a sua maneira de falar, as histórias das suas
famílias; ouvia falar delas com interesse e podia falar delas com minúcia e
exatidão — embora com elas raramente trocasse uma palavra sequer. Daí se
segue que a sua mente reunira apenas, a respeito delas, aqueles terríveis e
trágicos traços de que, ao ouvir os anais secretos de qualquer rústica
vizinhança, a memória muitas vezes é compelida a registrar a impressão. A
sua imaginação, mais sombria do que otimista, mais poderosa do que
esportiva, encontrou nesses traços o material com que criou personagens
como Heathcliff, Earnshaw e Catherine. Ao criar esses seres, ela não sabia o
que tinha feito. Se o editor da sua obra, ao lê-la em manuscrito, estremeceu
sob a terrível influência de naturezas tão inexoráveis e implacáveis, de
espíritos tão perdidos e decaídos; se houve queixas de que a simples audição
de certas cenas tirava o sono à noite e perturbava a mente durante o dia, Ellis

Bell não compreendia a razão e acusava os queixosos de afetação. Tivesse
continuado viva e a sua mente ter-se-ia desenvolvido qual uma árvore forte,
mais direita, mais alta e com maior alcance, e os seus frutos, amadurecidos,
teriam atingido um sabor mais doce, um travo menos amargo. Mas, sobre
essa mente, apenas o tempo e a experiência poderiam operar: à influência de
outros intelectos, ela não se dobrava.
Tendo admitido que, por sobre grande parte de O Morro dos Ventos
Uivantes, paira "o horror das trevas"; que, na sua atmosfera elétrica e
tempestuosa, temos por vezes a sensação de respirar relâmpagos, permitamme
indicar alguns pontos em que a nebulosidade do dia e o sol eclipsado
ainda atestam a sua existência. Como modelo de verdadeira benevolência e
doméstica fidelidade, veja-se o personagem de Nelly Dean; como exemplo de
constância e ternura, note-se o de Edgar Linton. (Algumas pessoas acharão
que essas qualidades não brilham tanto encarnadas num homem quanto numa
mulher, mas Ellis Bell não admitia isso: nada a indignava mais do que a
insinuação de que a fidelidade e a clemência, a abnegação e a bondade,
virtudes apreciadas nas filhas de Eva, se tornavam fraquezas nos filhos de
Adão. Sustentava que a misericórdia e a indulgência eram os mais divinos atributos
do Ente Supremo que tanto fez o homem como a mulher, e que o que
dava glória ao Criador não podia desgraçar nenhum dos sexos da frágil
humanidade.) Há um humor seco, fleumático na delineação do velho Joseph e alguns vislumbres de graça e alegria animam a jovem Catherine. E a primeira
heroína desse nome não é destituída de uma certa e estranha beleza na sua
ferocidade, ou de honestidade, em meio à perversa paixão e à apaixonada
perversidade.

Heathcliff, é verdade, permanece irremível, nunca se afastando da sua trajetória rumo à perdição, desde que "aquela coisinha morena e de cabelo
negro, tão escura como se tivesse vindo do Diabo" foi pela primeira vez
colocada na cozinha da fazenda até o momento em que Nelly Dean
encontrou o terrível, rígido cadáver deitado de costas na cama apainelada,
com olhos arregalados, que pareciam "troçar da sua tentativa de fechá-los,
lábios abertos e aguçados dentes brancos, que também troçavam dela".
Heathcliff revela um único sentimento humano, que não é o seu amor
por Catherine; o qual é um sentimento selvagem e desumano, uma paixão que
poderia fervilhar e brilhar na má essência de um gênio do mal, um fogo que
poderia formar o centro tormentoso — a alma eternamente sofredora de um
magnata do mundo infernal; e, pela sua insaciável e interminável devastação,
acarreta a execução da sentença que o condena a levar consigo o inferno,
aonde quer que ele vá. Não; o único elo que liga Heathcliff à humanidade é a
sua mal confessada preocupação com Hareton Earnshaw — o jovem que ele
arruinou — e a sua insinuada estima por Nelly Dean. Não fossem esses traços
solitários, diríamos que ele não era nem um filho de cigana nem de Lascar, e
sim um vampiro, uma forma humana animada por uma alma de demônio.
Se é direito ou aconselhável criar seres como Heathcliff, eu não sei:
creio que não. Mas disto eu tenho a certeza: o escritor que possui o dom da
criação possui algo que ele nem sempre pode controlar — algo que, às vezes,
parece ter uma vontade independente. Ele pode estabelecer regras e
princípios, aos quais, talvez durante anos, esse seu dom se sujeite, em
obediência; mas, às vezes sem qualquer premonição de revolta, chega um dia
em que o seu dom não mais consente em "arar os vales ou ser amarrado ao  rego do arado", em que "ri da multidão da cidade e não se importa com os
gritos do condutor", em que, recusando-se a continuar fazendo cordas de
areia, começa a trabalhar em estatuária — e temos então um Plutão ou um
Júpiter, uma Tisífone ou uma Psique, uma sereia ou uma madona, conforme
o quiserem o Destino ou a Inspiração. Seja a obra disforme ou gloriosa,
terrível ou divina, pouca escolha nos fica, senão adotá-la. Quanto a vós — os
artistas —, a vossa colaboração foi trabalhar passivamente, obedecendo a
ditames que nem comunicastes nem pudestes questionar — que não poderíeis
pronunciar nas vossas preces, nem suprimir ou alterar segundo os vossos
caprichos. Se o resultado for atraente, o mundo elogiar-vos-á, a vós, que tão
pouco mereceis elogios; se ele for repulsivo, o mesmo mundo vos culpará,
embora tampouco sejais culpados.
O Morro dos Ventos Uivantes foi talhado numa oficina rude, com
ferramentas simples e materiais caseiros. O escultor encontrou um bloco de
granito numa charneca solitária; olhando para ele, viu como dali se podia tirar
uma cabeça, selvagem, escura, sinistra; uma forma modelada com pelo menos
um elemento de grandeza — a força. Trabalhou com um tosco cinzel e sem
mais modelo do que a visão das suas meditações. Com tempo e trabalho, o
bloco foi tomando forma humana; e lá está ele, colossal, escuro e cenhudo,
meio estátua, meio rocha: no primeiro consenso, terrível e semelhante a um
demônio; no segundo, quase belo, pois a sua coloração é um cinzento suave,
que o musgo da charneca reveste; e a urze, com suas campânulas floridas e a sua fragrância, cresce fielmente junto ao pé do gigante.
 Currer Bell
(Charlotte Brontë)
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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