domingo, 11 de outubro de 2015

Capítulo Quatorze


A campainha do telefone — ou mais precisamente o modo como recebi a
campainha do telefone — foi tão familiar quanto os estalos da cadeira ou o
zumbido de minha velha Selectric da IBM. Parecia vir de bem longe no
início, e depois aproximar-se como um trem apitando ao atravessar um
cruzamento.
Não havia nenhuma extensão no meu escritório nem no de Jo; o
telefone do andar de cima, um velho modelo de discagem rotativa, ficava
na mesa no corredor entre eles — que Jo costumava chamar de “terra-deninguém”.
A temperatura ali devia ser de pelo menos 32 graus, mas o ar
parecia fresco em minha pele depois do escritório. Eu estava tão oleoso de
suor que parecia uma versão ligeiramente barriguda dos rapazes
musculosos que via às vezes quando malhava.
— Alô.
— Mike? Acordei você? Estava dormindo? — Era Mattie, mas
diferente da Mattie da noite passada. Esta não se mostrava com medo nem
hesitava; parecia tão feliz que quase borbulhava. Era quase certamente a
Mattie que atraíra Lance Devore.
— Dormindo, não — eu disse. — Escrevendo um pouco.
— Sem essa! Pensei que tivesse se aposentado.
— Também pensei — falei —, mas talvez eu tenha sido um pouco
precipitado. O que é que há? Você parece nas nuvens.
— Acabo de falar ao telefone com John Storrow...
É mesmo? Afinal de contas, quanto tempo eu estive no segundo
andar? Olhei para o pulso e vi apenas um círculo pálido. Eram quinze para
as sardas e duas peles e meia, como costumávamos dizer quando éramos
garotos; meu relógio estava no andar de baixo no quarto norte,
provavelmente deitado na poça d’água do meu copo noturno derrubado.
— ... sua idade, e que ele pode intimar o outro filho!
— Ôô — falei. — Eu me perdi. Volte e explique mais devagar.
Ela o fez. Contar as duras notícias não tomou muito tempo
(raramente toma): Storrow ia aparecer no dia seguinte. Aterrissaria no
aeroporto do condado e se hospedaria no Lookout Rock Hotel, em Castle
View. Os dois passariam a maior parte da sexta-feira discutindo o caso.
— Ah, ele encontrou um advogado para você — disse ela. — Para ir a
seu depoimento. Acho que é de Lewiston.
Tudo dava a impressão de estar bem, porém, bem mais importante
que os fatos em si era Mattie ter recuperado a vontade de lutar. Até aquela
manhã (se ainda era manhã; a luz entrando pela janela acima do arcondicionado
quebrado sugeria que, se o fosse, não duraria muito) eu não
tinha percebido a que ponto a moça de vestido vermelho de verão e
asseados tênis brancos estava sombria. Até que ponto estava
profundamente mergulhada na crença de que perderia a filha.
— Isso é ótimo. Estou tão contente, Mattie.
— E foi você quem fez isso. Se estivesse aqui, eu lhe daria o maior
beijo que já recebeu na vida.
— Ele disse que você pode ganhar, não é?
— Disse.
— E você acreditou nele.
— Acreditei! — Então sua voz perdeu um pouco o ânimo. — Mas ele
não ficou exatamente encantado quando lhe contei que você veio jantar na
noite passada.
— Não. Acho que não deve ter ficado.
— Eu disse a ele que comemos no pátio e ele disse que só
precisávamos ficar dentro de casa sessenta segundos para que a fofoca
começasse.
— Eu diria que ele tem uma opinião insultantemente baixa dos
amorosos ianques — eu disse —, mas, é claro, ele é de Nova York.
Ela riu mais do que minha pequena brincadeira justificava, pensei. Por
um semi-histérico alívio por agora ter uma dupla de protetores? Porque o
assunto inteiro de sexo era agora algo delicado para ela no momento?
Melhor não especular.
— Ele não me atormentou demais com o assunto, mas deixou claro
que faria isso se repetíssemos a coisa. Mas, quando isso tudo terminar, vou
convidar você para uma verdadeira refeição. Você vai ter tudo que gostar,
exatamente do modo que gostar.
Tudo que gostar, exatamente do modo que gostar. E ponho a minha
mão no fogo, ela estava totalmente inconsciente de que o que dizia poderia
ter outro sentido. Fechei os olhos por um momento, sorrindo. Por que não
sorrir? Tudo que ela estava dizendo parecia fantástico, especialmente
depois que você desanuviava os confins da mente suja de Michael Noonan.
Dava a impressão de que poderíamos ter o esperado final de conto de
fadas, se mantivéssemos nossa coragem e nosso rumo. E se eu pudesse
me impedir de dar uma cantada numa garota jovem o suficiente para ser
minha filha... quero dizer, fora de meus sonhos. Se não pudesse, eu
provavelmente mereceria o que recebesse. Mas Kyra não. Ela era um
enfeite de capô em tudo aquilo, condenada a ir aonde o carro a levasse. Se
me ocorressem as ideias erradas, eu teria que me lembrar disso.
— Se o juiz mandar Devore para casa de mãos vazias, levo você ao
Renoir Nights em Portland e a convido para provar um rango francês de
nove pratos — eu disse. — Convido Storrow também. Banco até esse
espião legal que vou encontrar na sexta-feira. Portanto, quem é melhor do
que eu, hein?
— Ninguém que eu conheça — disse ela, com ar misterioso. — Vou
reembolsá-lo, Mike. Estou por baixo agora, mas não ficarei assim para
sempre. Mesmo que leve o resto de minha vida, vou reembolsá-lo.
— Mattie, você não precisa...
— Preciso — disse ela com uma tranquila veemência. — Preciso. E
hoje tenho que fazer outra coisa também.
— O quê? — Eu adorava o modo como Mattie falava naquela manhã,
tão feliz e livre, como uma prisioneira que tinha acabado de ser perdoada e
então libertada da cadeia, mas já estava olhando ansioso para a porta do
escritório. Não poderia fazer muito mais hoje, acabaria assado como uma
maçã, mas queria pelo menos mais uma página ou duas. Faça o que quiser,
as duas mulheres tinham dito no meu sonho. Faça o que quiser.
— Tenho que comprar o grande urso de brinquedo para Kyra que eles
têm no Wal-Mart de Castle Rock — disse ela. — Vou dizer a ela que é por
ser uma boa menina, já que não posso dizer que é por ela andar no meio da
estrada quando você estava vindo do outro lado.
— Mas não um preto — eu disse. As palavras saíram de minha boca
antes de eu saber sequer que estavam em minha cabeça.
— Ahn? — Ela pareceu surpresa e incerta.
— Eu disse para me trazer um — falei, mais uma vez as palavras
saindo e descendo pelo fio antes mesmo que eu soubesse estarem lá.
— Talvez traga — disse ela, parecendo divertida. Então seu tom
ficou sério novamente. — E se eu disse alguma coisa na noite passada que
deixou você infeliz, mesmo por um minuto, desculpe. Eu jamais...
— Não se preocupe. Não estou infeliz. Um pouco confuso, só isso. Na
verdade, já tinha esquecido sobre o encontro misterioso de Jo. — Uma
mentira, mas que me pareceu em boa causa.
— Provavelmente é o melhor. Não vou atrapalhar você. Volte ao
trabalho. É o que quer fazer, não é?
Fiquei espantado.
— Por que está dizendo isso?
— Não sei, eu só... — Ela parou. E de repente eu soube de duas
coisas: o que ela esteve prestes a dizer e o que não diria. Sonhei com você
na noite passada. Sonhei conosco juntos. Íamos fazer amor e um de nós
disse “Faça o que quiser”. Ou talvez, não sei, talvez nós dois tenhamos dito
isso.
Talvez, às vezes, os fantasmas estejam vivos — mentes e desejos
divorciados de seus corpos, impulsos destrancados flutuando invisíveis.
Fantasmas do id, espectros de lugares mais profundos.
— Mattie? Ainda está aí?
— Claro, pode apostar. Quer que eu mantenha contato? Ou você vai
saber de tudo que precisa de John Storrow?
— Se não mantiver contato, vou ficar aborrecido com você. Muito.
Ela riu.
— Então vou fazer isso. Mas não quando você estiver trabalhando.
Até logo, Mike. E mais uma vez, obrigada. Mesmo.
Eu disse até logo e fiquei por um momento contemplando o receptor
do antigo telefone de baquelita depois de ela desligar. Ela me ligaria e me
manteria a par das coisas, mas não quando eu estivesse trabalhando. Como
é que ia saber do momento? Simplesmente saberia. Como eu soube na
noite passada que ela estava mentindo quando disse que Jo e o homem
com os remendos nos cotovelos do blazer haviam andado em direção ao
estacionamento. Mattie estava usando short branco e uma frente única
quando me ligou, hoje não era exigido vestido ou saia porque era quartafeira
e a biblioteca fechava na quarta.
Você não sabe nada disso. Só está inventando.
Mas não estava. Se eu estivesse inventando, provavelmente a teria
vestido com algo um pouco mais sugestivo — um espartilho com cinta-liga
da Victoria’s Secret, talvez.
Esse pensamento puxou outro. Faça o que quiser, tinham dito elas.
Ambas. Faça o que quiser. E aquela frase eu conhecia. Enquanto estava em
Key Largo, tinha lido um ensaio sobre pornografia na Atlantic Monthly
escrito por uma feminista. Não tinha certeza de quem, apenas que não
havia sido Naomi Wolf nem Camille Paglia. A mulher era do tipo
conservador, e usou aquela frase. Sally Tisdale, talvez? Ou simplesmente
minha cabeça captou distorções de eco de Sara Tidwell? Fosse quem fosse,
ela afirmava que “faça o que eu quero” era a base erótica que atraía as
mulheres e “faça o que você quiser” era a base da pornografia que atraía os
homens. As mulheres fantasiam dizer a primeira frase em situações
sexuais; os homens fantasiam ter a última frase dita para eles. A autora
continuava: quando o sexo na vida real dá errado — às vezes tornando-se
violento, ou vergonhoso, ou às vezes apenas malsucedido do ponto de vista
da parceira feminina —, a pornografia é frequentemente a cúmplice não
indiciada na conspiração. O homem mostra-se propenso a virar
raivosamente para a mulher e gritar: “Você queria que eu fizesse isso! Pare
de mentir e admita! Você queria que eu fizesse isso!”
A autora afirmava que era isso que os homem esperavam ouvir no
quarto: faça o que quiser. Morda-me, sodomize-me, lamba entre meus
dedos dos pés, beba vinho no meu umbigo, passe-me uma escova de cabelo
e levante o rabo para que eu lhe dê uma surra, não importa. Faça o que
quiser. A porta está fechada e nós estamos aqui, mas na verdade só você
está aqui. Eu não tenho nenhuma carência, nenhuma necessidade, nenhum
tabu. Faça o que quiser nessa sombra, nessa fantasia, nesse fantasma.
Achei uma merda pelo menos cinquenta por cento do que a ensaísta
dizia; a pressuposição de que um homem só pode ter verdadeiro prazer
sexual transformando a mulher numa espécie de acessório de masturbação
diz mais sobre a observadora do que sobre os participantes. A mulher
exibia um monte de jargões e uma boa quantidade de espírito, mas por
baixo disso estava apenas repetindo o que Somerset Maugham, o velho
favorito de Jo, fez Sadie Thompson dizer em Chuva, uma história escrita
oitenta anos antes: todos os homens são porcos, porcos sujos e imundos.
Mas em regra geral não somos porcos, nem animais, ou pelo menos não
até que sejamos empurrados à extremidade final. E se somos empurrados
até ela, raramente a questão é sexo; geralmente é território. Já escutei
feministas argumentarem que para os homens sexo e território são
intercambiáveis, e isso está muito longe da verdade.
Voltei sem ruído ao escritório, abri a porta e atrás de mim o
telefone tocou de novo. E ali estava outra sensação familiar voltando para
mais uma visita depois de quatro anos: aquela raiva do telefone, o impulso
de simplesmente arrancá-lo da parede e atirá-lo pelo aposento. Por que o
mundo inteiro tinha que ligar quando eu estava escrevendo? Por que não
podiam... bem... me deixar fazer o que eu queria?
Dei um sorriso desconfiado e voltei ao telefone, vendo nele a
impressão molhada de minha mão de quando o atendi pela última vez.
— Alô.
— Eu disse para ficar visível enquanto estivesse com ela.
— Bom dia para você também, advogado Storrow.
— Você deve estar em outro fuso horário aí, companheiro. Aqui em
Nova York é uma e quinze.
— Jantei com ela — falei. — Do lado de fora. É verdade que li uma
história para a garotinha e ajudei-a a ir para cama, mas...
— Imagino que a essa hora metade da cidade pensa que vocês dois
estão trepando sem parar, e a outra metade vai pensar isso se eu tiver que
representá-la na corte superior. — Mas ele não parecia zangado de fato;
achei que dava a impressão de estar tendo um dia feliz.
— Eles obrigam você a dizer quem está pagando por seus serviços?
— perguntei. — Quero dizer, na audiência da custódia?
— Não.
— No meu depoimento de sexta-feira?
— Minha nossa, não. Durgin perderia toda a credibilidade como
guardião ad litem se enveredasse por essa direção. Além disso, eles têm
motivos para ficar longe do ângulo sexual. Estão centrados em Mattie como
negligente e talvez corrupta. Provar que mamãe não é uma freira deixou de
funcionar por volta da época em que Kramer versus Kramer chegou aos
cinemas. E esse não é o único problema que eles têm com o assunto. —
Agora parecia positivamente alegre.
— Conte.
— Max Devore tem 85 anos e é divorciado. Divorciado duas vezes.
Antes de conceder a custódia a um homem solteiro com a idade dele, uma
custódia secundária tem que ser levada em consideração. Na verdade, é a
questão isolada mais importante, além das alegações de maus-tratos e
negligência apontadas contra a mãe.
— Que alegações são essas? Você sabe?
— Não. Mattie também não, porque são invenções. Ela é um amor,
por falar nisso...
— É, sim.
— ... e acho que vai dar uma ótima testemunha. Mal posso esperar
para conhecê-la pessoalmente. Enquanto isso, não me desvie do caminho.
Estávamos falando sobre custódia secundária, não é?
— É.
— Devore tem uma filha que foi declarada mentalmente
incompetente em algum lugar da Califórnia. Em Modesto, acho. Não é uma
boa aposta para custódia.
— Não parece mesmo.
— O filho Roger tem... — Ouvi o tênue virar de páginas de um
caderno de anotações. — 54 anos. Portanto, também não é exatamente um
broto. Mesmo assim, um monte de sujeitos se tornou pai nessa idade hoje
em dia; é um admirável mundo novo. Mas Roger é homossexual.
Pensei em Bill Dean dizendo: gosta de rabo. Soube que há um monte
disso lá na Califórnia.
— Pensei que tivesse dito que sexo não tinha importância.
— Talvez devesse ter dito que sexo hetero não tem importância. Em
certos estados, e a Califórnia é um deles, sexo homo também não tem
importância... ou não muita. Mas esse caso não vai ser julgado na
Califórnia, e sim no Maine, onde o pessoal é menos esclarecido sobre até
que ponto dois homens casados, quer dizer, casados um com o outro,
podem criar bem uma garotinha.
— Roger Devore é casado? — Certo. Confesso. Agora eu mesmo
sentia um horrorizado contentamento. Envergonhava-me dele. Roger Devore
era apenas um sujeito vivendo sua vida, e poderia não ter tido muito ou
nada a ver com o atual empreendimento de seu idoso pai, mas mesmo
assim me senti contente.
— Ele e um designer de software chamado Morris Ridding se
amarraram em 1996 — disse John. — Encontrei a história na primeira
varrida de computador. E se o caso acabar na Corte, pretendo tirar disso o
máximo que puder. Não sei quando será, neste ponto é impossível prever,
mas se eu tiver uma chance de pintar um quadro daquela alegre garotinha
de olhos brilhantes crescendo com dois gays idosos que provavelmente
passam a maior parte de suas vidas nas salas de bate-papo de computador
especulando o que o capitão Kirk e sr. Spock podem ter feito depois que as
luzes se apagaram na área dos oficiais... bem, se eu tiver essa chance, vou
pegá-la.
— Parece um pouco mesquinho — eu disse. Ouvi-me falando no tom
de um homem que quer ser dissuadido ou talvez até que riam dele, mas
isso não aconteceu.
— Claro que é mesquinho. É como dar uma guinada para a calçada e
derrubar dois inocentes espectadores. Roger Devore e Morris Ridding não
lidam com drogas, não traficam menininhos, nem roubam velhas. Mas isso
é um caso de custódia, e custódia é ainda mais eficiente em transformar
seres humanos em insetos do que divórcio. Este caso não é tão ruim
quanto poderia ser, mas é ruim o bastante porque é tão evidente. Max
Devore apareceu em sua velha cidade natal por uma única e exclusiva
razão: comprar uma criança. Isso me deixa louco.
Sorri, imaginando um advogado que parecia o Hortelino Troca-letras,
em pé do lado de fora de uma toca de coelho com o nome DEVORE,
segurando uma espingarda.
— Meu recado para Devore vai ser muito simples: o preço da criança
simplesmente aumentou. Provavelmente para uma cifra maior do que ele
pode pagar.
— Se isso for à Corte... Você já disse isso duas vezes. Acha que há
uma chance de Devore simplesmente desistir do caso e ir embora?
— Uma bastante boa, sim. Eu diria uma excelente se ele não fosse
velho e acostumado a ter as coisas a seu modo. Há também a questão de
até que ponto ele ainda está suficientemente astuto para saber o que é
melhor para si mesmo. Vou tentar me encontrar com ele e seu advogado
enquanto estiver lá, mas até agora não tenho conseguido passar além da
secretária.
— Rogette Whitmore?
— Não, acho que ela está um degrau acima na escada. Ainda não
falei com ela. Mas vou falar.
— Tente Richard Osgood ou George Footman — eu disse. — Um
deles pode colocá-lo em contato com Devore ou com o advogado-chefe de
Devore.
— De qualquer modo, vou querer falar com essa Whitmore. Homens
como Devore tendem a ficar cada vez mais dependentes de seus
conselheiros próximos quando ficam mais velhos, e ela pode ser uma chave
para fazer com que ele desista da coisa. Pode também ser uma dor de
cabeça para nós, incentivá-lo a lutar; provavelmente porque ache mesmo
que ele possa vencer e porque quer ver as penas voarem. Além disso, pode
se casar com ele.
— Casar com ele?
— Por que não? Ele pode tê-la feito assinar um acordo pré-nupcial e
isso fortaleceria as chances dele. Eu não posso apresentar isso na corte, da
mesma forma que os advogados de Devore não podem tentar descobrir
quem contratou o advogado de Mattie.
— John, eu vi a mulher. Ela deve ter uns 70 anos.
— Mas é uma potencial jogadora mulher num caso de custódia
envolvendo uma garotinha, e é uma camada entre o velho Devore e o casal
gay. Temos que ter isso em mente.
— Tudo bem. — Olhei novamente para a porta do escritório, mas
não com tanto anseio. Chega um ponto em que você acabou por aquele dia,
quer queira quer não, e achei que tinha chegado a esse ponto. Talvez à
noite...
— O advogado que arranjei para você atende pelo nome de Romeo
Bissonette. — Fez uma pausa. — Isso lá pode ser um nome verdadeiro?
— Ele é de Lewiston?
— É, como é que você sabe?
— Porque no Maine, especialmente para as bandas de Lewiston, esse
nome pode ser verdadeiro. Devo ir falar com ele? — Eu não queria ir a
Lewiston. Até lá eram 80 quilômetros por estradas de duas pistas que
estariam agora apinhadas de campistas e trailers. Eu queria era nadar e
depois tirar uma longa soneca. Uma longa soneca sem sonhos.
— Não é necessário. Ligue e converse um pouco com ele. Na
verdade, ele é apenas uma rede de segurança. Fará objeções se o
questionamento se desviar do incidente da manhã de 4 de Julho. Sobre
aquele incidente conte a verdade, toda a verdade e nada mais que a
verdade. Entendeu?
— Sim.
— Converse com ele antes, depois o encontre na sexta na... espere...
está bem aqui... — As páginas do caderno de notas foram viradas
novamente. — Encontre com ele no Diner da rota 120 às 9h15. Café. Fale
um pouco, travem conhecimento, briguem para pagar a conta, talvez. Eu
vou estar com Mattie, obtendo o máximo de informações que puder.
Podemos querer contratar um detetive particular. Vou providenciar para que
as contas sejam remetidas a seu homem, Goldacre. Ele vai mandá-las para
seu agente, e o agente pode...
— Não — eu disse. — Mande Goldacre remetê-las diretamente para
cá. Harold é uma mãe judia. Quanto é que isso vai me custar?
— Setenta e cinco mil dólares, no mínimo — disse ele, sem nenhuma
hesitação. E também sem qualquer desculpa na voz.
— Não diga isso a Mattie.
— Tudo bem. Você já está se divertindo um pouco com isso, Mike?
— Sabe, acho que estou — eu disse pensativamente.
— Por 75 mil, deveria. — Nós nos despedimos e John desligou.
Enquanto recolocava o telefone no gancho, ocorreu-me que eu tinha vivido mais nos últimos cinco dias do que nos últimos quatro anos.
Dessa vez o telefone não tocou e percorri o caminho de volta ao escritório,
mas sabendo que estava definitivamente liquidado por aquele dia. Sentei
ante a IBM, apertei duas vezes a tecla que mudava de linha e estava
começando a escrever uma anotação para mim mesmo sobre o passo
seguinte no final da página em que trabalhava quando o telefone me
interrompeu. Que coisinha azeda é o telefone, e como recebemos dele
poucas noticiazinhas boas! Mas aquele dia foi uma exceção, e achei que
podia terminar o dia com um sorriso. Eu estava trabalhando, afinal de
contas — trabalhando. Parte de mim ainda se maravilhava de poder estar
sentado ali, respirando com facilidade, coração batendo continuamente no
peito, e sem nem o vislumbre de um ataque de ansiedade no meu horizonte de eventos pessoais. Escrevi:

[A SEGUIR: Drake para Raiford. Para no caminho da barraca de verduras para falar com o cara que toma conta dela, origem antiga, precisa de um nome bom e colorido. Chapéu de palha. Camiseta da DisneyWorld. Falam sobre Shackleford.] 

Virei o rolo até que a IBM cuspisse a página, coloquei-a no alto do
manuscrito e rabisquei uma nota final para mim mesmo: “Ligar para Ted
Rosencrief sobre Raiford.” Rosencrief era um marinheiro aposentado que
morava em Derry. Eu o empreguei como assistente de pesquisa para
diversos livros, usando-o, num projeto, para descobrir como o papel era
feito; em outro, para saber quais eram os hábitos migratórios de certos
pássaros comuns; e num terceiro, para levantar um pouquinho de
informações sobre a arquitetura das salas fúnebres das pirâmides. E quero
sempre “um pouquinho”, nunca “a porcaria da coisa toda”. Como escritor,
minha divisa sempre foi não me deixe confuso com os fatos. O tipo de
ficção Arthur Hailey está fora de meu alcance — e se não consigo lê-la, que
dirá escrevê-la. Só quero saber o suficiente para mentir com certo colorido.
Rosie sabia disso, e sempre havíamos trabalhado bem juntos.
Desta vez, eu precisava de um pouquinho sobre a Prisão Raiford, da
Flórida, e qual era a aparência da casa da morte lá. Também precisava de
um pouquinho sobre a psicologia dos serial killers. Achei que Rosie
provavelmente ficaria contente de ter notícias minhas... quase tão contente
quanto eu de finalmente ter um motivo para ligar para ele.
Peguei as oito páginas em espaço duplo que havia escrito e folheeias,
ainda surpreso com sua existência. O segredo teria sido o tempo todo
uma velha máquina de escrever IBM e uma bola de tipo Courier? Sem
dúvida era o que parecia.
O que saíra também era surpreendente. Haviam me ocorrido ideias
durante minhas férias sabáticas de quatro anos; quanto a isso, nenhum
bloqueio de escritor. Uma delas fora realmente fantástica, o tipo da coisa
que certamente teria se tornado um romance se eu ainda fosse capaz de
escrever romances. De meia dúzia a uma dúzia eram do tipo que eu
classificaria de “bastante boas”, significando que poderiam servir quando
necessário... ou se crescessem misteriosamente do dia para a noite, como
o pé de feijão de João. Às vezes isso acontece com as ideias. Na maior
parte eram vislumbres, pequenos “e se” que surgiam e sumiam como
estrelas cadentes enquanto eu estava dirigindo, caminhando ou
simplesmente deitado na cama à noite, à espera do sono.
O homem da camisa vermelha tinha sido um “e se”. Certo dia vi um
homem com uma vistosa camisa vermelha lavando a vitrine da loja
JCPenney em Derry — não muito tempo antes de Penney mudar-se para o
shopping. Um rapaz e uma moça passaram sob a escada dele... o que dava
muita má sorte, segundo a velha superstição. Mas aqueles dois não tinham
noção de onde estavam andando — estavam de mãos dadas, bebendo nos
olhos um do outro, tão completamente apaixonados como quaisquer dois
jovens na história do mundo. O rapaz era alto e, enquanto eu observava, o
topo de sua cabeça por um triz não esbarrou nos pés do lavador da vitrine.
Se isso tivesse acontecido, todo o trabalho teria que ser refeito.
O incidente transformou-se em história em cinco segundos. Escrever
O homem da camisa vermelha levou cinco meses. Só que, na verdade, todo
o livro foi feito num segundo “e se”. Imaginei uma colisão em vez de uma
quase-colisão. Tudo o mais se seguiu dali. O ato de escrever foi tarefa de
secretário.
A ideia em que eu trabalhava no momento não era uma das Ideias
Realmente Ótimas de Mike (a voz de Jo escreveu cuidadosamente as letras
maiúsculas), mas também não era uma “e se”. Assim como também não
se parecia muito com minhas velhas e compridas histórias góticas de
suspense; V. C. Andrews com um pau não estava visível em parte alguma
dessa vez. Mas a coisa parecia sólida, verdadeira, e naquela manhã saíra
tão naturalmente como a respiração.
Andy Drake, investigador particular em Key Largo, tinha 40 anos, era
divorciado e pai de uma garota de 3 anos. No início da história, ele se
encontrava na casa de Key West de uma mulher chamada Regina Whiting.
A sra. Whiting também tinha uma filhinha, com 5 anos. Era casada com um
construtor extremamente rico que desconhecia o que Andy Drake sabia: que
até 1992 Regina Taylor Whiting tinha sido Tiffany Taylor, uma call-girl de
luxo em Miami.
Eu escrevi até aí antes de o telefone começar a tocar. O que eu
sabia além desse ponto, o trabalho de secretário que faria nas várias
semanas vindouras (presumindo-se que minha recuperada capacidade de
trabalhar se mantivesse), era o seguinte:
Certo dia, quando Karen Whiting tinha 3 anos, o telefone tocou
enquanto ela e a mãe estavam sentadas na pequena piscina aquecida do
pátio. Regina pensou em pedir ao jardineiro para atendê-lo, mas depois
decidiu fazê-lo ela mesma — seu empregado habitual, resfriado, não estava,
e ela não se sentiu à vontade de pedir um favor a um estranho. Advertindo
à filha que ficasse sentadinha imóvel, Regina pulou da piscina para atender
ao telefone. Quando Karen levantou a mão para se abrigar dos borrifos
provocados pela saída da mãe, deixou cair a boneca na qual vinha dando
banho. Ao se curvar para pegá-la, seu cabelo ficou preso num dos
poderosos orifícios de sucção da piscina. (Ler sobre um acidente fatal como esse foi o que originalmente desencadeou a história em minha cabeça dois
ou três anos antes.)
O jardineiro, alguma não entidade de camisa cáqui enviado por uma
empresa de diaristas, viu o que estava acontecendo. Disparou pelo gramado,
mergulhou de cabeça na piscininha e arrancou a criança do fundo, deixando
cabelo e um bom naco de couro cabeludo tapando o jato ao fazê-lo. Então
aplicou respiração artificial na menina até que esta começasse a respirar
de novo. (Isso seria uma cena maravilhosa, cheia de suspense, e eu mal
podia esperar para escrevê-la.) Ele recusaria todos os oferecimentos de
recompensa por parte da mãe histérica e aliviada, embora acabasse por lhe
dar um endereço para que o marido dela pudesse entrar em contato com
ele. Contudo, tanto o endereço quanto seu nome, John Sanborn, se
revelariam falsos.
Dois anos depois a ex-prostituta com a respeitável segunda vida vê o
homem que salvou sua filha na primeira página de um jornal de Miami.
Identificado como John Shackleford, ele tinha sido preso pelo assassinatoestupro
de uma menina de 9 anos. A reportagem acrescenta que ele é
suspeito de mais de quarenta assassinatos, sendo que muitas das vítimas
eram crianças. “Vocês pegaram o Boné de Beisebol?”, gritaria um dos
repórteres numa entrevista coletiva. “John Shackleford é Boné de Beisebol?”
— Bom — eu disse, descendo a escada —, eles sem dúvida pensam
que é.
Estava ouvindo barcos demais no lago naquela tarde para pensar na
possibilidade de um banho nu. Botei o calção, pendurei uma toalha nos
ombros e comecei a descer o caminho — margeado de fulgurantes
lanternas de papel em meu sonho — para eliminar o suor dos pesadelos e
de meu inesperado trabalho da manhã.
Há 23 degraus feitos com dormentes entre Sara e o lago. Eu tinha
descido apenas quatro ou cinco antes da enormidade do que acabara de
acontecer me atingisse. Minha boca começou a tremer. As cores das
árvores e do céu misturaram-se ante meus olhos marejados. De dentro de
mim começou a sair uma espécie de gemido abafado. A força abandonou
minhas pernas e sentei num dormente com um baque. Por um momento,
achei que a coisa tivesse passado, provavelmente um alarme falso; então
comecei a chorar. Enfiei uma ponta da toalha na boca durante o pior da
crise, com medo de que o pessoal dos barcos no lago ouvissem os sons
saindo de mim, iam pensar que alguém estava sendo assassinado ali.
Chorei de dor pelos anos vazios que tinha passado sem Jo, sem
amigos e sem meu trabalho. Chorei de gratidão porque aqueles anos sem
trabalho pareciam terminados. Claro que ainda era muito cedo para dizer —
uma andorinha não faz verão e oito páginas de texto em estado bruto não
ressuscitam uma carreira —, mas pensei que bem poderiam fazê-lo. E
chorei de medo também, como fazemos quando uma péssima experiência
finalmente acaba ou quando escapamos por pouco de um terrível acidente.
Chorei porque percebi de repente que vinha caminhando por uma linha
branca desde que Jo tinha morrido, caminhando direto pelo meio da estrada.
Por algum milagre, eu fui arrastado para fora do perigo. Não tinha ideia de
quem tinha feito aquilo, mas, tudo bem, era uma pergunta que podia
esperar por outro dia.
Expulsei tudo aquilo de mim através do choro. Então desci até o lago
e investi contra ele com energia. A água fria no meu corpo superaquecido

foi mais do que boa: parecia uma ressurreição

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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