ia morrer”, contou meu pai certa vez, e não era um homem dado a
exageros. Disse que ele e minha mãe me enfiaram numa banheira de água
gelada certa noite, os dois no mínimo meio convencidos de que o choque
com o frio pararia meu coração; mas, como se estivessem completamente
convencidos de que eu arderia diante deles se não fizessem algo, tinham
resolvido tentar. Eu tinha começado a falar numa voz alta e
monotonamente discursiva sobre as figuras brilhantes que via na sala —
anjos que vinham me levar embora, pensou minha aterrorizada mãe —, e a
última vez que meu pai havia tirado minha temperatura, antes do mergulho
gelado, o mercúrio no velho termômetro retal Johnson & Johnson marcou 41
graus. Depois disso, contou ele, não ousou mais verificar a temperatura.
Não me lembro de nenhuma figura brilhante, mas de um estranho
período em que eu parecia estar no corredor de uma sala de parque de
diversões onde vários filmes diferentes eram exibidos ao mesmo tempo. O
mundo ficou elástico, inchando em lugares onde nunca tinha inchado antes,
ondulando em lugares que sempre tinham sido sólidos. Pessoas — na
maioria parecendo incrivelmente altas — entravam e saíam rapidamente de
meu quarto com pernas que davam a impressão de tesouras de desenho
animado. As palavras saíam de suas bocas estrondeando, como ecos
instantâneos. Alguém sacudiu sapatinhos de bebê diante de meu rosto.
Lembro-me de meu irmão Siddy enfiando a mão dentro da camisa e
fazendo repetidos ruídos de peido com o braço. A continuidade havia se
rompido. Tudo vinha em segmentos, estranhas salsichas de Viena num
cordão de veneno.
Entre aquela época e o verão em que voltei a Sara Laughs, tive as
doenças habituais, infecções e lesões, mas nunca nada como o interlúdio
febril dos meus 8 anos. Nunca esperei ter nada semelhante — acreditando,
acho eu, que tais experiências ocorrem unicamente com crianças, gente
com malária ou talvez àqueles que sofrem de colapsos mentais
catastróficos. Mas, na noite de 7 de julho e na manhã de 8 de julho, passei
por um período extraordinariamente parecido ao delírio da minha infância.
Sonhar, acordar, me mover — tudo era uma coisa só. Vou contar o melhor
que puder, mas nada do que eu possa dizer conseguirá transmitir a
estranheza daquela experiência. Era como se eu tivesse encontrado uma
passagem secreta escondida logo além da parede do mundo e tivesse me arrastado por ela.
Primeiro foi a música. Não Dixieland, porque não havia trombones, mas
como Dixieland. Uma espécie primitiva e vertiginosa de bebop. Três ou
quatro violões acústicos, uma gaita de boca, um baixo (ou talvez dois). Por
trás de tudo isso havia uma dura e feliz batida que não parecia soar como
se saísse de uma bateria verdadeira: soava como se alguém com muito
talento para a percussão batesse num monte de caixas. Então uma voz de
mulher se juntou ao resto — uma aguda voz de tenor, não muito masculina,
tornando-se áspera nas notas altas. Era risonha, urgente e sinistra ao
mesmo tempo, e eu soube imediatamente que ouvia Sara Tidwell, que
jamais tinha gravado um disco em sua vida. Eu ouvia Sara Laughs, e, cara,
ela estava excepcional.
You know we’re going back to MANderley,
We’re gonna dance on the SANderley,
I’m gonna sing with the BANderley,
We gonna ball all we CANderley —
Ball me, baby, yeah
[Você sabe que estamos voltando a MANderley,
Vamos dançar no SANderley,
Vou cantar com a BANderley,
Vamos girar na CANderley —
Dance comigo, meu bem, ié!]
Os baixos — sim, eram dois — irromperam num ritmo de dança de
celeiro com o ritmo na versão de Elvis de “Baby Let’s Play House”, e então
um solo de violão: Son Tidwell tocando aquela coisa arranhada.
As luzes cintilaram no escuro e então pensei em um som dos anos
1950, Claudine Clark cantando “Party Lights”. E ali estavam elas, lanternas
japonesas pendendo das árvores no caminho dos degraus de dormente
levando da casa para a água. Luzes de festa lançando círculos místicos de
esplendor no escuro: vermelhas azuis e verdes.
Atrás de mim, Sara cantava a passagem para sua canção de
Manderley — mamãe gosta dele maldoso, mamãe gosta dele forte, mamãe
gosta de festejar a noite inteira —, mas estava sumindo. Sara e os Red-Top
Boys tinham erguido o coreto da banda na entrada de carros por causa do
som, mais ou menos onde George Footman tinha estacionado quando veio
me entregar a intimação de Max Devore. Eu estava descendo para o lago
através de círculos de esplendor, passando pelas luzes da festa rodeadas
por mariposas de asas macias. Uma delas tinha conseguido entrar numa
lâmpada e lançava uma sombra monstruosa, como um morcego, contra as
nervuras do papel. As caixas de flores que Jo tinha colocado ao lado dos
degraus estavam cheias de rosas que se abriam de noite. À luz das
lanternas japonesas, pareciam azuis.
Agora a banda era apenas um tênue murmúrio; eu podia ouvir Sara
cantando, rindo o tempo inteiro como se a letra da canção fosse a coisa
mais engraçada que tinha ouvido, aquele negócio de Manderley-sanderleycanderley,
mas eu não podia perceber mais as palavras isoladamente. Muito
mais nítido estava o ondular do lago contras as rochas junto aos degraus, a
batida oca dos barris sob a plataforma flutuante e o grito de um
mergulhão-do-norte emergindo da escuridão. Alguém estava em pé na Rua à
minha direita, à beira do lago. Não conseguia ver seu rosto, mas podia ver o
blazer marrom e a camiseta que usava por baixo. As lapelas cortavam
algumas letras da mensagem, portanto, via-se:
ONT
ORMA
ER
De qualquer modo, eu sabia o que queriam dizer — em sonhos quase
sempre se sabe, não é? CONTAGEM NORMAL DE ESPERMATOZOIDES, o
especial mais nojento do Village Café que já tinha havido.
No quarto norte, eu sonhava tudo isso, e então acordo o suficiente
para saber que estava sonhando... só que foi como acordar dentro de outro
sonho, porque o sino de Bunter tocava loucamente e havia alguém em pé no
corredor. Sr. Contagem Normal de Espermatozoides? Não, ele não. A formasombra
caindo sobre a porta não era bem humana. Era afundada, os braços
indistintos. Sentei com o prateado tremor do sino, agarrando um punhado de
lençol solto contra minha cintura nua, certo de que era a coisa amortalhada
que estava ali — a que saíra do túmulo para me pegar.
— Por favor, não — eu disse numa voz seca e trêmula. — Por favor,
não, por favor.
A sombra na porta ergueu os braços. É só um baile no celeiro,
benzinho!, cantou a voz alegre e tempestuosa de Sara Tidwell. É só rodar e
rodar!
Deitei de costas e puxei o lençol por cima do rosto num ato infantil
de negação... e lá estava eu em nossa pequena língua de praia, apenas de
cueca. Meus pés mergulhavam na água até o tornozelo. Estava quente como
costuma ficar em pleno verão. Minha sombra difusa lançava-se de dois
modos: numa direção, pela pequena lua que cavalgava não muito longe
acima da água; e na outra, pela lanterna japonesa com a mariposa presa
dentro dela. O homem em pé no caminho se fora, mas deixara uma coruja
de plástico para marcar seu lugar. Ela me olhou com olhos gelados, de
olheiras douradas.
— Ei, irlandês!
Olhei para a plataforma flutuante. Jo estava ali em pé. Devia ter
acabado de sair da água, pois ainda estava pingando e o cabelo grudava-se
no rosto. Usava o biquíni da foto que eu tinha encontrado, cinza com
debrum vermelho.
— Há quanto tempo, irlandês, o que é que você acha?
— De quê? — respondi, embora soubesse.
— Disso! — Ela pôs as mãos nos seios e espremeu. A água escorreu
entre seus dedos e pelos nós das mãos.
— Vamos, irlandês — disse ela ao meu lado e acima de mim.
Vamos, seu patife, solte. — Eu a senti abaixar o lençol, puxando-o
facilmente dos meus dedos entorpecidos pelo sono. Fechei os olhos, mas
ela pegou minha mão e a colocou entre as suas pernas. Quando encontrei
aquela fenda aveludada e comecei a acariciá-la, ela começou a esfregar
minha nuca com os dedos.
— Você não é Jo — eu disse. — Quem é você?
Mas não havia ninguém ali para responder. Eu estava no bosque.
Estava escuro e os mergulhões-do-norte gritavam no lago. Eu andava pelo
caminho que levava ao estúdio de Jo. Não era um sonho; eu podia sentir o
ar frio contra minha pele e a mordida ocasional de uma pedra na sola ou no
calcanhar de meus pés nus. Um mosquito zumbiu junto à minha orelha, e o
espantei. Eu estava usando uma cueca Jockey e a cada passo uma enorme
e latejante ereção a esticava.
— Que droga é essa? — perguntei, à medida que o pequeno estúdio
de madeira rústica de Jo assomava na escuridão. Olhei atrás de mim e vi
Sara em sua colina, não a mulher, mas a casa, uma comprida casa de
campo projetando-se para o lago delimitado pela noite. — O que é que está
me acontecendo?
— Tudo bem, Mike — disse Jo. Estava em pé na plataforma, vendome
nadar até ela. Pôs a mão atrás da nuca como uma modelo de
calendário, erguendo mais os seios na frente única úmida. Como na
fotografia, eu podia perceber seus mamilos salientes na roupa. Eu estava
nadando de cuecas, e com a mesma ereção intensa.
— Tudo bem, Mike — disse Mattie no quarto norte, e abri os olhos.
Ela estava sentada ao meu lado na cama, calma e nua no fraco
fulgor da luz que ficava acesa de noite. Seu cabelo estava solto nos
ombros. Seus seios eram minúsculos, do tamanho de xícaras de chá, mas
mostravam bicos largos e distendidos. Entre suas pernas, onde minha mão
ainda pousava, havia um pompom de cabelo louro, macio como penugem.
Seu corpo estava envolvido em sombras como asas de mariposas, como
pétalas de rosas. Havia algo desesperadamente atraente nela ali sentada —
era como o prêmio que você sabe que jamais ganhará na ardilosa galeria de
tiro ou no jogo de argolas na feira do condado. Aquele que guardam na
prateleira de cima. Ela estendeu a mão por debaixo do lençol e dobrou os
dedos sobre o material esticado de minha cueca.
Está tudo bem, é só rodar e rodar, disse a voz de OVNI enquanto eu
subia a escada para o estúdio de minha mulher. Curvei-me, procurei a
chave debaixo do capacho e a peguei.
Subi a escada até a plataforma flutuante, molhado e pingando,
precedido por meu sexo aumentado — será que existe algo tão
involuntariamente cômico quanto um homem sexualmente excitado? Jo
parou no assoalho com seu maiô molhado. Puxei Mattie para a cama
comigo. Abri a porta do estúdio de Jo. Todas essas coisas aconteceram ao
mesmo tempo, entretecendo-se dentro e fora umas das outras como fios
de alguma corda ou cinto exótico. A coisa com Jo parecia mais um sonho, a
coisa no estúdio, eu atravessando o chão e olhando para minha velha IBM
verde, pelo menos. Mattie no quarto norte era algo entre sonho e realidade.
Na plataforma flutuante, Jo disse: “Faça o que quiser.” No quarto
norte Mattie disse: “Faça o que quiser.” No estúdio, ninguém teve que me
dizer nada. Lá eu sabia exatamente o que queria.
Na plataforma, curvei a cabeça, pus a boca num dos seios de Jo e
suguei o peito coberto de tecido com minha boca. O gosto era de tecido
úmido e lago molhado. Ela estendeu a mão para o local onde eu me
projetava para fora e dei um tapa afastando-lhe a mão. Se ela me tocasse,
eu gozaria imediatamente. Suguei, bebendo a corrente de água de algodão,
tateando com minhas mãos, primeiro acariciando seu traseiro e depois
puxando a parte de baixo de seu biquíni. Eu o tirei e ela caiu de joelhos.
Consegui também finalmente me livrar de minha cueca molhada e grudenta
e joguei-a sobre a parte do biquíni retirado. Então nos encaramos: eu, nu;
ela, quase.
— Quem era o cara no jogo? — ofeguei. — Quem era, Jo?
— Ninguém em especial, irlandês. Só outro saco de ossos.
Riu, depois se apoiou nos quadris e me olhou fixamente. Seu umbigo
era uma minúscula taça negra. Havia algo de cobra, esquisito e atrativo, em
sua postura.
— Tudo ali embaixo é morte — disse ela, e apertou meu rosto com
as palmas frias e os dedos brancos e ressequidos. Virou minha cabeça e
então a inclinou para que eu olhasse dentro do lago. Sob a água vi os corpos
em decomposição deslizando, empurrados por alguma corrente profunda. Os
olhos molhados deles olhavam fixamente. Seus narizes mordiscados pelos
peixes mostravam brechas. Suas línguas pendiam entre lábios brancos
como gavinhas de ervas aquáticas. Alguns mortos arrastavam pálidos
balões de entranhas de águas-vivas; outros eram pouco mais que ossos.
Mas nem mesmo a visão dessa flutante parada carnal conseguiu me
desviar do que eu queria. Livrei minha cabeça das mãos de Jo, empurrei-a
para o chão e finalmente acalmei o que estava tão duro e belicoso,
afundando-o profundamente. Seus olhos prateados de luar se ergueram para
mim, através de mim, e vi que uma pupila era maior do que a outra. Que
foi como seus olhos haviam se mostrado no monitor de TV quando eu a
identifiquei no necrotério do condado de Derry. Ela estava morta. Minha
mulher estava morta e eu fodia seu cadáver. Nem mesmo essa percepção
me deteve.
— Quem era ele? — gritei para ela, cobrindo sua carne gelada
estendida nas tábuas molhadas. — Quem era ele, Jo, pelo amor de Deus,
diga, quem era ele?
No quarto norte, puxei Mattie para cima de mim, saboreando a
sensação daqueles seios pequenos contra meu peito e a extensão de suas
pernas entrelaçadas. Então a rolei para a outra extremidade da cama. Senti
sua mão se estender para mim e a afastei com um tapa — se ela me
tocasse onde pretendia, eu gozaria num instante.
— Abra as pernas, depressa — eu disse, e ela obedeceu. Fechei os
olhos, cortando qualquer outra sensação em favor da que eu sentia. Investi,
depois parei. Fiz um pequeno ajuste, puxando meu pênis inchado com o lado
da mão, depois pressionei os quadris e deslizei para dentro dela como um
dedo numa luva forrada de seda. Ela me olhou com os olhos bem abertos,
então pôs a mão no meu rosto e virou minha cabeça.
— Tudo aí fora é morte — disse ela, como se apenas explicasse o
óbvio. Pela janela eu via a Quinta Avenida entre as ruas 50 e 60, todas
aquelas lojas chiques: Bijan e Bally, Tiffany, Bergdorf’s e Steuben Glass.
Então chegou Harold Oblowski, caminhando na direção norte e balançando
sua pasta de couro de porco (a que Jo e eu lhe demos de Natal no ano
anterior à morte dela). Além dele, levando uma bolsa da Barnes and Noble
pelas alças, estava a farta e bela Nola, sua secretária. Só que sua carne se
fora. Era apenas um sorridente esqueleto de cobra, vestindo um terno
Donna Karan e escarpim de crocodilo; ossos esqueléticos e cheios de anéis
agarravam as alças da bolsa, em vez de dedos. Os dentes de Harold
projetavam-se no seu habitual sorriso de agente, agora tão estendidos que
eram quase obscenos. Seu terno preferido, um jaquetão cinza-carvão de
Paul Stuart, adejava nele como uma vela à brisa fresca. À volta deles, dos
dois lados da rua, caminhavam os mortos-vivos — mamães-múmias
levando cadáveres de criancinhas pelas mãos ou empurrando-os em caros
carrinhos de bebês, porteiros zumbis, skatistas reanimados. Um negro alto
com as últimas tiras de carne pendendo de seu rosto como couro de cervo
curado passeava com seu esquelético alsaciano. Os motoristas de táxi
apodreciam ouvindo música hindu. Os rostos olhando dos ônibus que
passavam eram caveiras, cada qual usando sua própria versão do sorriso de
Harold — Oi, como vai, como está a mulher, os filhos, escrevendo algum
bom livro ultimamente? Os vendedores de amendoim ambulantes se
putrefaziam. Entretanto, nada disso podia me reprimir. Eu estava pegando
fogo. Escorreguei as mãos para baixo de suas nádegas, erguendo-a,
mordendo o lençol (notei sem qualquer surpresa que a padronagem era de
rosas azuis) até soltá-lo do colchão para me impedir de mordê-la no
pescoço, no ombro, nos seios, em qualquer lugar que meus dentes
pudessem alcançar.
— Diga quem era ele! — gritei para ela. — Você sabe, sei que você
sabe! — Minha voz estava tão abafada pela roupa de cama que enchia
minha boca que duvidei de que alguém pudesse ter me entendido. — Me diz
a verdade, sua vaca!
No caminho entre o estúdio de Jo e a casa, eu estava em pé no
escuro, com a máquina de escrever nos braços e aquela ereção de alcance
onírico pulsando abaixo de seu volume de metal — tudo aquilo pronto e
nada voluntário. A não ser pela brisa noturna. Então tive consciência de que
não estava mais sozinho. A coisa amortalhada estava atrás de mim, atraída
como as mariposas pelas luzes da festa. Ela riu — um riso descarado,
rouco de fumo, que só poderia pertencer a uma única mulher. Não vi a mão
que se estendeu em torno de meu quadril para me agarrar — a máquina de
escrever estava no caminho —, mas não precisava vê-la para saber que era
marrom. A mão espremeu, apertando lentamente, os dedos contorcendo-se.
— O que quer saber, benzinho? — perguntou ela atrás de mim. Ainda
rindo. Ainda provocando. — Quer mesmo saber? Quer saber ou quer sentir?
— Ah, você está me matando! — exclamei. A máquina de escrever,
uns 13 quilos mais ou menos de IBM Selectric, tremia para a frente e para
trás nos meus braços. Eu podia sentir meus músculos tensos como cordas
de violão.
— Quer saber quem ele era, benzinho? O homem ruim?
— Me faz gozar, sua vadia! — gritei. Ela riu de novo, aquele riso
áspero que era quase como uma tosse, e me apertou onde o aperto era
melhor.
— Agora fique parado — disse ela. — Fique parado, menino bonito, a
não ser que queira que eu me assuste e arranque essa sua coisa pelo... —
Perdi o apoio enquanto o mundo inteiro explodia num orgasmo tão profundo
e forte que achei que me racharia ao meio. Deixei minha cabeça cair para
trás como um homem sendo enforcado e ejaculei olhando para as estrelas.
Gritei, tive que fazê-lo, e no lago dois mergulhões-do-norte gritaram
também.
Ao mesmo tempo, eu estava na plataforma flutuante. Jo se fora, eu
conseguia ouvir ligeiramente o som da banda — Sara e Sonny e os Red-Top
Boys atacando o “Black Mountain Rag”. Sentei, aturdido e esgotado,
completamente oco. Não conseguia ver o atalho que levava a casa, mas
discernia seu curso em zigue-zague pelas lanternas japonesas. Minha cueca
estava ao lado num pequeno monte molhado. Peguei-a e comecei a vesti-la,
somente porque não queria nadar para a praia com aquilo na mão. Parei
com ela esticada entre os joelhos, olhando para meus dedos. Estavam
pegajosos de carne podre. Projetando-se por baixo de várias unhas, viam-se
bolos de cabelos arrancados. Cabelos de cadáver.
— Ah, meu Deus — gemi. — As forças me abandonaram. Eu
chapinhava em algo molhado no quarto da ala norte. Aquilo em que me
apoiava era quente, e no início pensei que fosse gozo. Mas a débil
luminosidade do abajur de cabeceira mostrou algo mais escuro. Mattie tinha
desaparecido e a cama estava cheia de sangue. Jazendo no meio daquela
piscina, enxerguei algo que à primeira vista pensei ser um naco de carne ou
um pedaço de órgão. Olhei mais atentamente e vi que era um bicho de
pelúcia, um objeto de pelo negro manchado de sangue. Deitei de lado,
encarando-o, querendo pular da cama e fugir do quarto, mas incapaz de
fazê-lo. Meus músculos tinham sofrido uma síncope. Com quem estive
mesmo fazendo sexo naquela cama? E o que fiz a ela? O quê, pelo amor de
Deus?
— Não acredito nessas mentiras — escutei minha própria voz
dizendo, e como se fosse um encanto, voltei com um tapa à minha unidade.
Não foi exatamente o que aconteceu, mas é a única maneira de expressar o
que mais ou menos se aproxima do que ocorreu, seja lá o que for. Eu
estava dividido em três eus — um na plataforma flutuante, um no quarto
norte, um no caminho —, e cada um deles sentiu aquele duro tapa, como se
o vento tivesse se transformado em mão. Depois a escuridão se precipitou
e nela o badalar contínuo e sonoro do sino de Bunter. Então o som
desapareceu, e eu com ele. Durante um pequeno período, não estive em lugar algum.
Voltei ao displicente gorjeio de pássaros das férias de verão e à peculiar
escuridão vermelha revelando que o sol brilhava através de minhas
pálpebras fechadas. Meu pescoço estava duro, a cabeça inclinada num
ângulo esquisito, as pernas dobradas desajeitadamente debaixo de mim, e
eu sentia calor.
Levantei a cabeça com um estremecimento, sabendo mesmo
enquanto abria os olhos que não estava mais na cama, nem na plataforma
flutuante, nem no caminho entre a casa e o estúdio. Debaixo de mim, viamse
as tábuas do assoalho, duras e inflexíveis.
A luz era ofuscante. Fechei novamente os olhos, bem apertados, e
gemi como um homem com ressaca. Eu os abri, protegidos por minhas
mãos em concha, dei-lhes tempo para se adaptarem, e então,
cautelosamente, retirei as mãos, sentei-me e olhei à volta. Eu me
encontrava no corredor do andar de cima, deitado sob o ar-condicionado
quebrado. O bilhete da sra. Meserve pendurado nele ainda era visível.
Pousada do lado de fora da porta de meu escritório estava a IBM verde,
com um pedaço de papel enfiado nela. Olhei para meus pés e vi que
estavam sujos. Agulhas de pinheiros grudavam-se em suas solas, e um dos
dedos estava arranhado. Levantei, cambaleei um pouco (minha perna direita
tinha ficado dormente), apoiei uma das mãos na parede e me firmei.
Examinei a parte de baixo do corpo. Eu usava a sunga com a qual tinha ido
para a cama, e não parecia ter havido um acidente dentro dela. Puxei o cós
e dei uma espiada para dentro. Meu pau tinha a aparência de sempre:
pequeno, macio, enrodilhado e adormecido em seu ninho de pelos. Se a
Loucura de Noonan tinha sido se aventurar pela noite, não havia nenhum
sinal disso agora.
— Parecia mesmo uma aventura — resmunguei. Limpei o suor da
testa com o braço. Estava sufocante. — Mas não do tipo sobre a qual já li
em Os Hardy Boys.
Então me lembrei do lençol ensopado de sangue no quarto norte, e do
bicho de pelúcia deitado de lado no meio dele. Não houve nenhuma sensação
de alívio ligada à lembrança, aquela sensação de graças-a-Deus-foi-apenasum-sonho
que se tem depois de um pesadelo especialmente mau. Parecia
tão verdadeiro como qualquer coisa que eu tinha sentido em meu delírio de
febre de sarampo... e todas aquelas coisas tinham sido reais, apenas
distorcidas por meu cérebro superaquecido.
Cambaleei para a escada e desci mancando, agarrando-me bem ao
corrimão para o caso de minha perna dormente ceder. No andar de baixo,
olhei atônito pela sala como se a visse pela primeira vez, e então manquei
pelo corredor da ala norte.
A porta do quarto estava entreaberta, e por um momento não
consegui me obrigar a empurrá-la totalmente e entrar. Sentia um medo
tremendo, com a mente tentando repassar um velho episódio de Alfred
Hitchcock Apresenta em que o homem estrangula a mulher durante uma
ausência alcoólica. Ele passa uma boa meia hora procurando por ela e
finalmente a encontra na copa, inchada, de olhos abertos. Kyra Devore era a
única criança com idade para ter um bicho de pelúcia com quem estive
recentemente, mas dormia tranquilamente sob a coberta de babado rosa
quando deixei sua mãe e voltei para casa. Era idiota achar que eu tinha
dirigido todo o caminho de volta à estrada Wasp Hill, provavelmente sem
usar nada a não ser minha cueca, que tinha...
O quê? Violado a mulher? Trazido a criança para cá? Enquanto eu
dormia?
Peguei a máquina de escrever durante o sono, não peguei? Está bem
ali na droga do corredor.
Grande diferença entre percorrer uns 30 metros pelo bosque e 8
quilômetros pela estrada para...
Eu não ia ficar ali ouvindo aquelas vozes se engalfinhando em minha
cabeça. Se não fosse maluco — e achava que não era —, escutar as idiotas
brigonas provavelmente me deixariam doido, e bem rapidinho. Estendi a
mão e empurrei a porta do quarto, abrindo-a totalmente.
Por um momento, vi de fato uma mancha de sangue tipo polvo
espalhando-se pelo lençol, tão verdadeiro e centrado naquilo estava o meu
terror. Então fechei os olhos bem apertados, depois os abri e olhei
novamente. Os lençóis estavam amarfanhados, o de baixo quase totalmente
solto. Eu via o revestimento de cetim acolchoado do colchão. Na beira da
outra extremidade da cama havia um travesseiro. O outro jazia
amarfanhado ao pé dela. O tapete pequeno — uma peça feita por Jo —
estava torto, e meu copo d’água virado na mesinha de cabeceira. O quarto
dava a impressão de ter sido palco de uma briga turbulenta ou de uma
orgia, mas não de um assassinato. Não havia nenhum sangue nem qualquer
animalzinho de pelúcia de pelo preto.
Ajoelhei-me e espiei debaixo da cama. Nada ali — nem mesmo os
bolos de poeira, graças a Brenda Meserve. Examinei o lençol de baixo
novamente, primeiro passando a mão em sua topografia amarrotada, depois
o alisando e tornando a prendê-lo por seus cantos elásticos. Grande
invenção, esses lençóis; se fossem as mulheres a distribuírem a Medalha
da Liberdade, em vez de um bando de políticos brancos que jamais haviam
feito uma cama ou lavado uma trouxa de roupa na vida, nessa altura dos
acontecimentos os caras que tinham bolado os lençóis ajustáveis já teriam
uma medalha, não havia dúvida. Numa cerimônia no Jardim das Rosas.
Com o lençol esticado, olhei de novo. Nenhum sangue, nem uma só
gota. Também não havia nenhuma mancha endurecida de sêmen. O sangue
de fato eu não esperava (pelo menos dizia isso a mim mesmo), mas o
segundo? No mínimo eu tive a polução noturna mais criativa do mundo —
um tríptico em que tinha fodido duas mulheres e sido agraciado com uma
punheta pela terceira, tudo ao mesmo tempo. Pensava ter também aquela
sensação de manhã-do-dia-seguinte, a que a gente tem quando o sexo da
noite anterior foi de arrasar. Mas se tinha havido fogos de artifício, onde
estava a pólvora queimada?
— No estúdio de Jo, provavelmente — falei para o quarto vazio e
ensolarado. — Ou no caminho entre lá e cá. Contente por você não tê-la
deixado na casa de Mattie Devore, meu chapa. Você não precisa ter um
caso com uma viúva quase adolescente.
Uma parte de mim discordou; uma parte de mim pensava que Mattie
Devore era exatamente aquilo de que eu precisava. Mas eu não tinha feito
sexo com ela na noite passada, assim como não tinha feito sexo com
minha mulher morta na plataforma flutuante ou recebido uma punheta de
Sara Tidwell. Agora que verificava não ter matado uma criancinha simpática
também, meus pensamentos voltaram à máquina de escrever. Por que eu a
peguei? Por que me dar a esse trabalho?
Ô, cara. Que pergunta boba. Minha mulher pode ter guardado
segredos de mim, talvez até tido um caso; pode haver fantasmas na casa;
pode existir um velho rico a 800 metros ao sul querendo me enfiar um
espeto afiado e depois quebrá-lo; pode haver alguns brinquedos em meu
humilde sótão, por falar nisso. Mas enquanto eu estava ali em pé num
brilhante raio de sol, olhando minha sombra na parede distante, só uma
ideia parecia ter importância: eu tinha ido até o estúdio de Jo e pegado
minha velha máquina de escrever, e só havia um motivo para fazer algo
semelhante.
Entrei no banheiro, querendo me livrar do suor do corpo e da sujeira
dos pés antes de qualquer outra coisa. Estendi a mão para a torneira do
chuveiro e parei. A banheira estava cheia de água. Ou eu a enchi por
alguma razão durante meu sonambulismo... ou alguma coisa o fez. Estendi
a mão para o tampão da banheira e então parei novamente, me lembrando
do instante no acostamento da rota 68, quando minha boca se encheu do
sabor de água fria. Percebi que estava esperando que aquilo ocorresse de
novo. Quando não ocorreu, abri o tampão da banheira para deixar a água
sair e liguei o chuveiro.
Eu poderia ter levado a Selectric para o andar de baixo, talvez até a
arrastado para o deck onde havia uma leve brisa subindo da superfície do
lago, mas não o fiz. Eu a trouxe por todo o caminho até a porta do
escritório, e meu escritório era onde trabalharia... se pudesse trabalhar.
Trabalharia lá mesmo que a temperatura sob o telhado chegasse a 48
graus... o que, por volta das três da tarde, poderia ocorrer.
O papel dentro da máquina era um velho recibo de papel-carbono rosa da Click!, a loja de artigos fotográficos de Castle Rock onde Jo
comprava seu material quando íamos lá. Eu o coloquei na máquina de modo
que o lado vazio se defrontasse com a bola de tipo Courier. Eu tinha
datilografado nele os nomes de meu pequeno harém, como se tivesse
tentado ou me esforçado de algum modo para relatar o sonho trifacetado mesmo enquanto ocorria:
Jo Sara Mattie Jo Sara Mattie Mattie Mattie Sara
Sara
Jo Johanna Sara Jo MattieSaraJo
Sob isso, em caixa-baixa:
contagem normal de espermatozoides contagem
normal tudo está cor-de-rosa
Abri a porta do escritório, entrei carregando a máquina de escrever e
coloquei-a em seu antigo lugar, abaixo do pôster de Richard Nixon. Puxei o
papelzinho rosa do rolo, fiz uma bola com ele e o joguei na cesta de papel.
Então peguei o plugue da Selectric e o enfiei na tomada do rodapé do
assoalho. Meu coração batia dura e rapidamente, como quando eu tinha 13
anos e subia a escada para o alto trampolim da piscina da Associação
Cristã de Moços. Subi aquela escada três vezes aos 12 anos e depois recuei
furtivamente; quando fiz 13 anos, já não podia ser covarde — tinha que
pular de verdade.
Pensei ter visto um ventilador escondido no canto do fundo do closet,
na caixa que tinha a inscrição APARELHOS. Comecei a andar naquela
direção, depois me virei de novo com um risinho áspero. Eu já tive um
momento de autoconfiança antes, não é? Sim. E depois as fitas de ferro
apertaram meu peito com força. Seria estúpido puxar o ventilador para fora
e descobrir que, no final das contas, eu não tinha nada a fazer naquela sala.
— Calma — falei —, vá com calma. — Mas eu não podia, assim
como o menino de peito estreito com aquele ridículo calção roxo também
não pôde quando andou até o final do trampolim, a piscina tão verde lá
embaixo, os rostos erguidos dos garotos e garotas tão pequenos, tão
pequenos.
Curvei-me para uma das gavetas do lado direito da mesa e a puxei
com tanta força que ela saiu inteiramente do encaixe. Tirei o pé nu de sua
zona de aterrissagem no último momento e emiti um jorro de riso alto e
sem humor. Havia meia resma de papel na gaveta. Suas bordas mostravam
aquela aparência ligeiramente quebradiça dos papéis guardados por muito
tempo. Só a vi tempo suficiente para lembrar que havia trazido meu próprio
suprimento — material muito mais novo que aquele. Deixei o papel onde
estava e coloquei a gaveta novamente em seu encaixe. Precisei de várias
tentativas para enfiá-la nos trilhos; minhas mãos tremiam.
Finalmente sentei na cadeira de minha mesa, ouvindo os mesmos
velhos estalos de quando ela recebia meu peso e o mesmo som surdo dos
rolimãs enquanto a rodei para a frente, ajustando as pernas no lugar sob a
mesa. Então encarei o teclado, transpirando abundantemente e ainda me
lembrando da piscina da ACM e do trampolim, como era flexível sob meus
pés enquanto caminhava por ele, me lembrando do cheiro de cloro e do
pulsar contínuo dos exaustores de ar: fuung-fuung-fuung-fuung, como se a
água tivesse sua própria pulsação secreta. Eu tinha ficado parado no final
do trampolim imaginando (e não pela primeira vez!) se o fato de a gente se
chocar com a água da maneira errada poderia causar uma paralisia.
Provavelmente não, mas se poderia morrer de medo. Havia casos
documentados assim no Acredite se Quiser, de Ripley, que me serviam de
ciência entre as idades de 8 e 14 anos.
Vá em frente!, gritou a voz de Jo. Minha versão da voz dela era
geralmente calma e controlada; desta vez era estridente. Pare de tremer e vá em frente!
Estendi a mão para o botão de ligar da IBM, lembrando agora do dia
em que joguei o Word 6.0 na lixeira do meu PowerBook. Adeus,
companheiro, tinha pensado.
— Tomara que funcione — eu disse. — Por favor.
Abaixei a mão e apertei o botão. A máquina foi ligada. A bola Courier
deu um giro preliminar, como uma dançarina de balé em pé nos bastidores,
esperando para continuar. Peguei um pedaço de papel, vi meus dedos
suados deixando marcas neles e não me incomodei. Coloquei-o na máquina,
centralizei-o, e escrevi
Capítulo Um
e esperei a tempestade desabar.
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