O suposto pensamento mais elevado é, de um modo geral, altamente
superestimado. Quando o problema aparece e passos têm que ser dados,
descubro que geralmente é melhor apenas ficar de lado e deixar os rapazes
no porão fazerem seu trabalho. O trabalho realizado ali embaixo é operário,
caras não sindicalizados com muitos músculos e tatuagens. O instinto é
sua especialidade, e só transmitem problemas para o andar de cima para real ponderação como último recurso.
Quando tentei ligar para Mattie Devore, aconteceu uma coisa extremamente peculiar — uma que não tinha nada a ver com fantasmas, tanto quanto eu
podia perceber. Em vez do ruído de dar linha, quando apertei o botão para
ligar o telefone sem fio, obtive silêncio. Então, exatamente quando pensava
que devia ter deixado o telefone no quarto norte fora do gancho, percebi que
não era um silêncio total. Distante como uma transmissão de rádio do
espaço sideral, vivo e grasnando como um pato animado, um sujeito com
uma boa dose de Brooklyn na voz cantava: “He followed her to school one
day, school one day, school one day. Followed her to school one day, which
was again the rule…”
Abri a boca para perguntar quem era, mas, antes que pudesse fazê-
lo, uma voz de mulher disse:
— Alô? — Parecia perplexa e desconfiada.
— Mattie? — Em minha confusão, jamais me ocorreu chamá-la de
algo mais formal, como srta. ou sra. Devore. Nem parecia estranho que eu
soubesse ser ela baseado numa única palavra, ainda que nossa única
conversa anterior tivesse sido relativamente breve. Talvez os rapazes do
porão reconhecessem a música de fundo e fizessem a conexão com Kyra.
— Sr. Noonan? — Ela parecia mais perturbada que nunca. — O
telefone nem chegou a tocar!
— Devo ter levantado o meu exatamente quando sua chamada foi
feita — falei. — Isso acontece de tempos em tempos. — Mas eu me
perguntei quantas vezes acontecia quando a pessoa ligando para você era
aquela para a qual você mesmo estava planejando ligar? Talvez muito
frequentemente, na verdade. Telepatia ou coincidência? De qualquer modo,
parecia quase mágico. Através da longa sala de estar, olhei nos olhos
vidrados de Bunter, o alce americano, e pensei: Sim, mas talvez este lugar
seja mágico agora.
— Talvez — disse ela em dúvida. — Em primeiro lugar, peço
desculpas por ligar, é uma presunção. Seu número não está na lista, eu sei.
Ah, não se preocupe com isso, pensei. Todo mundo tem esse velho
número agora. Na verdade, estou até pensando em colocá-lo nas Páginas
Amarelas.
— Eu o tirei de seu arquivo na biblioteca — continuou, parecendo
constrangida. — É onde trabalho. — Ao fundo, “Mary Had a Little Lamb”
tinha dado lugar a “The Farmer in the Dell”.
— Tudo bem — eu disse. — Sobretudo porque eu estava telefonando
para você.
— Para mim? Por quê?
— Primeiro as damas.
Ela deu uma risada breve e nervosa.
— Queria convidá-lo para jantar. Quer dizer, Ki e eu queremos
convidá-lo para jantar. Eu devia ter te convidado antes. O senhor foi
tremendamente bom conosco no outro dia. Pode vir?
— Sim — eu disse sem a mínima hesitação. — E te agradeço.
Temos algumas coisas para conversar, de qualquer modo.
Houve uma pausa.
— Mattie? Ainda está aí?
— Ele o arrastou para isso, não é? Aquele velho horrível. — Agora a
voz dela não soava nervosa, mas um tanto desfalecida.
— Bem, sim e não. Você pode argumentar que o destino me
arrastou, ou uma coincidência, ou Deus. Eu não estava lá naquela manhã por
causa de Max Devore; estava atrás do indefinível Villagebúrguer.
Ela não riu, mas sua voz se animou um pouco, e fiquei contente. As
pessoas que falam daquele modo morto, sem emoção, são geralmente
pessoas assustadas. Que às vezes têm sido completamente aterrorizadas.
— Ainda lamento ter te arrastado para o meu problema. — Achei que
ela podia começar a se perguntar quem estaria arrastando quem depois que
eu lhe passasse informações sobre John Storrow, e fiquei contente por não
ter que ter aquela conversa ao telefone.
— De qualquer modo, adoraria ir jantar. Quando?
— Essa noite seria muito em cima da hora?
— De modo nenhum.
— Maravilha. Mas temos que comer cedo, para a pequerrucha não
dormir em cima da sobremesa. Está bom às seis?
— Está.
— Ki vai ficar agitada. Não temos muita companhia.
— Ela não anda perambulando de novo, anda?
Achei que poderia ficar ofendida. Mas desta vez ela riu.
— Minha nossa, não. Toda aquela confusão no sábado a assustou.
Agora ela entra para me dizer que está indo do balanço no pátio ao lado
para a caixa de areia nos fundos. Mas tem falado um bocado no senhor. Ela
o chama de “aquele homem alto que me carregô”. Acho que se preocupou
com o fato de o senhor ter ficado zangado com ela.
— Diga a ela que não fiquei — falei. — Não, não. Eu mesmo digo a
ela. Posso levar alguma coisa?
— Uma garrafa de vinho? — perguntou, um pouco em dúvida. — Ou
talvez isso seja muito pomposo, eu ia só fazer hambúrgueres na grelha e
salada de batata.
— Levo uma garrafa de vinho não pomposa.
— Obrigada — disse ela. — É uma festa. Nunca temos companhia.
Fiquei horrorizado ao descobrir que eu também estava prestes a
dizer que achava uma festa, meu primeiro encontro em quatro anos e tal.
— Muito obrigado pela gentileza.
Ao desligar lembrei-me de John Storrow aconselhando-me a tentar
ficar visível quando estivesse com ela e a não fornecer material extra para
a fofoca da cidade. Se Mattie ia fazer hambúrgueres na grelha,
provavelmente estaríamos do lado de fora, onde as pessoas podiam ver que
estávamos vestidos... pelo menos na maior parte da noite. Contudo, em
algum momento ela teria a delicadeza de me convidar para entrar. Eu então
teria a delicadeza de entrar. Admiraria seu quadro de Elvis de veludo na
parede, ou suas placas comemorativas de Franklin Mint, ou fosse lá o que
tivesse como decoração do trailer; eu deixaria Kyra me mostrar seu quarto
e exclamaria, admirado, diante de sua extraordinária coleção de bichinhos
de pelúcia e de sua boneca favorita, se fosse preciso. Há todo tipo de
prioridades na vida. Algumas seu advogado pode entender, mas suspeito que
outras ele não pode.
— Estou lidando com isso direito, Bunter? — perguntei ao alce
empalhado. — Um urro para sim, dois para não.
Estava na metade do caminho do corredor levando à ala norte,
pensando apenas numa chuveirada fria quando, atrás de mim, muito
suavemente, ouvi um breve toque do sino pendurado no pescoço de Bunter.
Parei com a cabeça de lado, a camisa numa das mãos, esperando que o
sino tocasse de novo. Não tocou. Depois de um minuto, desci o resto do
corredor até o banheiro e deslizei para o chuveiro.
O Armazém Lakeview tem uma seleção muito boa de vinhos enfiada num
canto — talvez porque não haja muita demanda local por eles, mas os
turistas provavelmente compram uma boa quantidade — e escolhi uma
garrafa de Mondavi tinto. Era provavelmente um pouco mais cara do que
Mattie tinha em mente, mas eu podia arrancar a etiqueta de preço e ela
não veria a diferença. Havia uma fila no caixa, sobretudo pessoas com
camisetas úmidas sobre roupas de banho e areia da praia pública grudada
nas pernas. Enquanto esperava minha vez, meu olho esbarrou nos itens de
compra que ficam estocados no caixa, à espera de um consumidor
impulsivo. Entre eles havia várias bolsas de plástico com a etiqueta ÍMÃS,
cada bolsa mostrando o desenho de uma geladeira com as letras
magnéticas formando as palavras VOLTA JÁ . Segundo a informação dos
pacotes, havia dois jogos de consoantes em cada bolsa, MAIS VOGAIS
EXTRAS. Peguei dois conjuntos... e acrescentei um terceiro, achando que a filha de Mattie Devore provavelmente tinha a idade certa para o artigo.
Kyra me viu parando na grama em frente ao pátio da entrada, pulou do
deteriorado balancinho ao lado do trailer, disparou para perto da mãe e se
escondeu atrás dela. Quando me aproximei da churrasqueira portátil armada
ao lado dos degraus da frente de blocos de concreto, a criança que tinha
falado comigo tão destemidamente no sábado era apenas um olho azul que
espiava e uma mão rechonchuda agarrando uma dobra abaixo do quadril do
vestido de verão da mãe.
Duas horas, porém, provocaram mudanças consideráveis. Enquanto o
crepúsculo se aprofundava, Kyra sentou no meu colo na sala do trailer,
escutando cuidadosamente — embora com aturdimento crescente — eu ler
para ela a eternamente fascinante história de Cinderela. O sofá onde
sentávamos tinha um tom de marrom que por lei só pode ser vendido em
lojas com descontos, sendo, além disso, extremamente encalombado;
mesmo assim me senti envergonhado por imaginar o que encontraria no
trailer. Na parede acima e atrás de nós havia uma gravura de Edward
Hopper — aquela de um solitário balcão de almoço tarde da noite — e do
outro lado da sala, na pequena mesa com tampo de fórmica no canto da
cozinha, estava outra da série Girassóis de Vincent van Gogh. Mais ainda
que Hopper, ele parecia em casa no trailer tamanho duplo de Mattie Devore.
Eu não sabia por quê, mas era um fato.
— O sapatinho de vidro vai cortar o pezinho dela — disse Ki de um
modo estudado, ponderado.
— De modo nenhum — eu disse. — O vidro para os sapatinhos era
especialmente feito no Reino de Grimório. Macio e inquebrável, desde que a
gente não dê um agudo enquanto usá-los.
— Eu posso ter um par?
— Lamento, Ki — eu disse —, ninguém mais sabe fazer um
sapatinho de vidro. É uma arte perdida, como o aço de Toledo. — Fazia
calor no trailer e ela estava quente contra minha camisa, onde se instalou a
parte superior de seu corpo, mas eu não a removeria. Ter uma criança em
meu colo era fantástico. Do lado de fora, sua mãe estava cantando e
recolhendo os pratos da mesa de jogo que tínhamos usado para nosso
piquenique. Ouvi-la cantar era fantástico também.
— Continua, continua — disse Kyra, apontando para o retrato de
Cinderela no chão. A garotinha espiando nervosamente ao lado da perna da
mãe tinha desaparecido: a zangada menina de vou-pra-praia da manhã de
sábado também; havia ali apenas uma sonolenta criança bonita, inteligente
e confiante. — Antes que eu não possa segurar mais.
— Quer fazer xixi?
— Não — respondeu ela, olhando-me com algum desdém. — Além do
mais se diz u-ri-nar. Xixi não é palavra nenhuma, é o que Mattie diz. E eu já
fui. Mas se você não contar rápido essa história, vou cair no sono.
— Não se pode apressar histórias mágicas, Ki.
— Vai mais depressa que puder.
— Tá. — Virei a página. Lá estava Cinderela tentando ter espírito
esportivo, dando adeus para as irmãs nojentas indo ao baile vestidas como
estrelinhas numa discoteca. — Assim que Cinderela se despediu de Tammy
Faye e Vanna...
— Eram os nomes das irmãs?
— Os que eu inventei para elas, sim. Está bem?
— Claro. — Ajeitou-se mais confortavelmente no meu colo e pousou
a cabeça no meu peito de novo.
— Assim que Cinderela tinha se despedido de Tammy Faye e Vanna,
uma luz brilhante apareceu de repente no canto da cozinha. Dela saiu uma
linda senhora num vestido prateado. As joias em seu cabelo reluziam como
estrelas.
— A fada madrinha — disse Kyra taxativamente.
— É.
Mattie entrou levando a meia garrafa remanescente de Mondavi e os
instrumentos escurecidos do churrasco. Seu vestido de verão era de um
vermelho vivo. Usava nos pés tênis de cano curto tão brancos que pareciam
brilhar na penumbra. Seus cabelos estavam amarrados para trás e embora
não fosse a deslumbrante garota country-club que eu tinha previsto
brevemente, era muito bonita. Então ela olhou para Kyra e para mim,
ergueu as sobrancelhas e fez um gesto com os braços. Balancei a cabeça,
informando que nenhum de nós dois estava pronto ainda.
Continuei a ler enquanto Mattie ia lavar seus poucos utensílios de
cozinha, ainda cantarolando. No momento em que terminou com a espátula,
o corpo de Ki assumira um relaxamento adicional que reconheci logo — ela
tinha capotado. Fechei o Pequeno tesouro dos contos de fadas e o coloquei
ao lado de dois livros na mesinha de centro — fosse lá o que Mattie lia no
momento, pensei. Ergui os olhos e a vi olhando para mim da cozinha, e fizlhe
o sinal de V de vitória.
— Noonan, o vencedor por nocaute técnico no oitavo round — eu
disse.
Mattie enxugou as mãos numa toalha de pratos e se aproximou.
— Me dá ela aqui.
Em vez disso, levantei-me.
— Eu a levo. Para onde?
Apontou.
— À esquerda.
Levei a criança pelo corredor bastante estreito, obrigando-me a ter
cuidado para não bater com seus pés num lado e a cabeça no outro. Ao
final do corredor havia um banheiro, imaculadamente limpo. À direita, uma
porta fechada que imaginei dar para o quarto que Mattie um dia partilhou
com Lance Devore e onde agora dormia sozinha. Se havia um namorado que
passava a noite mesmo de vez em quando, Mattie teve êxito em apagar
sua presença do trailer.
Eu me esgueirei cuidadosamente pela porta à esquerda e olhei para a
pequena cama com a colcha rosa, a mesa com a casa de boneca, o retrato
da Cidade das Esmeraldas em uma parede, uma placa (feita em letras
adesivas brilhantes) em outra que dizia CASA KYRA. Devore queria tirá-la
dali, um lugar onde nada estava errado — onde, ao contrário, tudo estava
perfeitamente certo. Casa Kyra era o quarto de uma garotinha que estava
crescendo em harmonia.
— Coloque-a na cama e depois se sirva de outro copo de vinho —
disse Mattie. — Vou pôr o pijama nela e venho conversar com você. Sei que
tem coisas para falar comigo.
— Certo. — Pus Kyra na cama e depois me curvei um pouco mais,
querendo dar-lhe um beijo no nariz. Quase desisti, mas, depois, pensando
melhor, o fiz mesmo assim. Quando saí do quarto, Mattie sorria, portanto,
acho que estava tudo bem.
Eu me servi de um pouco mais de vinho, voltei à pequena sala de estar
com ele e olhei os dois livros ao lado da coleção de contos de fadas de Ki.
Sempre tenho curiosidade de saber o que as pessoas estão lendo; o único
insight melhor sobre elas está no conteúdo dos armários dos banheiros, e
remexer nos remédios e panaceias do anfitrião é malvisto pelas pessoas de
bem.
Os livros eram suficientemente diferentes para serem qualificados
de esquizoides. Um deles, com um marcador de carta de baralho
assinalando que três quartos haviam sido lidos, era a edição popular de
Testemunha silenciosa, de Richard North Patterson. Aplaudi seu bom gosto;
Paterson e DeMille são provavelmente os melhores romancistas populares
atuais. O outro, um volume de capa dura de algum peso, era Contos
reunidos de Herman Melville. Tão longe de Richard North Patterson quanto
possível. Segundo a tinta roxa e desbotada estampada na espessura das
páginas, aquele livro pertencia à Biblioteca Comunitária de Four Lakes. Era
uma pequena e adorável construção de pedra a uns 8 quilômetros ao sul de
Dark Score Lake, onde a rota 68 sai da TR e entra em Motton. Onde Mattie
trabalhava, imagino. Abri o livro na marcação, outra carta de baralho, e vi
que ela estava lendo “Bartleby”.
— Não entendo isso — disse ela atrás de mim, assustando-me tanto
que quase larguei o livro. — Eu gosto dele, é uma história bastante boa,
mas não tenho a mínima ideia do que significa. Mas na outra, agora, já até
imaginei quem fez a coisa.
— É um par estranho para ser lido paralelamente — falei, colocandoos
de volta no lugar.
— O Patterson estou lendo por prazer — disse Mattie. Entrou na
cozinha, olhou rapidamente (e com algum anseio, pensei) para a garrafa de
vinho, então abriu a geladeira e pegou uma jarra de refresco. Na porta da
geladeira estavam as palavras que a filha já tinha reunido da bolsa de ímãs:
KI e MATTIE e HOHO (Papai Noel, imaginei). — Bem, estou lendo os dois
por prazer, eu acho, mas vamos discutir “Bartleby” num pequeno grupo ao
qual pertenço. Nós nos encontramos às quintas à noite na biblioteca. Ainda
tenho que ler dez páginas.
— Um círculo de leitores.
— Ahã. Conduzido pela sra. Briggs. Ela o formou muito antes de eu
nascer. É a bibliotecária-chefe de Four Lakes, você sabe.
— Sei. Lindy Briggs é cunhada de meu caseiro.
Mattie sorriu.
— Mundo pequeno, não é?
— Não, o mundo é grande, mas a cidade é pequena.
Ela começou a se apoiar no balcão com o copo de refresco, mas
teve outra ideia.
— Por que não sentamos lá fora? Desse modo qualquer um que
passar vai ver que ainda estamos vestidos e que nada está acontecendo
aqui dentro.
Olhei para ela, espantado. Ela me encarou com uma espécie de bom
humor cínico. Não era uma expressão que parecia se encaixar muito em
seu rosto.
— Posso ter apenas 21 anos, mas não sou burra — disse. — Ele está
me observando. Sei disso, e você também, provavelmente. Em outra noite,
poderia ficar tentada a dizer foda-se se ele não aguentasse uma piada, mas
está mais fresco lá fora e a fumaça da churrasqueira vai manter a maior
parte dos insetos longe. Eu o choquei? Se choquei, desculpe.
— Não, não. — Ela me chocara, um pouco. — Não precisa se
desculpar.
Levamos nossas bebidas para os degraus não-muito-firmes do bloco
de concreto de cinzas e sentamos lado a lado em duas espreguiçadeiras. À
nossa esquerda, os carvões da churrasqueira fulguravam num rosa suave na
escuridão crescente. Mattie se recostou, colocou a curva gelada do copo
brevemente na testa, depois bebeu a maior parte do que tinha sobrado, os
cubos de gelo batendo contra os dentes com um clique e um chacoalhar.
Os grilos cantavam nos bosques atrás do trailer e do outro lado da estrada.
Mais distante, na rodovia 68, eu podia ver as brilhantes luzes fluorescentes
brancas por cima da ilha de combustível do Armazém Lakeview. O assento
de minha cadeira estava um pouco folgado, as tiras trançadas um pouco
esfarrapadas, e a velha cadeira se inclinava fortemente para a esquerda,
mas não havia nenhum outro lugar em que eu preferisse estar no momento.
A noite se revelou um pequeno e calmo milagre... pelo menos até agora.
Ainda tínhamos que falar de John Storrow.
— Fiquei contente que tenha vindo na terça — disse ela. — As noites
de terça são difíceis para mim. Estou sempre pensando no jogo de bola lá
no Warrington’s. A essa altura os rapazes estão escolhendo o
equipamento... os bastões, as bases e as máscaras de apanhador, e
colocando de volta no armário do estoque atrás da base do batedor.
Tomando suas últimas cervejas e fumando os últimos cigarros. Foi lá que
conheci meu marido, você sabe. Tenho certeza de que já lhe contaram tudo.
Não conseguia ver nitidamente seu rosto, mas podia ouvir o tênue
toque de amargura que se introduziu em sua voz, e imaginei que ainda
exibia a expressão cínica. Esta era velha demais para Mattie, mas concluí
que a garota tinha chegado a ela de modo bastante honesto. Contudo, se
não tivesse cuidado, aquilo podia se enraizar e crescer.
— Ouvi uma versão de Bill, sim, o cunhado de Lindy.
— Nossa história é distribuída a varejo. Pode-se consegui-la no
armazém, ou no Village Café, ou na oficina daquele velho falastrão... que
meu sogro resgatou do Western Savings, por falar nisso. Ele interferiu
pouco antes que o banco pudesse executar a dívida. Agora, Dickie Brooks e
seus camaradas acham que Max Devore é Jesus em carne e osso. Espero
que você tenha tido uma versão mais justa do sr. Dean do que teve na
oficina. Deve ter tido, ou não teria se arriscado a comer hambúrgueres com
Jezebel.
Queria me afastar daquilo, se pudesse — sua raiva era
compreensiva, mas inútil. Claro que para mim era mais fácil ver isso; não
era minha filha que tinha sido transformada no lenço amarrado no centro da
corda de um cabo de guerra.
— Ainda jogam softbol no Warrington’s? Apesar de Devore ter
comprado o lugar?
— Jogam, sim. Ele vai ao campo em sua cadeira de rodas
motorizada toda terça à noite e assiste ao jogo. Há outras coisas que tem
feito desde que voltou para cá que são apenas uma tentativa de comprar a
boa opinião da cidade, mas acho que gosta genuinamente dos jogos de
softbol. A tal mulher, Whitmore, também vai. Leva um tanque de oxigênio
extra num pequeno carrinho de mão vermelho com um pneu de lateral
branca na frente. Guarda também uma luva de interceptador ali, caso algum
arremesso de falta passe por cima da barreira e chegue até onde ele fica.
Ele pegou um quase no começo da estação, eu soube, e recebeu uma
ovação de pé dos jogadores e do pessoal que tinha vindo assistir.
— Ir aos jogos o põe em contato com o filho, não é?
Mattie sorriu com desânimo.
— Não acho que Lance chegue a passar pela cabeça dele, não quando
está no campo. Eles jogam duramente em Warrington, deslizam para a base
com os pés levantados, pulam em cima de arbustos espinhosos para
apanhar bolas altas, xingam um ao outro quando fazem algo errado, e é
disso que o velho Max Devore gosta, é por isso que nunca perde um jogo de
terça à noite. Gosta de vê-los deslizar e levantar sangrando.
— É como Lance jogava?
Ela pensou cuidadosamente a respeito.
— Ele jogava duro, mas não era doido. Estava lá apenas para se
divertir. Todos nós estávamos. Nós, mulheres... merda, nós, garotas, a
mulher de Barney Therriault, Cindy, tinha apenas 16 anos... ficávamos atrás
da barreira do lado da primeira base, fumando cigarros ou sacudindo
pompons para manter os insetos longe, animando nossos rapazes quando
faziam algo bom, rindo quando faziam algo idiota. Dividíamos refrigerantes
ou uma lata de cerveja. Eu adorava os gêmeos de Helen Geary e ela beijava
Ki debaixo do queixo até que ela risse. Às vezes descíamos até o Village
Café depois, Buddy fazia pizzas e os perdedores pagavam. Todos amigos de
novo, você sabe, depois do jogo. Ficávamos sentados lá, rindo, berrando e
soprando os invólucros dos canudos em torno, alguns dos rapazes meio de
pileque, mas ninguém mau. Naquela época eles deixavam toda a maldade no
campo de jogo. E sabe de uma coisa? Nenhum deles veio me visitar. Nem
Helen Geary, que era minha melhor amiga. Nem Richie Lattimore, que era o
melhor amigo de Lance; os dois conversavam sobre rochas, pássaros e os
tipos de árvores que havia do outro lado do lago por horas a fio. Eles
vieram ao funeral e por algum tempo depois, e então... sabe como foi?
Quando eu era garota, nosso poço secou. Por algum tempo, a gente
conseguia um fio d’água quando abria a torneira, mas depois havia só ar. Só
ar. — O cinismo tinha sumido e havia apenas mágoa em sua voz. — Vi
Helen no Natal, e prometemos nos reunir para o aniversário dos gêmeos,
mas nunca fizemos isso. Acho que ela está com medo de se aproximar de
mim.
— Por causa do velho?
— Quem mais? Mas, tudo bem, a vida continua. — Ela se endireitou,
bebeu o resto do refresco e pôs o copo de lado. — E você, Mike? Voltou
para escrever um livro? A TR vai ser conhecida através de você? — Aquele
era o bon mot local que eu lembrava com uma quase dolorosa ferroada de
nostalgia. Dizia-se que os habitantes locais com grandes planos batizariam
a TR com seu nome.
— Não — eu disse, e então fiquei perplexo ao dizer: — Não faço
mais isso.
Acho que esperava que ela desse um pulo, derrubando a cadeira e
emitindo um grito curto de negação horrorizada. Tudo isso diz bastante a
meu respeito, suponho, e coisas nada lisonjeiras.
— Você se aposentou? — perguntou ela, parecendo calma e
notavelmente pouco horrorizada. — Ou é um bloqueio de escritor?
— Bem, certamente não é uma aposentadoria escolhida. — Percebi
que a conversa tinha tomado um rumo divertido. Eu tinha ido antes de tudo
para lhe vender a ideia de John Storrow, enfiar John Storrow por sua
garganta abaixo, se fosse preciso, e em vez disso estava, pela primeira
vez, discutindo minha incapacidade de trabalhar. Pela primeira vez com
alguém.
— Então é um bloqueio.
— Eu costumava pensar isso, mas agora não tenho certeza. Acho
que os romancistas vêm equipados com certo número de histórias para
contar... São construídas dentro do software. E quando elas desaparecem,
desaparecem.
— Duvido — disse Mattie. — Talvez você escreva, agora que está
aqui. Talvez você tenha voltado em parte por isso.
— Talvez tenha razão.
— Está com medo?
— Às vezes. Sobretudo a respeito do que farei no resto da minha
vida. Não sei fazer barcos dentro de garrafas e era minha mulher quem
tinha jeito com as plantas.
— Também tenho medo — disse ela. — Um medo danado. O tempo
inteiro agora, parece.
— De que ele ganhe a custódia? Mattie, é isso que eu...
— O caso da custódia é só uma parte — falou. — Tenho medo só de
ficar aqui, na TR. Começou bem cedo neste verão, muito depois de eu
saber que Devore pretendia levar Ki para longe de mim, se pudesse. E está
ficando pior. De certo modo, é como observar nuvens carregadas de chuva
se amontoando sobre New Hampshire e então se empilharem acima do
lago. Não posso colocar a coisa de modo melhor, a não ser... — Ela se
moveu, cruzando as pernas e então se curvando para a frente para puxar a
saia para a canela, como se estivesse com frio. — A não ser que acordei
várias vezes ultimamente com a certeza de que não estava sozinha no
quarto. Uma vez, tive a certeza de que não estava sozinha na cama. Às
vezes é só uma sensação, como uma dor de cabeça, só que nos nervos, e
às vezes acho que ouço um sussurro ou um choro. Uma noite fiz um bolo,
cerca de duas semanas atrás, e me esqueci de guardar a farinha. No dia
seguinte o barrilzinho estava virado e a farinha estava espalhada pela
bancada da cozinha. Alguém tinha escrito “olá” nela. No início pensei que
fosse Ki, mas ela disse que não. Além disso, não era a letra dela, a dela é
mais desordenada. Não sei nem se Kyra poderia escrever olá. Oi, talvez,
mas... Mike, você acha que ele poderia mandar alguém para tentar me
assustar, acha? Quer dizer, isso é só bobagem, não é?
— Não sei — respondi. Pensei em algo dando pancadas no material
isolante na escuridão enquanto estava em pé na escada. Pensei no OI
formado com ímãs na porta de minha geladeira e numa criança soluçando
no escuro. Senti minha pele mais fria; dava a impressão de estar
entorpecida. Uma dor de cabeça nos nervos, aquilo era bom, era
exatamente como a gente se sentia quando algo esticava a mão além do
mundo real e tocava a gente na nuca.
— Talvez sejam fantasmas — disse ela, e sorriu de um modo
incerto, mais assustado que divertido.
Abri a boca para lhe contar o que vinha acontecendo comigo em Sara
Laughs e fechei-a novamente. Havia uma nítida escolha a ser feita ali:
podíamos derivar para uma discussão sobre a paranormalidade ou podíamos
voltar ao mundo visível. Aquele em que Max Devore tentava roubar uma
criança.
— É — eu disse. — Os espíritos estão prestes a falar.
— Gostaria de poder ver seu rosto melhor. Tinha alguma coisa nele
agora. O que era?
— Não sei — respondi. — Mas neste exato momento acho que é
melhor falarmos de Kyra. Certo?
— Tudo bem. — No tênue fulgor da churrasqueira, eu podia vê-la
acomodando-se na cadeira, como se para receber um golpe.
— Fui intimado a dar um depoimento em Castle Rock na sexta-feira.
Diante de Elmer Durgin, que é o guardião ad litem de Kyra...
— Aquele sapo pomposo não é nada de Kyra! — explodiu ela. — Está
no bolso de meu sogro, exatamente como Dickie Osgood, o corretor
imobiliário favorito do velho Max! Dickie e Elmer Durgin bebem juntos no
Mellow Tiger, ou pelo menos faziam isso até que esse negócio começou.
Então alguém provavelmente disse a eles que aquilo não ficava bem e eles
pararam.
— Os papéis foram entregues por um adjunto chamado George
Footman.
— Apenas mais um dos suspeitos habituais — disse Mattie numa
voz fraca. — Dickie Osgood é uma serpente, mas George Footman é um
cão que toma conta do lixo. Ele foi suspenso de seu trabalho de tira por
duas vezes. Mais uma vez e vai poder trabalhar para Max Devore em tempo
integral.
— Bem, ele me assustou. Tentei não mostrar isso, mas ele me
assustou. E as pessoas que me assustam me deixam zangado. Liguei para
meu agente em Nova York e contratei um advogado. Um especializado em
custódia infantil.
Tentei ver como ela estava recebendo aquilo e não consegui, embora
estivéssemos sentados bastante próximos. Mas ela ainda mostrava aquele
olhar fixo, como uma mulher que espera receber alguns golpes duros. Ou
talvez para Mattie os golpes já tinham começado a ser desfechados.
Lentamente, não me permitindo correr, contei minha conversa com
John Storrow. Enfatizei o que Storrow tinha dito sobre igualdade sexual —
que provavelmente seria uma força negativa em seu caso, tornando mais
fácil para o juiz Rancourt levar Kyra embora. Também sublinhei fortemente
que Devore poderia ter todos os advogados que quisesse — sem mencionar
testemunhas solidárias, com Richard Osgood correndo pela TR e espalhando
a grana de Devore —, mas que o tribunal não era obrigado a tratá-la como
uma casquinha de sorvete. Terminei dizendo-lhe que John queria falar com
um de nós no dia seguinte às 11, e que deveria ser ela. Então esperei. O
silêncio caiu, quebrado apenas por grilos e pelo tênue movimento de algum
ruidoso caminhão de criança. Na rota 68, as lâmpadas fluorescentes
brancas apagaram-se quando o mercado de Lakeview fechava outro dia de
comércio de verão. Eu não gostava da quietude de Mattie; parecia o prelúdio
de uma explosão. Uma explosão ianque. Tentei ficar calmo e esperei que
me perguntasse o que é que me dava o direito de se intrometer em seus
assuntos.
Quando finalmente falou, sua voz era baixa e derrotada. Magoava
ouvi-la falar daquele modo, mas, da mesma forma que a expressão cínica
no rosto anteriormente, não era de surpreender. E endureci-me contra ela o
melhor que pude. Ei, Mattie, o mundo é duro. Faça sua escolha.
— Por que é que você faria isso? — perguntou ela. — Por que
contrataria um advogado caro de Nova York para assumir o meu caso? É
isso que está oferecendo, não é? Tem que ser, porque eu certamente não
posso contratá-lo. Recebi 30 mil dólares do seguro quando Lance morreu, e
tive sorte por isso. Foi uma apólice que ele tinha comprado de um dos
amigos de Warrington, quase como uma brincadeira, mas sem ela eu teria
perdido o trailer no inverno passado. Eles podem adorar Dickie Brooks no
Western Savings, mas não dão nada por Mattie Stanchfield Devore. Depois
dos impostos, ganho cerca de cem dólares por semana na biblioteca.
Portanto, você está se oferecendo para pagar. Certo?
— Certo.
— Por quê? Você nem nos conhece.
— Porque... — Calei-me. Lembrei-me de querer que Jo interferisse
naquele momento, pedindo à minha mente que fornecesse a voz dela para
que eu pudesse passá-la à Mattie através da minha. Mas Jo não apareceu.
Eu estava num voo solo.
— Porque agora eu não realizo nada que faça diferença — eu disse
finalmente, e mais uma vez as palavras me deixaram atônito. — E eu
conheço você. Já comi sua comida, li uma história para Ki e ela dormiu no
meu colo... e talvez eu tenha salvo a vida dela no outro dia quando a tirei
da estrada. Nunca vamos saber ao certo, mas talvez eu a tenha salvo. Você
sabe o que os chineses dizem a respeito disso?
Eu não esperava uma resposta, a pergunta era mais retórica do que
real, mas ela me surpreendeu. E não pela última vez.
— Se você salva a vida de alguém, é responsável por ela.
— É. É também sobre o que é justo e o que é certo, mas penso que
é principalmente sobre querer participar de algo onde faço a diferença. Olho
para trás, para esses quatro anos desde que minha mulher morreu, e não
vejo nada neles. Nem mesmo um livro onde Marjorie, a tímida datilógrafa,
conhece o belo estranho.
Ela ficou ali pensando, observando um caminhão carregado de polpa
de madeira passar na rodovia, com os faróis ofuscantes e sua carga de
toras oscilando de um lado para o outro como os quadris de uma mulher
acima do peso.
— Não se prenda a nós — disse ela. — Não nos apoie como ele apoia
seu time-da-semana no campo de softbol. Sei que preciso de ajuda, mas
não vou permitir isso. Não vou aguentar isso. Não somos um jogo, Ki e eu.
Está entendendo?
— Perfeitamente.
— Sabe o que as pessoas na cidade vão dizer, não é?
— Sei.
— Sou uma moça de sorte, não sou? Primeiro me caso com o filho
de um homem extremamente rico, e depois que ele morre, caio sob a asa
protetora de outro cara rico. A seguir provavelmente vou morar com Donald
Trump.
— Corta essa.
— Provavelmente eu mesma acreditaria nisso, se estivesse do outro
lado. Mas fico pensando se alguém nota que a sortuda Mattie ainda está
morando num trailer velho e não pode arcar com um plano de saúde. Ou
que sua filha recebeu a maioria das vacinas de um posto de saúde do
condado. Meus pais morreram quando eu tinha 15 anos. Tenho um irmão e
uma irmã, mas os dois são muito mais velhos e moram em outro estado.
Meus pais eram bêbados, não nos maltratavam fisicamente, mas de
diversos outros modos. Era como crescer num... motel de baratas. Meu pai
era lenhador, minha mãe uma esteticista do uísque cuja única ambição era
ter um Cadillac cor-de-rosa. Ele se afogou no lago Kewadin. Ela se afogou
no próprio vômito cerca de seis meses depois. Gostou, até agora?
— Não muito. Desculpe.
— Depois do funeral de mamãe, meu irmão Hugh se ofereceu para
me levar de volta para Rhode Island, mas percebi que sua mulher não
estava exatamente encantada de ter uma garota de 15 anos na família, e
não a censuro por isso. Além disso, eu tinha acabado de entrar para a
turma de animadoras de torcida do colégio. Isso parece uma besteira total
agora, mas naquele momento era algo muito importante.
Claro que tinha sido um negócio muito importante, especialmente
para a filha de alcoólatras. A única que ainda morava em casa. Ser esse
último filho, assistindo à doença enfiar as garras nos pais, pode ser uma
das situações mais solitárias no mundo. O último a sair do maldito bar, por
favor, apague a luz.
— Acabei indo morar com minha tia Florence, a apenas 3
quilômetros de distância na estrada. Levamos umas três semanas para
descobrir que não gostávamos muito uma da outra, mas fizemos a coisa
funcionar por dois anos. Então, entre o primeiro e o último ano do ensino
médio, consegui um emprego de verão no Warrington’s e conheci Lance.
Quando ele me pediu em casamento, tia Flo recusou-se a dar permissão.
Quando eu disse a ela que estava grávida, ela me emancipou, portanto, não
precisei da permissão.
— Você abandonou o colégio?
Ela fez uma careta e concordou com a cabeça.
— Eu não queria passar seis meses com as pessoas me assistindo
inchar como um balão. Lance me apoiou. Disse que eu poderia fazer a prova
de equivalência. Eu fiz isso no ano passado. Foi fácil. E agora Ki e eu
estamos sozinhas. Mesmo que minha tia concordasse em me ajudar, o que
poderia fazer? Ela trabalha na fábrica Gore-Tex, de Castle Rock, e ganha
uns 16 mil dólares por ano.
Concordei com a cabeça novamente, pensando que meu último
cheque de direitos autorais franceses fora aquela quantia. Meu último
cheque trimestral. Então me lembrei de algo que Ki tinha me contado no dia
em que eu a conheci.
— Quando eu estava carregando Kyra para fora da estrada, ela disse
que se você estivesse zangada, ela ia para sua vó branca. Se o seu pessoal
morreu, a quem ela... — Só que eu não precisava perguntar, na verdade,
precisava apenas fazer uma ou duas conexões. — Rogette Whitmore é a vó
branca? A assistente de Devore? Mas isso significa...
— Que Ki tem estado com eles. É verdade. Até o final do mês
passado, eu permitia que ela visitasse o avô... e Rogette por associação, é
claro, com muita frequência. Uma ou duas vezes por semana, e às vezes
para passar à noite. Ela gosta de seu “papai branco”, pelo menos gostava no
início, e ela simplesmente adora aquela mulher sinistra. — Acho que Mattie
estremeceu na penumbra, embora a noite ainda estivesse muito tépida.
— Devore ligou para dizer que estava vindo ao leste para o funeral
de Lance e perguntar se podia ver a neta enquanto estivesse aqui.
Simpático como uma ovelhinha, exatamente como se jamais tivesse
tentado me comprar para que eu largasse Lance quando este lhe contou que
íamos nos casar.
— Ele tentou?
— É. A primeira oferta foi de 100 mil dólares. Isso foi em agosto de
1994, depois que Lance ligou para ele para dizer que íamos casar em
meados de setembro. Eu não comentei a coisa. Uma semana depois, a
oferta subiu para 200 mil.
— Em troca de que, exatamente?
— De recolher minhas garras de puta e me mudar para um endereço
desconhecido. Desta vez eu contei a Lance, e ele se enfureceu. Ligou para o
velho e disse que íamos casar, querendo ele ou não. E disse a Devore que
se quisesse ver a neta algum dia teria que parar com aquela besteira e se
comportar.
Com outro pai, pensei, provavelmente seria a resposta mais razoável
que Lance poderia ter dado. Eu o respeitava por isso. O único problema era
que ele não estava lidando com um homem razoável, estava lidando com o
sujeito que, quando criança, roubara o trenó novo de Scooter Larribee.
— Essas ofertas foram feitas pelo próprio Devore, ao telefone. As
duas quando Lance não estava por perto. Então, uns dez dias antes do
casamento, recebi a visita de Dickie Osgood. Eu devia ligar para um número
em Delaware, e quando o fiz... — Mattie balançou a cabeça. — Você não vai
acreditar. Parece que saiu de um de seus livros.
— Posso dar um palpite?
— Se quiser.
— Ele tentou comprar a criança. Tentou comprar Kyra.
Seus olhos se arregalaram. Uma lua magra havia surgido e pude ver
muito bem sua expressão de surpresa.
— Quanto? — perguntei. — Estou curioso. Quanto para você dar à
luz, deixar a neta de Devore com Lance e então sumir?
— Dois milhões de dólares — murmurou ela. — Depositados no
banco de minha escolha, contanto que fosse a oeste do Mississipi e que eu
assinasse um acordo para me manter longe de Kyra, e de Lance, até pelo
menos 20 de abril de 2016.
— O ano em que Ki faz 21 anos.
— É.
— E Osgood não conhece nenhum dos detalhes, portanto as mãos de
Devore continuam limpas aqui na cidade.
— Sim. E os dois milhões foram apenas o começo. Haveria um
milhão adicional no quinto, no décimo, no décimo quinto e no vigésimo
aniversário de Ki. — Ela balançou a cabeça como se não acreditasse. — O
linóleo continua fazendo bolhas na cozinha, o bocal do chuveiro continua
caindo na banheira e atualmente todo o maldito trailer tomba para o lado,
mas eu poderia ter sido a mulher de 6 milhões de dólares.
Chegou a pensar em aceitar a oferta, Mattie?, eu me perguntei... Mas
era uma pergunta que eu jamais faria, um sinal de curiosidade tão pouco
conveniente que não merecia nenhuma satisfação.
— Você contou a Lance?
— Tentei não contar. Ele estava sempre furioso com o pai, e eu não
queria tornar as coisas piores. Eu não queria tanto ódio no começo do nosso
casamento, por mais que houvesse boas razões para isso... e não queria
que Lance... depois comigo, você sabe... — Ela levantou as mãos, depois as
deixou cair até as coxas. O gesto foi ao mesmo tempo desanimado e
estranhamente cativante.
— Você não queria Lance virando para você dez anos depois e
dizendo “Você interferiu entre meu pai e eu, sua vaca.”
— Alguma coisa assim. Mas no final não pude guardar aquilo comigo.
Eu era apenas uma menina do interior, só tive uma meia-calça aos 11 anos,
usava o meu cabelo com tranças ou um rabo de cavalo até os 13, pensava
que todo o estado de Nova York era a cidade de Nova York... e esse cara...
esse pai fantasma... tinha me oferecido 6 milhões de dólares. Aquilo me
aterrorizou. Eu sonhava com ele entrando durante a noite como um troll e
roubando meu bebê do berço. Ele viria ziguezagueando pela janela como
uma cobra...
— Arrastando seu tanque de oxigênio com ele, sem dúvida.
Ela sorriu.
— Na época, eu não sabia do oxigênio. Ou de Rogette Whitmore. Só
estou tentando dizer que eu tinha só 17 anos e não era nada boa em
guardar segredos. — Tive que refrear meu próprio sorriso pelo modo como
ela disse aquilo, como se décadas de experiência se estendessem agora
entre aquela criança ingênua e assustada e esta mulher madura com seu
diploma por correspondência.
— Lance ficou zangado.
— Tão zangado que respondeu ao pai por e-mail em vez de ligar. Ele
gaguejava, sabe, e quanto mais aborrecido ficava, pior ficava a gagueira.
Uma conversa ao telefone teria sido impossível.
Agora, finalmente, eu achava que tinha um quadro claro. Lance
Devore tinha escrito ao pai uma carta impensável — quer dizer, impensável
se você fosse Max Devore. A carta dizia que Lance não queria nunca mais
saber do pai, e Mattie também não. Ele não seria mais bem-vindo na casa
deles (o velho trailer não era bem o humilde chalé de lenhador da história
dos Irmãos Grimm, mas estava bem próximo). Ele também não seria bemvindo
para visitá-los depois do nascimento do bebê, e se tivesse a audácia
de mandar um presente para a criança, cedo ou tarde, tal presente seria
devolvido. Fique longe da minha família, papai. Dessa vez você foi longe
demais para ser perdoado.
Sem dúvida nenhuma há modos diplomáticos de se lidar com um
filho ofendido, alguns sábios e alguns astuciosos... mas faça a si mesmo a
seguinte pergunta: para início de conversa, um pai diplomático teria se
metido numa situação dessas? Um homem com um mínimo insight da
natureza humana teria oferecido à noiva do filho uma recompensa (tão
gigantesca que provavelmente teve pouco sentido ou significado concreto
para ela) a fim de que desistisse de seu primogênito? Ele tinha oferecido
essa barganha do diabo a uma menina-mulher de 17 anos, uma idade em
que a visão romântica da vida está absolutamente em maré alta. Se não
fosse por outra coisa, Devore deveria ter esperado antes de fazer sua
oferta final. Pode-se argumentar que ele não sabia se podia esperar, mas
isso não seria um argumento convincente. Achei que Mattie tinha razão —
bem no fundo daquela velha e enrugada ameixa seca que lhe servia de
coração, Max Devore achava que ia viver para sempre.
No final, ele não conseguira se refrear. Houve o trenó que desejou, o
trenó que simplesmente teve que obter, do outro lado da janela. Tudo o que
teve que fazer foi quebrar o vidro e pegá-lo. Vinha fazendo isso toda a sua
vida, e assim não reagiu astuciosamente ao e-mail do filho, como um
homem com sua idade e capacidade deveria ter feito, mas furiosamente,
como a criança teria feito se o vidro na janela do galpão tivesse se
mostrado imune a seus punhos de martelo. Lance não queria que se
metesse? Ótimo! Pois podia viver com sua Daisy Duke numa tenda, trailer
ou na porcaria de um estábulo. Podia desistir também do confortável
trabalho de supervisor e encontrar um emprego verdadeiro. Ver como o
outro lado vivia!
Em outras palavras, você não pode me largar, filho. Você está
despedido.
— Não caímos nos braços um do outro no funeral — disse Mattie —,
não pense uma coisa dessas. Mas ele foi decente comigo, o que eu não
esperava, e tentei ser decente com ele. Ofereceu uma mesada, que recusei.
Tive medo de que pudesse haver ramificações legais.
— Duvido, mas gosto de sua cautela. O que aconteceu quando ele viu
Kyra pela primeira vez, Mattie? Você lembra?
— Jamais esquecerei daquilo. — Ela enfiou a mão no bolso do
vestido, encontrou um maço de cigarros amarrotado e sacudiu um deles
para fora. Olhou-o com uma mistura de cobiça e desgosto. — Larguei o
cigarro porque Lance disse que não podíamos realmente nos dar a esse
luxo, e eu sabia que tinha razão. Mas o hábito continua voltando. Só fumo
um maço por semana, e sei muito bem que mesmo assim é muito, mas às
vezes preciso de consolo. Quer um?
Balancei a cabeça negativamente. Ela acendeu o cigarro e, à chama
momentânea do fósforo, seu rosto não estava mais bonito. O que teria o
velho feito a ela?, pensei.
— Ele viu a neta pela primeira vez ao lado de um carro fúnebre —
disse Mattie. — Estávamos na casa funerária de Dakin, em Motton. Era o
velório. Sabe o que é isso?
— Ah, sim — eu disse, pensando em Johanna.
— O caixão estava fechado, mas mesmo assim ainda chamam isso
de velar. Esquisito. Saí para fumar um cigarro. Disse a Ki que sentasse na
escada do salão da casa funerária para que não respirasse a fumaça e me
afastei um pouco no caminho. Então uma grande limusine parou. Nunca
tinha visto nada parecido antes, a não ser na TV. Soube imediatamente
quem era. Coloquei os cigarros novamente na bolsa e chamei Ki para perto
de mim. Ela veio andando pelo caminho naquela hesitação de criança e
pegou minha mão. A porta da limusine se abriu e Rogette Whitmore saiu
dela. Tinha uma máscara de oxigênio na mão, mas ele não precisou dela,
pelo menos naquele momento. Devore saiu a seguir. Um homem alto, não
tão alto quanto você, Mike, mas alto, de terno cinza e sapatos pretos
brilhantes como espelhos.
Ela fez uma pausa, pensando. O cigarro ergueu-se brevemente até
sua boca e depois abaixou-se até o braço de sua cadeira, um vaga-lume
vermelho no débil luar.
— Primeiro ele não disse nada. A mulher tentou pegar seu braço e
ajudá-lo a subir os três ou quatro degraus da estrada até o caminho, mas
ele se desvencilhou dela. Veio sozinho até onde estávamos, embora eu
pudesse ouvir seu peito chiando. Era o som de uma máquina precisando de
óleo. Não sei quanto ele pode caminhar agora, mas provavelmente não é
muito. Aqueles poucos degraus acabaram com ele, e isso foi há quase um
ano. Ele me olhou por um ou dois segundos e depois se curvou para a
frente com as mãos grandes, velhas e ossudas nos joelhos. Olhou para
Kyra e ela o olhou.
Sim. Eu podia ver a coisa... não a cores, não como a imagem de uma
foto. Eu a vi como uma xilogravura, apenas mais uma sombria ilustração
dos Contos de fadas de Grimm. A garotinha levanta os olhos arregalados
para o velho rico — um dia o garoto que tinha deslizado triunfantemente
num trenó roubado, agora, no outro extremo da vida, e apenas mais um
saco de ossos. Em minha imaginação, Ki usava uma jaqueta com capuz e a
máscara de vovô Devore estava ligeiramente de lado, permitindo-me ver os
tufos do pelo de lobo por baixo dela. Que olhos grandes o senhor tem, vovô,
que nariz grande o senhor tem, vovô, e que grandes dentes também.
— Ele a levantou. Não sei quanto precisou se esforçar para isso, mas
ele o fez. E, o que foi mais estranho, Ki deixou que ele a levantasse. Era
um completo estranho para ela, e os velhos sempre parecem assustar
crianças pequenas, mas ela deixou que a levantasse. “Sabe quem sou eu?”,
perguntou ele. Ela balançou a cabeça, mas pelo modo como o olhava... era
quase como se soubesse. Você acha isso possível?
— Acho.
— Ele disse: “Sou o seu vovô.” E eu quase a puxei para mim, Mike,
porque tive uma impressão maluca... não sei...
— De que ele ia comê-la?
O cigarro parou na frente de sua boca. Seus olhos estavam muito
abertos.
— Como é que sabe? Como pode saber disso?
— Porque na minha imaginação isso parece um conto de fadas.
Chapeuzinho Vermelho e o Velho Lobo Cinzento. O que é que ele fez então?
— Ele a comeu com os olhos. Desde então a ensinou a jogar damas
e outros jogos. Ela tem apenas 3 anos, mas ele a ensinou a somar e a
diminuir. Ela tem seu próprio quarto no Warrington’s e seu próprio
computadorzinho lá, e Deus sabe o que ele a tem ensinado a fazer com
aquilo... mas naquela primeira vez ele apenas a olhou. Foi o olhar mais
faminto que já vi na minha vida.
“E ela devolveu o olhar. Não pode ter sido mais de dez ou vinte
segundos, mas pareceu durar para sempre. Então ele tentou entregá-la
novamente a mim. Mas tinha usado toda a sua força, e se eu não estivesse
ali para pegá-la, acho que ele a teria deixado cair no caminho de cimento.
Ele cambaleou um pouco, e Rogette Whitmore passou um braço à sua volta.
Então Devore pegou a máscara de oxigênio, tinha uma pequena garrafa de
ar ligada a ela num elástico, e a colocou sobre a boca e o nariz. Umas duas
respiradas e ele pareceu mais ou menos bem de novo. Ele a devolveu a
Rogette e realmente pareceu me ver pela primeira vez. E disse: ‘Tenho sido
um idiota, não é?’ Respondi: ‘Tem, sim, senhor.’ Lançou-me um olhar muito
sombrio quando eu disse isso. Acho que se fosse cinco anos mais novo,
teria me batido por causa daquilo.”
— Mas não era, e não bateu.
— Não. Disse: “Quero entrar. Você me ajuda a fazer isso?” Respondi
que ajudava. Subimos a escada da casa funerária com Rogette de um lado
dele, eu do outro e Kyra andando atrás. Senti-me como uma moça de
harém. Não era uma sensação muito agradável. Quando entramos no
vestíbulo, ele sentou para recobrar a respiração e tomar um pouco mais de
oxigênio. Rogette virou-se para Kyra. Acho que aquela mulher tem uma cara
assustadora, lembra uma pintura...
— O grito? Aquela de Munch?
— Tenho quase certeza de que é essa. — Ela deixou cair o cigarro,
fumado quase até o filtro, e pisou nele, esmagando-o no chão pontilhado de
pedras com seu tênis branco. — Mas Ki não teve nem um pouco de medo
dela. Nem naquela hora nem depois. Ela se curvou para Kyra e disse: “O
que é que rima com gato?” E Kyra respondeu: “Pato!”, imediatamente.
Mesmo aos 2 anos ela adorava rimas. Rogette pegou um chocolate dentro
da bolsa e puxou-o para fora. Ki me olhou para ver se podia pegá-lo e eu
disse: “Está bem, mas só um, e não quero ver nenhum pingo dele na sua
roupa.” Ki colocou o chocolate na boca e sorriu para Rogette, como se
tivessem sido sempre amigas. Nessa altura Devore tinha recuperado o
fôlego, mas parecia cansado, o homem mais cansado que já vi na vida. Ele
me lembrou de algo na Bíblia, de como nos dias de nossa velhice dizemos
que não temos nenhum prazer na vida. Meu coração amoleceu por ele.
Talvez Devore tenha notado isso, pois estendeu a mão e pegou a minha.
Disse: “Não feche sua porta para mim.” E naquele momento pude ver Lance
no rosto dele. Comecei a chorar. “Não vou fazer isso, a não ser que o
senhor me obrigue.”
Eu os vi ali no saguão da casa funerária; ele, sentado; ela, de pé; a
menina olhando numa perplexidade de olhos abertos enquanto sugava o
chocolate. Música de órgão enlatada ao fundo. O pobre velho Max Devore
tinha sido bastante astucioso no dia do velório de seu filho, pensei. Não
feche sua porta para mim, essa é boa.
Tentei comprar você e como isso não funcionou aumentei o lance e
tentei comprar a criança. Quando isso também falhou, disse ao meu filho
que ele, você e minha neta podiam se afogar na sujeira de suas próprias
decisões. De certo modo, eu sou o motivo de ele estar onde estava quando
caiu e quebrou o pescoço, mas não feche sua porta para mim, Mattie, sou
apenas um pobre velhote, portanto, não feche sua porta para mim.
— Fui burra, não fui?
— Você esperava que ele fosse melhor do que era. Se isso é ser
burra, Mattie, o mundo podia ser um pouco mais burro.
— Eu tinha minhas dúvidas — disse ela. — Por isso não aceitava o
seu dinheiro, e no final de outubro ele parou de pedir. Mas eu o deixava vê-
la, acho que, em parte, pela ideia de que pudesse haver algum benefício
para Ki mais tarde; mas, honestamente, eu não pensava muito sobre isso.
Era principalmente por ele ser o único vínculo sanguíneo de Kyra com o pai.
Eu queria que ela usufruísse aquilo como qualquer criança usufrui ter um
avô. Não queria é que ela ficasse infectada por todo aquele lixo que tinha
havido antes de Lance morrer.
“No início deu a impressão de funcionar. Então, pouco a pouco, as
coisas mudaram. Por um lado, percebi que Ki não gostava tanto de seu
‘papai branco’. Os sentimentos dela sobre Rogette continuam os mesmos,
mas Max Devore começou a deixá-la nervosa de algum modo que não
compreendo e que ela não pode explicar. Perguntei a ela uma vez se ele a
tocou em algum lugar que a tivesse feito se sentir esquisita. Mostrei-lhe os
lugares de que estava falando, mas ela disse que não. Acredito nela, mas...
ele disse algo ou fez algo. Tenho quase certeza disso.”
— Pode ter sido apenas o som de sua respiração piorando — falei. —
Só isso poderia assustar uma criança. Ou talvez ele lançasse algum tipo de
encantamento enquanto ela estava lá. E com você, Mattie?
— Bem... certo dia de fevereiro, Lindy Briggs me disse que George
Footman tinha estado lá para checar os extintores de incêndio e os
detectores de fumaça na biblioteca. Ele também perguntou se Lindy tinha
encontrado alguma lata de cerveja ou garrafa de bebida no lixo
ultimamente. Ou pontas de cigarro que fossem obviamente feitos em casa.
— Em outras palavras, guimbas de maconha.
— É. E eu soube que Dickie Osgood tem visitado meus velhos
amigos. Conversando. Procurando ouro. Desenterrando a sujeira.
— Há alguma para desenterrar?
— Não muita, graças a Deus.
Eu esperava que estivesse certa, e também que, se havia coisas que
ela não tinha me contado, John Storrow as tirasse dela.
— Mas, com tudo isso, você deixou Kyra continuar a visitá-lo.
— Qual seria o resultado de puxar a tomada das visitas? Achei que
permitindo que continuassem pelo menos o impediria de apressar qualquer
plano que pudesse ter.
Isso, eu pensei, tinha uma espécie de solitário sentido.
— Então, na primavera, comecei a ter algumas sensações
extremamente sinistras, assustadoras.
— Sinistras como? Assustadoras como?
— Não sei. — Puxou o maço de cigarros, olhou-o e tornou a enfiá-lo
no bolso. — Não era só o fato de que meu sogro estivesse procurando
roupa suja nos meus armários. Era Ki. Comecei a me preocupar com Ki
todo o tempo que ela estava com ele... com eles. Rogette vinha no BMW
que tinham comprado ou alugado, e Ki ficava nos degraus esperando por
ela. Com sua bolsa de brinquedos se fosse só uma visita de dia, com a
pequena maleta rosa da Minnie se fosse para passar a noite. E sempre
voltava com algo a mais do que levava. Meu sogro acredita muito em
presentes. Antes de colocá-la no carro, Rogette me dava seu sorriso frio e
dizia “Então sete horas, ela jantará conosco”, ou “Então oito horas, e um
bom desjejum antes de ela ir embora”. Eu dizia tudo bem, e aí Rogette
pegava a bolsa, puxava um Kiss da Hershey’s e dava a Ki exatamente como
se dá um biscoito a um cachorro pra fazê-lo estender a pata. Dizia uma
palavra e Kyra fazia uma rima. Rogette então atirava a guloseima para ela,
uf-uf, bom cachorro, eu costumava pensar, e iam embora. Ao bater sete da
noite ou oito da manhã, o BMW parava bem ali onde seu carro está
estacionado agora. A gente podia acertar o relógio pela mulher. Mas fiquei
preocupada.
— De que pudessem ficar cansados do processo legal e
simplesmente a roubassem? — Isso me parecia uma preocupação racional,
tão racional que eu quase não podia acreditar que Mattie tivesse deixado a
menina visitar o velho, para começo de conversa. Nos casos de custódia,
como no resto da vida, a posse tende a ser nove décimos da lei, e se
Mattie estava contando a verdade sobre seu passado e seu presente, uma
audiência de custódia provavelmente se transformaria numa produção
cansativa mesmo para o rico Devore. Roubar, no fim das contas, poderia
parecer uma solução mais eficiente.
— Não exatamente — disse ela. — Acho que é a coisa lógica, mas
não era bem isso. Apenas fiquei com medo. Não havia nada que eu pudesse
precisar. Quando chegava as 6h15 da noite, eu pensava: “Desta vez aquela
vaca de cabelos brancos não vai trazer Kyra de volta. Desta vez ela vai...”
Esperei. Quando não falou nada, perguntei:
— Vai o quê?
— Já lhe disse, não sei — falou. — Mas fiquei com medo por Kyra
desde a primavera. Quando junho chegou, não pude mais aguentar, e botei
um ponto final nas visitas. Kyra tem estado intermitentemente zangada
comigo desde então. Tenho certeza de que aquela fuga do 4 de Julho teve a
ver com isso. Ela não fala muito sobre o avô, mas sempre vem com “O
que você acha que a vó branca está fazendo agora, Mattie?” ou “Você acha
que a vó branca ia gostar do meu vestido novo?”. Ou ela corre até mim e
diz “Gato, pato, mato, naco”, e pede um doce.
— Qual foi a reação de Devore?
— Uma fúria total. Ligou inúmeras vezes, primeiro perguntando o que
estava errado, depois fazendo ameaças.
— Ameaças físicas?
— Ameaças quanto à custódia. Que ia levá-la embora de qualquer
modo, que quando acabasse comigo eu ia ficar perante o mundo como uma
mãe inadequada, que eu não tinha nenhuma chance, minha única esperança
seria ceder e me deixar ver minha neta, desgraçada.
Assenti com a cabeça.
— “Por favor, não feche sua porta para mim” não parece o sujeito
que me ligou enquanto eu estava assistindo aos fogos, mas essa última
frase parece.
— Também recebi telefonemas de Dickie Osgood e de diversos
outros habitantes daqui — disse ela. — Inclusive do velho amigo de Lance,
Richie Lattimore. Richie disse que eu não estava sendo fiel à memória de
Lance.
— E George Footman?
— Ele faz a ronda por aqui de vez em quando. Me faz saber que está
vigiando. Não entra ou para. Você perguntou sobre ameaças físicas, só de
ver a radiopatrulha de Footman na minha entrada me parece uma ameaça.
Ele me assusta. Mas nesses dias acho que tudo me assusta.
— Mesmo que as visitas de Kyra tenham parado.
— Mesmo assim. Parece... trovoada. Como se algo fosse acontecer.
E a cada dia essa sensação fica mais forte.
— O número de John Storrow — eu disse. — Você quer?
Ela ficou quieta, olhando para o colo. Então ergueu a cabeça e
concordou.
— Pode me dar. E obrigada. Do fundo do meu coração.
Eu tinha o número numa folhinha pequena de bloco rosa no meu
bolso da frente. Ela o agarrou, mas não o puxou imediatamente. Nossos
dedos se tocavam e ela olhava para mim com uma firmeza desconcertante.
Era como se ela conhecesse mais os meus motivos do que eu mesmo.
— Como posso lhe retribuir? — perguntou, então era isso.
— Conte a Storrow tudo o que me contou. — Soltei a folhinha de
papel e levantei. — Isso já chega. E agora tenho que ir. Você me liga e diz
como foi com ele?
— Claro.
Andamos até o meu carro. Virei-me para ela quando chegamos lá.
Por um momento, pensei que ia pôr os braços em torno de mim e me
abraçar, um gesto de agradecimento que poderia levar a qualquer lugar em
nosso atual estado de ânimo — tão aguçado que era quase melodramático.
Mas a situação era melodramática, um conto de fadas onde havia bom e
ruim e um monte de sexo reprimido correndo por baixo de tudo.
Então surgiram faróis por sobre o cume da colina onde ficava o
mercado e eles varreram a oficina. Moveram-se em direção a nós, mais
brilhantes. Mattie recuou e chegou até a colocar as mãos atrás do corpo,
como uma criança que tivesse sido censurada. O carro passou, deixandonos
no escuro novamente... mas o momento se foi. Se é que tinha havido
um momento.
— Obrigado pelo jantar — eu disse. — Foi maravilhoso.
— Obrigada pelo advogado, tenho certeza de que ele será
maravilhoso também — ela respondeu, e nós dois rimos. A eletricidade saiu
do ar. — Ele falou de você uma vez, sabe. Devore.
Olhei para ela surpreso.
— Estou espantado que ele chegue mesmo a saber quem eu sou.
Antes disso, quero dizer.
— Ele sabe, não há dúvida. Falou de você com o que me pareceu
uma afeição genuína.
— Você está brincando. Tem que estar.
— Não estou. Ele disse que seu bisavô e o bisavô dele trabalharam
nos mesmos campos e eram vizinhos quando não estavam nos bosques.
Acho que disse que não era longe de onde fica agora a Marina de Boyd.
“Cagaram no mesmo fosso”, foi como ele colocou a coisa. Encantador, não
é? Disse que, se dois lenhadores da TR podiam produzir milionários, o
sistema estava funcionando como devia. “Mesmo que tenha levado três
gerações para isso”, disse ele. Naquela época, encarei aquilo como uma
crítica velada a Lance.
— É ridículo, por mais que estivesse sendo sincero — falei. — Minha
família é da costa. Prout’s Neck. Do outro lado do estado. Meu pai era um
pescador, assim como seu pai antes dele. Meu bisavô também. Pescavam
lagostas e lançavam redes, não cortavam árvores. — Tudo isso era
verdade, e mesmo assim minha mente tentava fixar-se em algo. Alguma
lembrança vinculada ao que Mattie estava dizendo. Se eu dormisse, talvez a
coisa viesse à superfície.
— Ele poderia estar falando de alguém na família de sua mulher?
— Não. Há Arlens no Maine, são uma grande família, mas a maioria
ainda está em Massachusetts. Fazem coisas de todo tipo agora, mas se
voltarmos a 1880, a maioria estaria trabalhando em pedreiras ou em obras
de cantaria na área Malden-Lynn. Devore estava pregando uma peça em
você, Mattie. — Mas mesmo assim eu sabia que ele não estava. Ele podia
ter lembrado errado de parte da história, até os caras mais aguçados
começam a perder o fio das lembranças quando dobram os 85 anos, mas
Max Devore não era muito de pregar peças. Tive uma imagem de cabos
invisíveis, estendendo-se por baixo da superfície aqui na TR, estendendo-se
em todas as direções, invisíveis, mas poderosos.
Minha mão descansava no alto da porta de meu carro e então Mattie
a tocou rapidamente.
— Posso lhe fazer outra pergunta antes de você ir embora? É boba,
estou avisando.
— Vá em frente. Perguntas bobas são uma especialidade minha.
— Você tem alguma ideia a respeito do que é a história de Bartleby?
Tive vontade de rir, mas havia luar suficiente para que eu visse que
ela falava a sério, e que a magoaria se risse. Ela era membro do círculo de
leitores de Lindy Briggs (onde eu fizera certa vez uma palestra no final dos
anos 1980), provavelmente a mais jovem, pelo menos uns 20 anos, e tinha
medo de parecer burra.
— Tenho que ser a primeira a falar na próxima vez — disse ela — e
gostaria de fazer mais do que só um sumário da história para que saibam
que a li. Tenho pensado nela até ficar com dor de cabeça, mas não consigo
entendê-la. Duvido que seja uma dessas histórias onde tudo fica
magicamente claro nas últimas páginas. E sinto que deveria entender... que
está bem ali na minha frente.
Isso me fez pensar nos cabos novamente — cabos correndo em
todas as direções, uma rede de trabalho subcutânea conectando pessoas e
lugares. Não se podia vê-los, mas se podia senti-los. Sobretudo se a gente
tentasse se afastar. Enquanto isso, Mattie esperava, olhando-me com
esperança e ansiedade.
— Certo, ouça, começou a aula — eu disse.
— Estou ouvindo. Pode acreditar.
— A maioria dos críticos acha que Huckleberry Finn é o primeiro
romance americano moderno, o que é bastante justo, mas se Bartleby
tivesse cem páginas a mais, acho que apostaria meu dinheiro nele. Sabe o
que é um escrivão?
— Um secretário?
— Isso é importante demais. Um copista. Uma espécie de Bob
Cratchit de Um conto de Natal. Só que Dickens dá a Bob um passado e uma
vida de família. Melville não dá a Bartleby nem uma coisa nem outra. Ele é
o primeiro personagem existencial da ficção americana, um sujeito sem
laço... nenhum laço, sabe...
Dois lenhadores que podiam produzir milionários. Cagaram no mesmo
fosso.
— Mike?
— O quê?
— Você está bem?
— Claro. — Foquei minha mente o máximo que pude. — Bartleby só
está ligado à vida pelo trabalho. Nesse sentido, é um típico americano do
século XX, não muito diferente de Sloan Wilson em O homem do terno
cinzento ou, na versão sombria, Michael Corleone em O poderoso chefão.
Mas então Bartleby começa a questionar até mesmo o trabalho, o deus dos
machos americanos da classe média.
Ela agora parecia animada, e achei que era uma pena que tivesse
perdido seu último ano do ensino médio. Para ela e também para seus
professores.
— É por isso que ele começa dizendo “Acho melhor não...”?
— É. Pense em Bartleby como um... balão de ar quente. Só uma
corda ainda o prende à Terra, e essa corda é o trabalho de escrivão.
Podemos medir a podridão nessa última corda pelo contínuo e crescente
número de coisas que Bartleby acha melhor não fazer. Finalmente, a corda
se rompe e Bartleby flutua para longe. É uma história perturbadora à beça,
não é?
— Uma noite sonhei com ele — disse ela. — Abri a porta do trailer e
lá estava ele, sentado nos degraus em seu velho terno preto. Magro. Com
pouco cabelo. Eu disse: “Pode se afastar, por favor? Tenho que sair e
pendurar as roupas agora.” Ele disse: “Acho melhor não.” É, acho que se
pode chamá-la de perturbadora.
— Então ainda funciona — eu disse, e entrei no carro. — Ligue para
mim. Me diga como foi com John Storrow.
— Vou ligar. E qualquer coisa que eu possa fazer em retribuição, é
só pedir.
É só pedir. Até que ponto é preciso ser jovem e graciosamente
ignorante para emitir um cheque em branco desses?
Minha janela estava aberta. Estendi a mão e apertei a dela. Mattie
devolveu o aperto e com força.
— Você sente muita falta de sua mulher, não é? — disse ela.
— Dá para notar?
— Às vezes. — Ela não estava mais apertando minha mão, mas
ainda a segurava. — Quando você estava lendo para Ki, parecia feliz e
triste ao mesmo tempo. Eu só a vi uma vez, sua mulher, mas a achei
muito bonita.
Eu pensava no contato de nossas mãos, concentrando-me nisso. De
repente o esqueci totalmente.
— Quando é que a viu? Onde? Você lembra?
Ela sorriu como se fossem perguntas tolas.
— Lembro. Foi lá no campo de jogo, na noite em que conheci meu
marido.
Muito lentamente retirei a mão da dela. Tanto quanto eu sabia, nem
eu nem Jo tínhamos nos aproximado da TR-90 durante todo o verão de
1994... mas aparentemente o que eu sabia estava errado. Jo esteve lá numa
terça no início de julho. Tinha até ido ao jogo de softbol.
— Tem certeza de que era Jo? — perguntei.
Mattie olhava para a estrada. Não estava pensando em minha
mulher; apostaria a casa e o terreno nisso — ou casa ou terreno. Estava
pensando em Lance. Talvez isso fosse bom. Se estava pensando nele
provavelmente não olhava com muita atenção para mim, e eu não achava
que tinha muito controle de minha expressão naquele momento. Ela poderia
ter visto no meu rosto mais do que eu queria mostrar.
— Sim — disse ela. — Eu estava lá em pé com Jenna McCoy e Helen
Geary... foi depois de Lance ter me ajudado com um barrilzinho de cerveja
que tinha atolado na lama e perguntar se eu ia sair com eles para uma
pizza depois do jogo. Jenna disse: “Olhe, aquela é a sra. Noonan”, e Helen
disse: “Ela é a mulher do escritor, Mattie, a blusa dela não é bacana?” A
blusa era toda coberta de rosas azuis.
Eu lembrava muito bem da blusa. Jo gostava dela porque era uma
brincadeira — não há rosas azuis, não na natureza e não cultivadas. Certa
vez, quando a estava usando, ela me abraçou extravagantemente pelo
pescoço, impulsionou os quadris contra os meus e gritou que era minha
rosa azul, e eu precisava acariciá-la até ela ficar cor-de-rosa. Lembrar
aquilo doeu e muito.
— Ela estava no lado da terceira base, atrás da tela de arame —
disse Mattie —, com um homem com um velho blazer marrom e remendos
nos cotovelos. Riam juntos de alguma coisa. Depois ela virou um pouco a
cabeça e olhou direto para mim. Ficou quieta por um momento, em pé ao
lado do carro, com seu vestido vermelho. Levantou o cabelo da nuca,
segurou-o e deixou-o cair de novo. Direto para mim. Realmente me vendo. E
tinha uma expressão... ela tinha estado rindo, mas seu olhar de certo modo
era triste. Era como se me conhecesse. Então o homem pôs o braço em
sua cintura e eles se afastaram.
Silêncio, a não ser por grilos e o ronco longínquo de um caminhão.
Mattie permaneceu parada por um momento, como se sonhasse de olhos
abertos, e então sentiu algo e olhou de novo para mim.
— Alguma coisa errada?
— Não. A não ser quem era esse camarada com o braço em torno
de minha mulher.
Ela riu um pouco incerta.
— Bom, duvido que fosse namorado dela. Era bem mais velho.
Cinquenta, pelo menos. — E daí?, pensei. Eu mesmo tinha 40 anos, mas
isso não significava que não percebesse o modo como Mattie se movia
dentro do vestido ou erguia o cabelo da nuca. — Quer dizer... você está
brincando, não está?
— Realmente não sei. Há um monte de coisas que não sei nesses
dias, parece. Mas a moça já morreu, de qualquer modo, portanto, qual a
importância disso?
Mattie pareceu deprimida.
— Se cometi alguma gafe, Mike, desculpe.
— Quem era o homem? Você sabe?
Ela balançou a cabeça.
— Achei que era um turista de verão... ele dava essa impressão,
talvez porque estivesse usando um blazer numa noite quente de verão,
mas, se era, não estava hospedado no Warrington’s. Eu conhecia a maioria
deles.
— E foram embora juntos, a pé?
— É. — Ela pareceu relutante.
— Na direção do estacionamento?
— É. — Mais relutante ainda. E desta vez estava mentindo. Eu soube
disso com uma esquisita certeza que ia além da intuição; era quase como
ler sua mente.
Estendi a mão através da janela e peguei sua mão de novo.
— Você disse que se eu pensasse em algo que você pudesse fazer
como retribuição, era só pedir. Estou pedindo. Diga a verdade, Mattie.
Ela mordeu o lábio, olhando para baixo onde minha mão pousava
sobre a dela. Então me encarou.
— Era um cara corpulento. O velho blazer lhe dava um pouco a
aparência de um professor de universidade, mas, tanto quanto sei, podia ter
sido um carpinteiro. Tinha cabelos pretos. Bronzeado. Riram bastante
juntos, e então ela olhou para mim e o riso abandonou seu rosto. Depois
disso ele passou um braço à volta dela e eles se afastaram caminhando. —
Ela fez uma pausa. — Mas não em direção ao estacionamento. Em direção
à Rua.
A Rua. Dali podiam ter andado para o norte e ao longo da beira do
lago até chegarem a Sara Laughs. E então? Quem sabe?
— Ela nunca me disse que tinha vindo até aqui naquele verão — falei.
Mattie pareceu procurar diversas respostas e não encontrar nenhuma
de que gostasse. Devolvi sua mão. Estava na hora de eu ir embora. Na
verdade, eu começava a desejar tê-lo feito cinco minutos atrás.
— Mike, tenho certeza...
— Não — eu disse. — Não tem não. Nem eu. Mas eu a amei muito e
vou tentar deixar isso de lado. Provavelmente não significa nada. E, além
disso, o que é que eu posso fazer? Obrigado pelo jantar.
— De nada. — Mattie parecia com tanta vontade de chorar que
peguei a mão dela de novo e beijei seu dorso. — Eu me sinto uma idiota.
— Você não é idiota — eu disse.
Dei-lhe outro beijo na mão e então liguei o carro e me afastei. E aquele foi o meu encontro romântico, o primeiro em quatro anos.
Dirigindo para casa, pensei num velho ditado que diz que nunca se pode
conhecer verdadeiramente outra pessoa. É fácil dar a essa ideia uma
expressão retórica, mas é um golpe — tão horrível e inesperado quanto
uma grave turbulência num voo anteriormente calmo — descobrir que é um
fato literal em sua própria vida. Continuava me lembrando de nossa visita a
um especialista em fertilidade depois de estarmos tentando ter um bebê
por quase dois anos sem sucesso. O médico tinha dito que eu tinha uma
baixa contagem de espermatozoides — não desastrosamente baixa, mas
baixa o suficiente para explicar o fracasso de Jo em conceber.
— Se quiserem um filho, provavelmente vão ter um sem qualquer
ajuda especial — disse o médico. — Tanto as circunstâncias quanto o
tempo estão a favor de vocês. Poderia acontecer amanhã ou daqui a quatro
anos. Algum dia vão encher a casa de bebês? Provavelmente não. Mas
podem ter dois, e quase certamente terão um se continuarem fazendo a
coisa que os fabrica. — Jo tinha sorrido. — Lembrem-se, o prazer está na
jornada.
Tinha havido muito prazer, sem dúvida, o sino de Bunter havia
tocado muitas vezes, mas não houve bebê nenhum. Então Johanna morreu
ao atravessar correndo o estacionamento de um shopping center num dia
quente, e um dos objetos em sua bolsa era um teste de gravidez doméstico
que ela não me contou que queria comprar. Assim como também não me
disse que havia comprado duas corujas de plástico para evitar que os
corvos fizessem cocô no deck do lago.
Que outras coisas ela não tinha me contado?
— Pare — murmurei. — Pelo amor de Deus, pare de pensar nisso.
Mas eu não conseguia.
Quando voltei a Sara, os ímãs de frutas e legumes na geladeira estavam de
novo num círculo. Três letras haviam sido reunidas no meio:
b m
o
Movi o o para o lugar que eu achava que era o dele, formando a
palavra “bom”. Será que essa é a ordem das letras? O que significava
aquilo exatamente?
— Eu podia especular, mas prefiro não fazer nada disso — falei para
a casa vazia.
Olhei para Bunter, o alce, desejando que o sino em seu pescoço
comido de traça tocasse. Quando não tocou, abri meus dois novos pacotes
de ímãs e prendi as letras magnéticas na porta da geladeira, espalhando-as.
Então desci para a ala norte, nu, e escovei os dentes.
Enquanto arreganhava minhas presas para o espelho numa espumosa
careta de desenho animado, pensei em chamar Ward Hankins novamente no
dia seguinte de manhã. Podia lhe dizer que minha busca das esquivas
corujas de plástico tinha progredido de novembro de 1993 para julho de
1994. Que encontros Jo tinha anotado na agenda para aquele mês? Que
desculpas para sair de Derry? E quando eu tivesse terminado com Ward,
podia atacar Bonnie Amudson, a amiga de Jo, e perguntar-lhe se algo vinha
acontecendo com Jo no último verão de sua vida.
Deixe-a descansar em paz, está bem? Era a voz de OVNI. Que bem
que lhe trará remexer nisso? Pense que ela deu um pulo na TR depois de
uma de suas reuniões do conselho, talvez só num impulso, encontrou um
velho amigo, levou-o para casa para jantar. Só jantar.
E nunca me contou?, perguntei à voz de OVNI, cuspindo um bocado
de pasta de dente e depois enxaguando a boca. Nunca disse uma única
palavra?
Como é que sabe que ela nunca disse?, devolveu a voz, e isso me
congelou no ato de colocar minha escova de dentes de novo no armário do
banheiro. A voz de OVNI tinha marcado um ponto. Eu estive profundamente
mergulhado em De cima para baixo em julho de 1994. Jo podia ter entrado e
me contado que tinha visto Lon Chaney Jr. dançando com a rainha, fazendo
os Lobisomens de Londres e eu provavelmente teria dito “Tudo bem, meu
amor, que ótimo”, enquanto fazia a revisão do texto.
— Besteira — disse para o meu reflexo. — Isso é só besteira.
Mas não era. Quando eu estava realmente mergulhado num livro,
saía mais ou menos do mundo; fora uma rápida espiada nas páginas de
esporte, eu não lia sequer o jornal. Portanto, sim, era possível que Jo
tivesse me dito que passaria na TR depois de uma reunião do conselho em
Lewiston ou Freeport, era possível que tivesse me dito que tinha encontrado
um velho amigo, talvez outro aluno do seminário de fotografia que ela havia
frequentado em Bates em 1991 — e era possível que tivesse me dito que
tinham jantado juntos em nosso deck, comendo cogumelos trombeta-negra
colhidos por ela enquanto o sol se punha. Era possível que tivesse me dito
essas coisas e eu não tivesse registrado uma palavra do que disse.
E eu realmente achava que conseguiria algo em que pudesse confiar
de Bonnie Amudson? Ela foi amiga de Jo, não minha, e Bonnie podia sentir
que o estatuto de limitações sobre quaisquer segredos que minha mulher
tivesse contado a ela não tinha cessado.
O pano de fundo era tão simples quanto brutal: Jo tinha morrido havia quatro anos. Melhor amá-la e deixar todas as perguntas perturbadoras de lado. Tomei uma última golada de água diretamente da torneira, bochechei e a cuspi.
Quando voltei à cozinha para acertar a cafeteira elétrica para as sete
horas, vi uma nova mensagem num novo círculo de ímãs. Dizia
rosa azul mentiroso ha ha
Olhei aquilo por um ou dois segundos, imaginando o que tinha
colocado as palavras ali e por quê.
Perguntando-me se era verdade.
Estendi a mão e espalhei bem todas as letras. Então fui para a cama.
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