domingo, 11 de outubro de 2015

Capítulo Onze


Acordei nas primeiras horas da manhã seguinte convencido de que havia alguém no quarto norte comigo. Sentei apoiando-me nos travesseiros,
esfreguei os olhos e vi uma forma escura e de ombros largos em pé entre
a janela e eu.
— Quem é você? — perguntei, pensando que ela não responderia em
palavras; bateria na parede. Um para sim, dois para não... o que é que está
na sua cabeça, Houdini? Mas a figura em pé junto à janela não respondeu de
maneira alguma. Tateei, encontrei o cordão pendente da luz sobre a cama e
puxei-o. Minha boca torcia-se numa careta, e meu torso estava tão tenso
que dava a impressão de balas terem quicado ali.
— Ah, merda — eu disse. — Puta que pariu.
Pendendo de um cabide que eu tinha enganchado no travessão da
cortina estava minha velha jaqueta de camurça. Eu a coloquei lá enquanto
desfazia as malas, esquecendo depois de guardá-la no closet. Tentei rir e
não consegui. Às três da manhã, aquilo simplesmente não parecia
engraçado.
Desliguei a luz e deitei novamente com os olhos abertos, esperando que o sino de Bunter começasse a tocar ou a criança começasse a chorar.
Ainda estava à escuta quando adormeci.


Umas sete horas depois, aprontava-me para ir ao estúdio de Jo e ver se as
corujas de plástico estavam na área do depósito, onde eu não tinha checado
no dia anterior, quando um Ford de último tipo desceu por minha entrada de
carros e parou, frente a frente com meu Chevy. Eu tinha andado o curto
caminho entre a casa e o estúdio, mas então voltei. O dia estava quente e
sufocante, e eu só usava um jeans cortado e uma sandália de dedo de
plástico.
Jo sempre afirmara que o estilo Cleveland de se vestir dividia-se
naturalmente em dois subgêneros: Cleveland Completo e Cleveland Casual.
Meu visitante daquela terça de manhã usava o Cleveland Casual — camisa
havaiana com abacaxis e macacos, calças largas bege da Banana Republic,
mocassins brancos. As meias são opcionais, mas sapatos brancos são
parte necessária da aparência Cleveland, como o é também uma vistosa
joia de ouro. O cara se enquadrava totalmente no último item: exibia um
Rolex no pulso e uma corrente de ouro no pescoço. A camisa estava para
fora, e havia um volume suspeito na parte de trás. Uma arma ou um bip, e
parecia grande demais para ser um bip. Dei uma olhada para o carro de
novo. Pneus de faixa preta. E no painel, ah, olhe só para isso, lá estava a
luz da sirene coberta. Melhor me arrastar até você sem ser visto, vovó.
— Michael Noonan? — Ele era bonito de um modo que podia ser
atraente para certas mulheres, as do tipo que se encolhem quando alguém
ao lado levanta a voz, as do tipo que raramente chamam a polícia quando
as coisas dão errado porque, em algum nível miserável e secreto,
acreditam que merecem que as coisas deem errado em casa. Coisas
erradas que resultam em olhos roxos, cotovelos deslocados, a ocasional
queimadura de cigarro no peito. Mulheres que frequentemente chamam os
maridos ou amantes de papai: “Posso lhe trazer uma cerveja, papai?” ou
“Teve um dia duro, papai?”.
— Sim, eu sou Michael Noonan. O que deseja?
Aquela versão de papai se virou, curvou-se e pegou algo da confusão
de papéis no banco de passageiro. Sob o painel, um rádio bidirecional chiou
uma vez, rapidamente, e silenciou. O homem se virou para mim segurando
uma pasta comprida amarelo-clara e estendeu-a:
— Isso é seu.
Quando não a peguei, ele deu um passo à frente e tentou enfiá-la
numa de minhas mãos, o que supostamente me faria fechar os dedos numa
espécie de reflexo. Em vez disso, ergui as mãos à altura dos ombros.
Ele me olhou pacientemente, o rosto tão irlandês como o dos irmãos
Arlen, mas sem a expressão Arlen de bondade, franqueza e curiosidade. No
lugar dessas coisas, havia uma espécie de divertimento amargo, como se
tivesse visto tudo do comportamento mais irritante do mundo, na maioria
duas vezes. Uma de suas sobrancelhas fora dividida por um corte muito
tempo atrás, e seu rosto tinha aquela vermelhidão queimada pelo vento
indicadora de boa saúde ou de um profundo interesse em produtos de álcool
de cereal. Ele dava a impressão de poder derrubar a pessoa na sarjeta e
depois sentar-se em cima para mantê-la ali. “Tenho sido bonzinho, papai,
me larga, não seja mau.”
— Não complique as coisas. O senhor vai precisar disso, e nós
sabemos, portanto não complique as coisas.
— Primeiro me mostre sua identificação.
Ele suspirou, rolou os olhos para o céu, depois remexeu num dos
bolsos da camisa. Tirou de lá uma carteira de couro e abriu-a. Nela havia
uma insígnia e uma foto de identificação. Meu novo amigo era George
Footman, xerife-adjunto, condado de Castle. A foto era chapada, sem
sombras, como a que uma vítima de assalto veria num livro com retratos
de criminosos.
— Ok? — perguntou.
Peguei o documento quando ele o estendeu novamente. Ficou em pé
ali, irradiando aquela sensação de divertimento congelante enquanto eu
esquadrinhava o papel. Eu tinha sido intimado a aparecer no escritório de
Elmer Durgin, advogado, em Castle Rock, às dez horas da manhã de 10 de
julho de 1998 — sexta-feira, em outras palavras. O dito Elmer Durgin fora
indicado guardião ad litem de Kyra Elizabeth Devore, menor de idade. Ele
receberia meu depoimento a respeito de qualquer conhecimento que eu
pudesse ter sobre Kyra Elizabeth Devore com relação a seu bem-estar. Tal
depoimento seria feito no interesse da Corte Superior do condado de Castle
e do juiz Noble Rancourt. Um estenógrafo estaria presente. Asseguravamme
que o depoimento era para a Corte, nada tendo a ver com o reclamante
ou o réu.
Footman falou:
— É minha função lembrá-lo das penalidades caso o senhor não...
— Obrigado, mas vamos considerar que o senhor já me falou sobre
tudo isso, ok? Estarei lá. — Fiz gestos para seu carro como se o enxotasse.
Sentia-me profundamente indignado... e invadido. Nunca fora intimado antes,
e não fazia questão de sê-lo.
Ele voltou ao carro, começou a entrar nele depois parou, com um dos
braços peludos apoiado no alto da porta aberta. Seu Rolex cintilou ante a
enevoada luz do sol.
— Deixe eu te dar um conselho — disse ele, e isso foi o suficiente
para eu saber tudo o que precisava sobre o sujeito. — Não se meta com o
sr. Devore.
— Ou ele me esmaga como a um inseto — eu disse.
— Hã?
— Sua fala na realidade é “Deixe eu te dar um conselho: não se
meta com o sr. Devore ou ele o esmaga como a um inseto”.
Eu via por sua expressão — um pouco além de perplexa, tornando-se
zangada — que ele deve ter querido dizer algo muito parecido. Obviamente
havíamos visto os mesmos filmes, inclusive todos aqueles em que Robert
de Niro desempenha papéis de psicóticos. Então seu rosto descontraiu.
— Ah, claro, o senhor é o escritor — disse.
— É o que me dizem.
— Pode dizer coisas assim porque é escritor.
— Bem, estamos num país livre, não é?
— Olha só como ele é esperto!
— Há quanto tempo está trabalhando para Max Devore, adjunto? E o
xerife do condado sabe que o senhor está fazendo bicos?
— Eles sabem. Não há nenhum problema. Você é que pode ter
problemas, sr. Escritor Esperto.
Cheguei à conclusão de que já era tempo de acabar com aquilo antes
de chegarmos ao aborrecido estágio de nomes ofensivos.
— Saia de minha entrada de carros, por favor, adjunto.
Ele me olhou por um momento mais, obviamente procurando a
perfeita fala final sem encontrá-la. Precisava do sr. Escritor Esperto para
ajudá-lo, só isso.
— Estarei observando o senhor na sexta-feira — disse.
— Isso significa que vai me pagar o almoço? Não se preocupe, sou
um convidado bastante barato.
Suas bochechas avermelhadas escureceram um pouco mais, e pude
ver que aparência teriam quando ele tivesse 60 anos, se não abandonasse o
álcool naquele meio-tempo. Ele voltou ao Ford e subiu por minha entrada de
carros tão bruscamente que os pneus guincharam. Fiquei onde estava,
observando-o se afastar. Depois que rumou de volta à estrada 42 para a
rodovia, entrei em casa. Ocorreu-me que o emprego extracurricular do
adjunto Footman devia pagar bem, já que ele podia arcar com um Rolex. Por
outro lado, talvez fosse uma imitação.
Sossegue, Mike, aconselhou a voz de Jo. A bandeira vermelha já foi
embora, ninguém está sacudindo nada à sua frente, portanto sossegue...
Calei a voz dela. Eu não queria sossegar; queria desassossegar. Eu
tinha sido invadido.
Fui até a mesa do saguão onde Jo e eu sempre colocávamos nossos
papéis pendentes (e nossas agendas, pensando nisso) e prendi a intimação
no quadro de comunicados por um canto de sua capa amarelo-clara com
uma tachinha. Então levantei a mão até os olhos, contemplei a aliança de
casamento no dedo e depois dei um soco na parede acima da estante.
Soquei com força suficiente para que uma fila inteira de livros pulasse.
Pensei nas calças largas e na bata da Kmart de Mattie Devore, depois no
sogro dela pagando 4 milhões e 250 mil dólares pelo Warrington’s,
assinando um maldito cheque pessoal. Pensei em Bill Dean dizendo que, de
um modo ou de outro, a garotinha cresceria na Califórnia.
Andei para a frente e para trás pela casa, ainda fumegando, e
finalmente terminei na frente da geladeira. O círculo de ímãs era o mesmo,
mas as letras de dentro tinham mudado. Em vez de
oi
       agora eram
ajud el

— Ajude? — eu disse, e assim que ouvi a palavra em voz alta,
compreendi. As letras na geladeira consistiam em um só alfabeto (não,
nem isso; o g e o h tinham sido perdidos em algum lugar) e eu teria que
conseguir outros. Se a frente da minha geladeira ia se tornar um tabuleiro
Ouija, eu precisava de um bom suprimento de letras. Sobretudo vogais.
Enquanto isso, movi a letra a colocando-a depois do l e então li: jud ela

Embaralhei o círculo de ímãs de frutas e legumes com a palma da
mão, espalhei as letras e continuei a andar. Eu tinha tomado a decisão de
não me meter entre Devore e a nora, mas havia acabado entre eles, de
qualquer maneira. Um adjunto com roupas de Cleveland apareceu na minha
casa, complicando uma vida que já tinha seus problemas... e me assustando
um pouco, ainda por cima. Mas pelo menos era medo de algo que eu podia
ver e entender. De repente cheguei à conclusão de que desejava passar o
verão fazendo coisa melhor do que me preocupar com fantasmas, crianças
que choravam e o que minha mulher havia feito quatro ou cinco anos
atrás... se é que havia feito mesmo alguma coisa. Eu não conseguia
escrever livros, mas isso não queria dizer que tinha que ficar me ocupando de coisas absolutamente horrorosas.
 Ajude ela.
Resolvi pelo menos tentar.


— Agência Literária Harold Oblowski.
— Venha para Belize comigo, Nola — eu disse. — Preciso de você.
Vamos fazer amor lindamente à meia-noite, quando a lua cheia deixa a
praia clara como um marfim.
— Olá, sr. Noonan — disse ela. Nola não tinha nenhum senso de
humor. Também não tinha nenhum senso de romance. De certo modo, isso
a tornava perfeita para a agência Oblowski. — Gostaria de falar com
Harold?
— Se ele estiver.
— Está sim. Um momento, por favor.
O bom de ser um autor de best-sellers — mesmo um cujos livros só
aparecem, em geral, entre os 15 mais vendidos — é que seu agente sempre
está. Outra coisa boa é que, se ele está passando as férias em Nantucket,
também estará ao telefone lá. Uma terceira coisa é que o tempo que se
passa esperando ao telefone é geralmente muito curto.
— Mike! — exclamou ele. — Como vai o lago? Pensei em você o fim
de semana inteiro!
É, pensei eu, e as vacas também voam.
— As coisas estão bem em geral e desagradáveis nos detalhes,
Harold. Preciso falar com um advogado. Pensei primeiro em chamar Ward
Hankins para uma recomendação, mas cheguei à conclusão de que queria
alguém um pouco mais dinâmico do que Ward provavelmente conheceria.
Alguém com dentes afiados e um apetite por carne humana seria ótimo.
Desta vez Harold não se preocupou com a longa pausa de rotina.
— O que é que há, Mike? Está com problemas?
Bata uma vez para sim, duas para não, pensei, e por um momento
alucinado imaginei realmente fazer só isso. Lembro que quando terminei a
biografia de Christy Brown, Down all the days, cogitei como seria escrever
um livro inteiro com a caneta presa entre os dedos do pé esquerdo. Agora
imaginava como seria passar a eternidade sem nenhum modo de
comunicação a não ser bater na parede do porão. E mesmo assim só
algumas pessoas poderiam ouvir e entender você... e mesmo essas pessoas
apenas em determinados momentos.
Jo, era você? E se era, por que me respondeu das duas maneiras?
— Mike? Você está aí?
— Estou. O problema realmente não é meu, portanto sossega o
facho. Mas estou de fato com um problema. Seu homem principal é
Goldacre, não é?
— É. Vou chamá-lo ime...
— Mas ele lida principalmente com leis contratuais. — Eu pensava
alto agora, e quando fiz uma pausa Harold não a preencheu. Às vezes ele é
um sujeito legal. Na maioria das vezes, aliás. — Ligue para ele, de qualquer
modo, está bem? Diga que preciso falar com um advogado com um bom
conhecimento prático legal sobre custódia infantil. Diga a ele para me pôr
em contato com o melhor que estiver livre para assumir um caso
imediatamente. Um que possa estar no tribunal comigo na sexta-feira, se
for necessário.
— É paternidade? — perguntou, parecendo ao mesmo tempo
respeitoso e assustado.
— Não, custódia. — Pensei em te dizer que perguntasse toda a
história ao Advogado a Ser Nomeado Mais Tarde, mas Harold merecia coisa
melhor... e pediria para saber minha versão mais cedo ou mais tarde de
qualquer modo, pouco importando o que o advogado lhe dissesse. Fiz-lhe um
relato da minha manhã de 4 de Julho e suas consequências. Limitei-me aos
Devore, sem mencionar nada sobre vozes, crianças que choravam ou
batidas no escuro. Harold só interrompeu uma vez, e apenas quando
percebeu quem era o vilão da história.
— Você está cavando problemas — disse ele. — Sabe disso, não é?
— Estou preparado para certa quantidade deles, de qualquer modo.
Cheguei à conclusão de que quero ministrar algum castigo também, só isso.
— Você não vai ter a paz e a quietude que um escritor precisa para
fazer seu melhor trabalho — disse Harold numa voz engraçadamente
cerimoniosa. Imaginei qual seria sua reação se eu dissesse, “tudo bem, não
escrevo nada mais fascinante do que uma lista de compras desde que Jo
morreu, talvez isso me sacuda um pouco”. Mas não disse. Nunca os deixe
ver o seu suor, era o lema do clã Noonan. Alguém deveria esculpir na porta
da cripta da família, NÃO SE PREOCUPE, EU ESTOU BEM.
Então pensei: ajud el.
— Aquela moça precisa de um amigo — eu disse —, e Jo teria
querido que eu fosse amigo dela. Jo não gostava quando o pessoal pequeno
era pisoteado.
— Você acha?
— É.
— Ok, vou ver o que posso descobrir. E Mike... quer que eu apareça
para esse depoimento na sexta?
— Não. — A palavra saiu desnecessariamente abrupta e foi seguida
por um silêncio que não parecia calculado e sim magoado. — Olhe, Harold,
meu caseiro disse que a audiência de custódia será marcada logo. Se
ocorrer e você ainda quiser vir, eu te ligo. Seu apoio moral sempre me será
útil, você sabe.
— No meu caso é apoio imoral — replicou, mas pareceu animado de
novo.
Nós nos despedimos. Fui até a geladeira de novo e olhei os ímãs.
Ainda estavam espalhados, e isso foi uma espécie de alívio. Até os
espíritos precisam descansar às vezes.
Peguei o telefone sem fio, saí para o deck e afundei na cadeira onde
tinha estado na noite do 4 de Julho, quando Devore ligara. Mesmo depois da
visita que eu tinha recebido de “papai”, dificilmente podia acreditar naquela
conversa. Devore tinha me chamado de mentiroso; eu lhe disse para enfiar
meu número de telefone no rabo. Havíamos tido um grande começo como
vizinhos.
Empurrei a cadeira um pouco mais para perto da borda do deck, que
descia vertiginosamente uns 12 metros entre a parte detrás de Sara e o
lago. Procurei a mulher verde que eu tinha visto enquanto nadava, dizendo a
mim mesmo que não fosse idiota — coisas assim podem-se ver apenas de
um ângulo, fique 3 metros para um lado ou para o outro e já não há nada
para ver. Mas isso aparentemente era um caso da exceção provando a
regra. Eu estava ao mesmo tempo satisfeito e um pouco desconfortável ao
perceber que a bétula lá embaixo junto à rua também parecia uma mulher
vista do lado da terra, assim como vista do lago. Em parte devido ao
pinheiro logo atrás dela — aquele galho sem folhas projetando-se para o
norte como um ossudo braço que aponta —, mas não só isso. Daqui detrás,
os ramos brancos e as folhas estreitas ainda formavam uma mulher, e
quando o vento sacudia as partes inferiores da árvore, o verde e o prateado
giravam como saias longas.
Eu respondera não ao bem-intencionado oferecimento de Harold antes
que fosse inteiramente articulado, e enquanto olhava a mulher-árvore,
fantasmagórica por si só, soube por quê: Harold era espalhafatoso,
insensível a nuanças, e poderia espantar de susto o que quer que estivesse
ali. Eu não queria isso. Estava assustado, sem dúvida — em pé naqueles
degraus escuros e escutando as pancadas pouco abaixo de mim, eu fiquei
tremendamente aterrorizado —, mas também me senti completamente vivo
pela primeira vez em anos. Estava tocando algo em Sara que era
inteiramente além da minha experiência, e isso me fascinava.
O telefone sem fio tocou no meu colo, fazendo-me dar um pulo.
Agarrei-o, esperando Max Devore ou talvez Footman, seu lacaio coberto de
ouro. Mas era um advogado chamado John Storrow, que parecia ter se
formado bastante recentemente na Escola de Direito — tipo semana
passada. Mesmo assim, ele trabalhava para a firma de Avery, McLain e
Bernstein, na Park Avenue, e Park Avenue é um endereço bastante bom
para um advogado, mesmo um que ainda tenha alguns dentes de leite. Se
Henry Goldacre tinha dito que Storrow era bom, provavelmente era. E sua
especialidade era lei de custódia.
— Agora me diga o que está acontecendo aí — disse ele quando as
apresentações terminaram e o pano de fundo tinha que ser esboçado.
Fiz o melhor que pude, sentindo meu ânimo se erguer enquanto a
história era desfiada. Há algo estranhamente confortador em conversar com
um sujeito da lei quando o relógio das horas cobráveis começou a correr;
você já ultrapassou o ponto mágico em que um advogado se torna o seu
advogado. Seu advogado é caloroso, solidário, faz anotações num bloco
amarelo e concorda com a cabeça em todos os momentos certos. A
maioria das perguntas que seu advogado faz são perguntas a que você pode
responder. E se você não puder, por Deus, seu advogado o ajudará a
encontrar um modo de fazê-lo. Ele está sempre do seu lado. Seus inimigos
são os inimigos dele. Para ele, você nunca é merda, sempre tem
importância.
Quando terminei, John Storrow disse:
— Puxa. Estou surpreso de a imprensa não ter pulado em cima disso.
— Nunca me ocorreu — falei. Mas entendi o que ele queria dizer. A
saga da família Devore não era para o New York Times ou para o Boston
Globe, provavelmente nem mesmo para o Derry News, mas em tabloides
semanais de supermercado, como o National Enquirer ou o Inside View,
cairia como uma luva: em vez da moça, King Kong resolve arrebatar a
inocente filha da moça e levá-la com ele para o alto do Empire State
Building. Argh, entregue essa criança, seu bruto. Não era material de
primeira página nem fotografias com sangue ou de celebridades no
necrotério, mas como um chamariz na página nove funcionaria muito bem.
Compus mentalmente uma manchete trombeteando sobre as fotos do
Warrington’s Lodge e o enferrujado trailer duplo de Mattie lado a lado: REI
DOS COMPUTADORES VIVE NO LUXO ENQUANTO TENTA TIRAR A FILHA
ÚNICA DE JOVEM BONITA . Provavelmente comprido demais, decidi. Não
estava mais escrevendo e ainda precisava de um editor de texto. Isso era
muito triste, quando se pensava a respeito.
— Talvez em algum momento vejamos isso acontecer — disse
Storrow num tom divertido. Percebi que poderia vir a me afeiçoar àquele
sujeito, pelo menos em meu presente estado de espírito raivoso. Ele
mostrou-se mais enérgico.
— A quem estou representando aqui, sr. Noonan? O senhor ou a
moça? Aposto que é a moça.
— A moça nem sabe que eu o chamei. Ela pode achar que me
intrometi um pouquinho demais. Ela pode até me censurar.
— Por que faria isso?
— Porque é uma ianque, uma ianque do Maine, a pior espécie. Num
determinado dia, podem fazer os irlandeses parecerem lógicos.
— Talvez, mas é ela que está com o alvo pendurado na blusa. Sugiro
que ligue para ela e lhe conte.
Prometi que o faria. Também não era uma promessa difícil de
cumprir. Sabia que teria que entrar em contato com Mattie desde que tinha
aceitado a intimação do adjunto Footman.
— E quem vai assistir Michael Noonan na sexta de manhã?
Storrow riu secamente.
— Vou encontrar alguém daí para fazer isso. Ele vai até o escritório
de Durgin com o senhor, se sentará quietinho com a pasta no colo e vai
escutar. Nesse momento, é possível que eu já esteja na cidade, não vou
saber até falar com o sr. Devore, mas não vou ao escritório de Durgin.
Quando a audiência de custódia ocorrer, porém, o senhor verá meu rosto lá.
— Muito bem, ótimo. Ligue quando tiver o nome do novo advogado.
Meu outro novo advogado.
— Certo. Enquanto isso, fale com a moça. Me arranje um trabalho.
— Vou tentar.
— Tente também manter-se visível se estiver com ela — disse ele.
— Se dermos aos maus sujeitos espaço para se mostrarem maldosos, vão
fazer isso. Não há nada assim entre vocês, há? Nada maldoso? Desculpe
ter que perguntar, mas tenho que fazê-lo.
— Não — eu disse. — Há muito tempo não estou metido em nada
maldoso com alguém.
— Fico tentado a lamentar, sr. Noonan, mas nas circunstâncias...
— Mike. Me chame de Mike.
— Ótimo. Assim é melhor. Eu sou John. As pessoas vão falar sobre
o envolvimento de vocês, de qualquer modo. Sabe disso, não é?
— Claro. As pessoas sabem que posso arcar com você. Vão
especular como é que ela pode arcar comigo. Viúva bonita, viúvo de meiaidade.
Sexo pareceria a coisa mais provável.
— Você é realista.
— Na verdade, não acho que sou, mas sei a diferença entre um
falcão e um serrote.
— Espero que sim, pois a viagem pode se tornar dura. Vamos nos
colocar contra um sujeito extremamente rico. — Mesmo assim ele não
parecia amedrontado. Parecia quase... voraz. Como parte de mim se sentiu
quando vi que os ímãs na geladeira estavam novamente num círculo.
— Sei disso.
— Na Corte, isso não vai importar muito, porque há certa quantidade
de dinheiro do outro lado. Além disso, o juiz vai estar bem consciente de
que isso é um barril de pólvora. O que pode ser útil.
— Qual é a melhor coisa a nosso favor? — perguntei, ainda pensando
no rosto rosado e sem marcas de Kyra e sua total falta de medo em
presença da mãe. Fiz a pergunta pensando que John responderia que as
acusações eram nitidamente infundadas. Pensei errado.
— A melhor coisa? A idade de Devore. Ele deve ser mais velho que
Deus.
— Baseado no que ouvi no fim de semana, acho que ele deve ter 85
anos. Isso mostra que Deus é mais velho.
— É, mas como um pai em potencial ele faz Tony Randall parecer
um adolescente — disse John, e agora ele soava positivamente maldoso. —
Pense nisso, Michael: a criança se forma no ensino médio no ano em que
vovô ultrapassa os 100 anos. Além disso, há uma chance de que o velho
tenha errado por querer abarcar o mundo com as pernas. Sabe o que
significa guardião ad litem?
— Não.
— Basicamente, é um advogado que a Corte indica para proteger os
interesses da criança. Uma remuneração pelo serviço sai dos custos da
Corte, mas é uma ninharia. A maioria das pessoas que concordam em
servir como guardiães ad litem tem motivos estritamente altruísticos...
mas não todos. De qualquer modo, o ad litem mete sua própria colher no
caso. Juízes não precisam acatar o conselho do sujeito, mas quase sempre
o fazem. O juiz ia dar uma impressão de idiota se rejeitasse o conselho de
seu próprio indicado, e a coisa que um juiz mais odeia na vida é parecer
idiota.
— Devore vai ter seu próprio advogado?
John riu.
— Que tal meia dúzia na presente audiência de custódia?
— Está falando sério?
— O cara tem 85 anos. É velho demais para Ferraris, saltos radicais
no Tibete e putas, a não ser que seja um homem poderoso. Ele vai gastar
dinheiro em quê?
— Advogados — digo eu, sombrio.
— É.
— E Mattie Devore? O que é que ela tem?
— Graças a você, ela tem a mim — disse John Storrow. — É como
um romance de John Grisham, não é? Ouro puro. Enquanto isso, estou
interessado em Durgin, o ad litem. Se Devore não anda esperando
problemas de verdade, pode ter sido pouco esperto o suficiente para pôr a
tentação no caminho de Durgin. E Durgin pode ter sido suficientemente
burro para ter sucumbido. Ora, quem sabe o que podemos encontrar?
Mas eu estava uma volta atrás.
— Ela tem você. Graças a mim. E se eu não estivesse aqui para
meter minha colher? O que teria ela então?
— Bubkes. É iídiche. Significa...
— Eu sei o que significa, “nada” — eu disse. — É inacreditável.
— Não, apenas justiça americana. Você conhece a senhora com a
balança? A que fica do lado de fora dos tribunais na maioria das cidades?
— Conheço.
— Jogue umas algemas naqueles pulsos largos e fita adesiva em sua
boca para combinar com a venda nos olhos, viole-a e arraste-a pela lama.
Gosta da imagem? Eu não, mas é uma representação justa de como a lei
funciona nos casos de custódia em que o reclamante é rico e o réu, pobre.
E a igualdade sexual, na verdade, a tem deixado muito pior, pois embora as
mães ainda tendam a ser pobres, não são mais encaradas como a escolha
automática para a custódia.
— Mattie Devore tem que ter você, não é?
— É — disse John simplesmente. — Ligue para mim amanhã e diga
que ela concordou.
— Espero poder fazê-lo.
— Eu também. E ouça, há mais uma coisa.
— O quê?
— Você mentiu para Devore ao telefone.
— Besteira!
— Não, não, detesto contradizer o autor preferido de minha irmã,
mas você mentiu e sabe disso. Você disse a Devore que mãe e filha tinham
saído juntas, que a garota estava colhendo flores e tudo estava bem. Você
colocou tudo lá, a não ser Bambi e Tambor.
Eu estava sentado reto em minha cadeira do deck agora. Sentia-me
como se tivesse levado uma violenta pancada numa emboscada. Senti
também que minha própria esperteza havia sido sobrepujada.
— O que é isso, não, pense melhor. Eu nunca disse coisa alguma.
Disse a ele que achava. Usei a palavra mais de uma vez. Lembro
nitidamente disso.
— Bem, se ele estava gravando a conversa, você vai ter
oportunidade de contar quantas vezes a usou.
No início, não respondi. Estava rememorando a conversa que tive
com Devore, recordando o zumbido na linha telefônica, o zumbido
característico de que me lembrava em todos os meus verões anteriores em
Sara Laughs. Aquele baixo e contínuo mmmmmm tinha sido mais
perceptível na noite de sábado?
— Acho que talvez pudesse estar sendo gravado — eu disse com
relutância.
— É. E se o advogado de Devore levar a gravação para o ad litem, o
que acha que vai parecer?
— Cauteloso — eu disse. — Talvez como um homem com algo a
esconder.
— Ou um homem desfiando lorotas. E você é bom nisso, não é?
Afinal de contas, é o que faz para ganhar a vida. Na audiência de custódia,
o advogado de Devore estará apto a mencionar isso. Se ele apresentar
então uma das pessoas que passaram por vocês logo depois da chegada de
Mattie à cena... uma pessoa testemunhando que a moça parecia aborrecida
e agitada... o que acha que você vai parecer?
— Um mentiroso — eu disse. — Ah, porra.
— Não tenha medo, Mike. Anime-se.
— O que devo fazer?
— Inutilize as armas deles antes que possam atirar. Conte a Durgin
exatamente o que aconteceu. Faça constar do depoimento. Sublinhe o fato
de que a meninazinha achava que estava andando com segurança.
Certifique-se de mencionar o andar pela linha. Adoro isso.
— Aí, se tiverem uma gravação, vão tocá-la e eu vou parecer um
idiota que cada hora conta uma história diferente.
— Acho que não. Você não era uma testemunha sob juramento
quando falou com Devore, era? Você estava sentado no seu deck e cuidando
de suas coisas, assistindo à exibição de fogos de artifício. De repente, sem
quê nem por quê, esse velho estúpido e ranzinza liga para você. Começa
com o palavrório. Você nunca deu seu número de telefone a ele, deu?
— Não.
— Seu número que não está na lista.
— Não.
— E por mais que tenha dito que era Maxwell Devore, poderia ser
qualquer um, não é?
— É.
— Até o xá do Irã.
— Não, o xá do Irã já morreu.
— Bem, então o xá do Irã está fora. Mas poderia ser um vizinho
intrometido... ou um brincalhão.
— É.
— E você disse o que disse com todas essas possibilidades em
mente. Mas agora que você é parte de um procedimento oficial da Corte,
está dizendo toda a verdade e nada mais que a verdade.
— Pode apostar. — Aquela ótima sensação de meu-advogado tinha
me abandonado por um momento, mas voltava agora com força total.
— Não se pode fazer melhor do que dizer a verdade, Mike — disse
solenemente. — Exceto em alguns poucos casos, e este não é um deles.
Estamos entendidos nisso?
— Sim.
— Muito bem, terminamos. Quero ter notícias de você ou de Mattie
Devore por volta das 11 amanhã. Seria melhor que fosse ela.
— Vou tentar.
— Se ela recusar, você sabe o que fazer, não sabe?
— Acho que sim. Obrigado, John.
— De um modo ou de outro, vamos nos falar muito em breve —
disse ele, e desligou.
Fiquei ali sentado por algum tempo. Empurrei uma vez o botão que
abria a linha do telefone sem fio, depois apertei-o de novo para fechá-lo. Eu
tinha que falar com Mattie, mas não estava suficientemente pronto ainda.
Em vez disso, resolvi dar uma volta.
Se ela recusar, você sabe o que fazer, não sabe?
Claro. Lembrá-la de que não pode se dar ao luxo de ser orgulhosa.
Que não pode se dar ao luxo de bancar a ianque completa, recusando a
caridade de Michael Noonan, autor de Sendo dois, O homem da camisa
vermelha e o livro que logo seria publicado, A promessa de Helen. Lembrá-la de que poderia ficar com o orgulho ou com a filha, mas provavelmente não com os dois.
  Ei, Mattie escolha uma


Caminhei quase até o final da estrada, parando no prado de Tidwell com
sua bonita vista descendo até a parte do lago em formato de taça, e além
dele até as White Mountains. A água sonhava sob um céu enevoado,
parecendo cinzento quando você inclinava a cabeça para um lado, e azul, se
a inclinava para o outro. Aquela sensação de mistério estava muito comigo.
A sensação de Manderley.
Mais de quarenta negros haviam se estabelecido aqui na virada do
século — pousado aqui por um tempo, de qualquer modo —, segundo Marie
Hingerman (também segundo Uma história do condado de Castle e Castle
Rock, um tomo pesado publicado em 1977, o ano do bicentenário do
condado). Negros bastante especiais; a maioria deles bem relacionados; a
maioria, talentosos; a maioria formando um grupo musical inicialmente
chamado The Red-Top Boys, depois Sara Tidwell e depois apenas Red-Top
Boys. Haviam comprado o prado e uma terra de bom tamanho perto do lago
de um homem chamado Douglas Day. O dinheiro fora poupado por mais de
dez anos, segundo Sonny Tidwell, que foi quem conseguiu a barganha (como
um Red-Top, Son Tidwell tocara o que ficou conhecido como “guitarra
arranhada”).
Tinha havido um tremendo alvoroço na cidade, e até uma reunião
para protestar pelo “advento desses escurinhos, que chegam numa horda”.
As coisas tinham se aquietado e tudo ficou bem, como frequentemente
costuma ficar. Nunca houve a cidade de palhoças que a maioria dos
habitantes locais tinha esperado que surgisse na colina de Day (como o
prado de Tidwell era chamado em 1900, quando Son Tidwell comprou a
terra em benefício de seu extenso clã). Em vez disso, um número de
arrumadas cabanas brancas espalhou-se, rodeando uma construção mais
ampla que poderia ter sido feita como um local para reunião de grupo, uma
área de ensaio ou talvez, em algum momento, uma sala para atuações.
Sara e os Red-Top Boys (às vezes havia uma Red-Top Girl lá
também; a participação na banda era fluida, mudando com cada atuação)
tocaram por todo o Maine ocidental por mais de um ano, talvez quase dois
anos. Para cima e para baixo em cidades da linha ocidental — Farmington,
Skowhegan, Bridgton, Gates Falls, Castle Rock, Motton, Fryeburg — ainda se
pode encontrar seus velhos pôsteres de show em bazares, celeiros e outros
buracos. Sara e os Red-Top Boys eram grandes favoritos do circuito, e se
deram muito bem na TR também, o que nunca me surpreendeu. No final
das contas, Robert Frost — esse poeta utilitarista e frequentemente
desagradável — estava certo: no Nordeste dos EUA realmente acreditamos
que boas cercas fazem bons vizinhos. Nós grasnamos e depois mantemos
uma paz mesquinha, do tipo olhar agudo e penetrante e boca repuxada para
baixo. “Eles pagam suas contas”, dizemos. “Nunca tive que atirar num de
seus cachorros”, dizemos. “Eles ficam quietos no seu canto”, dizemos,
como se isolamento fosse uma virtude. E, claro, a virtude definidora: “Eles
não aceitam caridade.”
E, em algum momento, Sara Tidwell tornou-se Sara Laughs.
Finalmente, porém, a TR-90 não deve ter sido o que desejavam,
porque depois de tocar uma ou duas vezes numa feira do condado no final
do verão de 1901, o clã se mudou. Suas pequenas e arrumadas cabanas
forneceram renda por meio de aluguéis de verão para a família Day até
1933, quando se queimaram nos incêndios de verão que devastaram os
lados leste e norte do lago. Fim da história.
Exceto pela música de Sara, é claro. Sua música continuara viva.
Levantei da rocha onde estava sentado, estiquei os braços e as
costas e caminhei de volta pela pista, cantando uma de suas canções enquanto andava.

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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