da última, e o aviso na porta do motorista era igual ao que eu me
lembrava: WILLIAM “BILL” DEAN — CASEIRO — CARPINTARIA LEVE, além
de seu número de telefone. Fui para o alpendre de trás para me encontrar
com ele, a xícara de café na mão.
— Mike! — exclamou Bill, deixando o volante. Homens ianques não
se abraçam, é uma obviedade que se pode colocar ao lado de “caras durões
não dançam” e “homens de verdade não comem quiche”, mas Bill sacudiu
minha mão com força suficiente para fazer espirrar o café da xícara quase
vazia, e me deu uma vigorosa palmada nas costas. Seu sorriso revelou uma
dentadura falsa esplendidamente espalhafatosa, do tipo que costumava ser
chamada de Roebuckers porque eram compradas pelo catálogo. Ocorreu-me
de passagem que meu velho interlocutor do Armazém Lakeview poderia
usar uma igual. Certamente teria melhorado a hora das refeições para o
velho intrometido. — Mike, você é um colírio para os olhos!
— Também acho bom te ver — eu disse, sorrindo. Não era um falso
sorriso; sentia realmente aquilo. As coisas que podem apavorar
completamente a pessoa numa meia-noite de relâmpagos na maioria dos
casos parecem apenas interessantes à luz brilhante de uma manhã de
verão. — Você está com uma boa aparência, meu amigo.
Era verdade. Embora quatro anos mais velho e um pouco mais
grisalho nas beiras, Bill era o mesmo. Sessenta e cinco? Setenta? Não tinha
importância. Não havia nele nenhuma aparência de cera que denotasse má
saúde, e nenhum definhamento no rosto, sobretudo em torno dos olhos e
nas maçãs do rosto, que eu associava com debilidade invasora.
— Você também — disse ele, soltando minha mão. — Todos
sentimos muito por Jo, Mike. O pessoal na cidade adorava ela. Foi um
choque, sendo ela tão jovem. Minha esposa me pediu para te dar
especialmente seus pêsames. Jo fez para ela uma manta no ano em que
ela teve pneumonia, e Yvette nunca se esqueceu disso.
— Obrigado — eu disse, e minha voz não soou como a minha por um
ou dois segundos. A impressão é que na TR minha mulher praticamente não
havia morrido. — E agradeça a Yvette também.
— Certo. Está tudo bem com a casa? Quero dizer, com exceção do
ar-condicionado. É uma coisa de doido! Na Western Auto me prometeram
aquela peça na semana passada, e agora estão dizendo que talvez não a
consigam antes de 1º de agosto.
— Tudo bem. Trouxe o meu PowerBook. Se eu quiser usá-lo, a mesa
da cozinha vai servir. — E eu ia querer usá-lo... tantas palavras cruzadas,
tão pouco tempo.
— Encontrou tudo certo com sua água quente?
— Está tudo bem, mas há um problema.
Parei. Como é que se diz ao caseiro que se acha que sua casa está
assombrada? Provavelmente não há nenhum modo bom; provavelmente o
melhor a fazer era ir em frente. Eu tinha coisas a perguntar, mas não
queria apenas ficar rodeando o assunto e ser tímido. Para começo de
conversa, Bill perceberia. Ele podia ter comprado a dentadura de um
catálogo, mas não era burro.
— O que está na sua cabeça, Mike? Diga.
— Não sei como você vai receber isso, mas...
Ele sorriu à maneira de um homem que subitamente entende e
levantou a mão.
— Acho que já sei.
— Sabe? — Senti uma tremenda sensação de alívio e mal pude
esperar para descobrir qual seria a experiência dele com Sara, talvez
enquanto estivesse checando as lâmpadas para saber se estavam
queimadas, ou enquanto fora certificar-se de que o telhado aguentava bem
a neve. — O que é que você soube?
— Principalmente o que Royce Merrill e Dickie Brooks têm contado
— disse ele. — Fora isso, não sei muito mais. Eu e mamãe estávamos na
Virgínia, lembre-se. Só voltamos na noite passada, por volta das oito da
noite. Mesmo assim, é o grande assunto lá da loja.
Por um momento continuei tão fixado em Sara Laughs que não tive
ideia do que ele estava falando. Só podia pensar que o pessoal estivesse
fofocando sobre os barulhos estranhos na minha casa. Então o nome de
Royce Merrill deu um estalo e tudo o mais foi para o lugar junto com ele.
Merrill era o sujeito idoso com a bengala de castão de ouro e a piscadela
sacana. O velho Quatro Dentes. Meu caseiro não estava falando de ruídos
fantasmagóricos; falava sobre Mattie Devore.
— Vou te fazer uma xícara de café — eu disse. — Preciso que você
me diga onde é que estou pisando aqui.
Quando estávamos sentados no deck, eu com café fresco e Bill com uma
xícara de chá (“O café me queima nas duas pontas hoje em dia”, disse ele),
pedi primeiro que me contasse a versão Royce Merrill-Dickie Brooks de
meu encontro com Mattie e Kyra.
Revelou-se melhor do que eu esperava. Os dois velhos tinham me
visto em pé ao lado da estrada com a meninazinha nos braços, e haviam
observado meu Chevy estacionado com a porta do motorista aberta, mas
aparentemente nenhum deles tinha visto Kyra usando a linha branca da rota
68 como uma corda bamba para caminhar. Como para compensar isso,
porém, Royce afirmou que Mattie me dera um grande abraço de meu herói,
e um beijo na boca.
— Ele chegou à parte em que eu a agarrei pela bunda e enfiei a
língua em sua boca?
Bill deu um sorriso.
— A imaginação de Royce não vai a tanto desde que ele fez 50 anos
ou coisa assim, e isso foi há quarenta anos ou mais.
— Nunca toquei nela. — Bem... tinha havido aquele momento em que
o dorso da minha mão deslizara pela curva de seu seio, mas fora sem
querer, fosse lá o que a própria moça pudesse ter pensado.
— Pombas, não precisa me dizer isso — falou —, mas...
Disse aquele mas da mesma maneira que minha mãe, deixando-o se
estender como a cauda de uma pipa agourenta.
— Mas o quê?
— Seria bom você ficar distante dela — disse. — É muito simpática,
quase uma moça daqui, sabe, mas é um problema. — Fez uma pausa. —
Não, isso não é muito justo com ela. Ela está com problemas.
— O velho quer a custódia da criança, não é?
Bill pousou a xícara no parapeito do deck e me olhou com as
sobrancelhas levantadas. Reflexos do lago subiam por seu rosto em
pequenas ondas, dando-lhe uma aparência exótica.
— Como é que você sabe?
— Um palpite, mas da espécie informada. O sogro dela me ligou no
sábado à noite durante os fogos. E apesar de ele não ter tocado na questão
nem declarado seu objetivo, duvido que Max Devore tenha voltado todo esse
caminho até a TR-90 no Maine ocidental para um acordo de recompra do
jipe e do trailer de sua nora. Então, qual é o caso, Bill?
Por algum tempo, ele apenas me olhou. Era quase o olhar de um
homem que sabe que você contraiu uma doença séria, mas não tem
certeza de quanto deve lhe contar. Ser olhado daquela maneira me deixou
profundamente desconfortável. Também me fez sentir que eu podia estar
colocando Bill Dean em xeque. Devore tinha raízes ali, afinal de contas. E
por mais que Bill gostasse de mim, eu não tinha essas raízes. Jo e eu
éramos de longe. Poderia ser pior — poderia ter sido Massachusetts ou
Nova York —, mas Derry, embora no Maine, ainda era distante.
— Bill? Alguma instrução de navegação seria útil para mim se você...
— Você vai preferir ficar fora do caminho dele — disse. Seu sorriso
fácil desaparecera. — O homem está louco.
Por um momento pensei que Bill só queria dizer que Devore estava
irritado comigo, mas a seguir dei outra olhada no rosto dele. Cheguei à
conclusão de que não era isso que Bill dissera, ele usara a palavra “louco”
no sentido mais literal.
— Louco como? — perguntei. — Louco como Charles Manson? Como
Hannibal Lecter? Como?
— Digamos como Howard Hugues — disse ele. — Alguma vez já leu
as histórias sobre ele? Até que ponto ele ia para conseguir as coisas que
queria? Pouco importava se era um tipo especial de cachorro-quente só
vendido em Los Angeles ou um projetista de avião que queria roubar da
Lockheed ou da McDonnell-Douglas, ele tinha que conseguir o que desejava e
não descansava enquanto essa coisa não estivesse nas suas mãos. Devore
é assim também. Sempre foi, mesmo quando garoto era voluntarioso,
segundo as histórias que se ouvem na cidade.
“Meu próprio pai tinha uma que costumava contar — ele continuou.
— Dizia que, num inverno, o pequeno Max Devore arrombou o galpão de
arreios de Scant Larribee porque queria o Flexible Flyer que Scant tinha dado
ao filho Scooter de Natal. Isso deve ter sido por volta de 1923. Devore
cortou as duas mãos no vidro quebrado, disse papai, mas conseguiu o trenó.
Eles o encontraram perto da meia-noite deslizando pela Sugar Maple Hill
abaixo, levantando as mãos junto ao peito enquanto descia. Estava com as
luvas e a roupa para neve ensanguentadas. Você ouvirá outras histórias
sobre Max Devore quando criança; se perguntar, vai ouvir cinquenta
histórias diferentes, e algumas podem ser verdadeiras. Mas essa sobre o
trenó é verdadeira. Aposto a fazenda nela. Porque meu pai não mentia. Era
contra sua religião.”
— Batista?
— Não, senhor, ianque.
— Mas 1923 foi há séculos, Bill. Às vezes as pessoas mudam.
— É, mas a maioria não. Não vejo Devore desde que ele voltou e se
mudou para o Warrington’s, portanto, não posso dizer com certeza, mas
soube de coisas que me fazem pensar que, se ele mudou, foi para pior. Não
atravessou o país porque queria umas férias. Ele quer a criança. Para ele,
ela é apenas outra versão do trenó de Scooter Larribee. E meu conselho de
amigo para você é: não queira ser o vidro da janela entre ele e ela.
Beberiquei meu café e olhei para o lago. Bill me deu tempo para
pensar, esfregando com a sola de uma de suas botas de trabalho um cocô
de passarinho nas tábuas enquanto eu pensava. Titica de corvo, penso eu;
só corvos defecam em borrifos tão compridos e exuberantes.
Uma coisa parecia absolutamente certa: Mattie Devore estava a uns
15 quilômetros Rio da Merda adentro e sem nenhum remo. Não sou o cínico
que fui aos 20 anos — alguém é? —, mas também não era suficientemente
ingênuo ou idealista para acreditar que a lei protegeria a srta. Trailer Duplo
contra o sr. Computador... Não se o sr. Computador resolvesse jogar sujo.
Quando garoto, ele pegara o trenó que queria e saíra para deslizar de trenó
à meia-noite, sem dar a mínima para as mãos que sangravam. E quando
adulto? Um velho que vinha pegando cada trenó que queria pelos últimos
quarenta anos mais ou menos?
— Bill, qual é o caso com Mattie? Conte-me.
Ele não levou muito tempo. As histórias do campo são, em geral, histórias
simples. O que não quer dizer que não sejam frequentemente interessantes.
Mattie Devore começara a vida como Mattie Stanchfield, não
exatamente na TR, mas logo depois da linha em Motton. Seu pai fora
lenhador; a mãe, esteticista que atendia em casa (o que tornava o
casamento deles, de um modo desagradável, o perfeito casamento do
campo). Tinham três filhos. Quando Dave Stanchfield perdeu o controle
numa curva em Lovell e entrou com um caminhão cheio de toras de
madeira no lago Kewadin, sua viúva “ficou de coração partido”, como se diz.
E morreu logo depois. Não havia qualquer seguro além do que Stanchfield
tinha sido obrigado a fazer de seu caminhão e seu trator para içar troncos.
Por falar dos Irmãos Grimm, hein? Tire os brinquedos da Fisher-Price
detrás da casa, os dois secadores de cabelo de pé no salão de beleza do
porão, o velho Toyota comido de ferrugem na entrada de carros e você terá
chegado lá: Era uma vez uma pobre viúva e seus três filhos.
Mattie é a princesa da história — pobre, mas bonita (que era bonita
eu podia testemunhar pessoalmente). Agora entra o príncipe. Nesse caso,
ele é um ruivo, desajeitado e gago chamado Lance Devore. O filho dos anos
do ocaso de Max Devore. Quando Lance encontrou Mattie, tinha 21 anos.
Ela, acabado de fazer 17. O encontro aconteceu no Warrington’s, onde
Mattie conseguiu um emprego de verão como garçonete.
Lance Devore instalara-se no outro lado do lago, na Upper Bay, mas
nas noites de terça-feira havia jogos de softbol no Warrington’s, o pessoal
da cidade contra o pessoal de verão, e ele geralmente vinha de canoa para
jogar. O softbol é uma grande coisa para os Lances Devore do mundo;
quando você está em pé no quadrilátero com um bastão na mão, não tem
importância se é desengonçado e desajeitado. E claro que não tem
importância se você é gago.
— Ele confundia bastante o pessoal lá no Warrington’s — disse Bill.
— Não sabiam a que time pertencia, se ao dos Locais ou aos De Fora.
Lance não se importava; qualquer lado estava bom para ele. Algumas
semanas jogava por um, outras semanas por outro. Qualquer um dos dois
também ficava muito contente de tê-lo, já que ele batia bem à beça e
trabalhava o campo que era uma beleza. Ele era colocado muito na primeira
base porque era alto, mas lá ele era um desperdício. Na segunda... minha
nossa! Pulava e girava como aquele cara, Noriega.
— Você quer dizer Nureyev — eu disse.
Bill deu de ombros.
— A questão é que Lance era uma coisa. E todo o pessoal gostava
dele. Ele se ajustava. Quem joga é principalmente o pessoal jovem, você
sabe, e para eles o que importa é como você faz, não quem você é. Além
disso, um monte deles não sabe a diferença entre Max Devore e um buraco
no chão.
— A não ser que leiam o Wall Street Journal e as revistas de
computadores — eu disse. — Neles, você depara tanto com o nome Devore
como com o nome de Deus na Bíblia.
— Está brincando?
— Bem, acho que, nas revistas de computadores, Deus geralmente é
mais chamado de Gates, mas você entende o que eu quero dizer.
— É. Mesmo assim, há 65 anos Max Devore não passa uma
temporada verdadeira na TR. Sabe o que aconteceu quando ele foi embora,
não sabe?
— Não, por que saberia?
Olhou-me surpreso. Então uma espécie de véu caiu sobre seus olhos.
Ele pestanejou e o véu se dissipou.
— Eu te conto outra hora, não é segredo nenhum, mas preciso estar
nos Harriman por volta das 11 para checar a bomba do poço coletor. Não
quero me desviar da coisa. O que eu queria dizer era o seguinte: Lance
Devore era aceito como um rapaz simpático que podia lançar a bola de
softbol 100 metros adentro, se a pegasse de jeito. Não havia ninguém velho
o suficiente para usar o pai de Lance contra ele, não em Warrington’s nas
noites de sábado, e ninguém também jogava na cara dele que sua família
tinha grana. Que droga, tem um monte de gente rica aqui no verão. Você
sabe disso. Nenhuma tão rica quanto Max Devore, mas ser rico é só uma
questão de grau.
Isso não era verdade, e eu tinha dinheiro suficiente para saber disso.
A riqueza é como a escala Richter — quando se passa além de certo ponto,
os saltos de um nível para o próximo não são duplos ou triplos, mas
múltiplos, tão surpreendentes e desastrosos que não se quer nem pensar a
respeito. Fitzgerald percebeu-o bem, embora eu ache que não acreditava no
próprio insight: os muito ricos são diferentes de você e de mim. Pensei em
dizer isso a Bill e decidi manter minha boca fechada. Ele tinha uma bomba para consertar.
Os pais de Kyra se conheceram diante de um barrilete de cerveja enfiado
numa poça de lama. Mattie passava o habitual barrilete pelo campo de
softbol da construção principal num carrinho de mão. Ela o conduziu sem
problemas pela maior parte do caminho, vindo da ala do restaurante, mas
como tinha chovido forte naquela semana, o carro finalmente atolou num
lugar mole. O time de Lance atacava, e ele estava sentado no final do
banco, esperando sua vez para bater. Então viu a garota de short branco e
camisa polo azul do Warrington’s lutando com o carrinho de mão atolado e
se levantou para ajudá-la. Três semanas depois estavam inseparáveis, e
Mattie grávida; dez semanas depois estavam casados. Trinta e sete meses
depois, Lance Devore foi colocado num caixão, morto para o softbol e para
a cerveja gelada numa noite de verão, morto para a paternidade, morto para
o amor da bela princesa. Simplesmente outro final prematuro suspendendo
o felizes-para-sempre.
Bill Dean não me descreveu o encontro deles em detalhes. Apenas
dissera: “Eles se encontraram no campo de jogo — ela estava passando a
cerveja e ele a ajudou a desatolar o carrinho que levava.”
Mattie nunca falou muito sobre essa parte, portanto, não sei muito.
Só que eu sei... e embora alguns detalhes possam estar errados, aposto um
dólar contra cem que a maior parte deles está certa. Aquele era o meu
verão de saber coisas que não eram da minha conta.
Para começar, está quente — o verão de 1994 é o mais quente da
década, e julho é o mês mais quente do verão. O presidente Clinton está
tendo a cena roubada pelo congressista Newt e pelos republicanos. O
pessoal anda dizendo que o velho Slick Willie pode não concorrer a um
segundo mandato. Considera-se que Boris Yeltsin está morrendo de
problemas cardíacos ou numa clínica de desintoxicação. O time dos Red
Sox anda parecendo melhor do que têm qualquer direito de parecer. Em
Derry, Johanna Arlen Noonan talvez esteja começando a se sentir um pouco
enjoada pela manhã. Se isso está ocorrendo, ela não conta para o marido.
Vejo Mattie com a camisa polo azul com seu nome costurado em
branco acima do seio. O short branco faz um agradável contraste com suas
pernas bronzeadas. Também a vejo usando um boné azul que lhe fora dado,
com o W vermelho do Warrington’s acima da pala longa do boné. Seu bonito
cabelo louro-escuro passa através do furo na parte detrás do boné e cai até
o colarinho da camisa. Vejo que ela tenta puxar o carrinho da lama sem
derrubar o barrilete de cerveja. Sua cabeça está abaixada; a sombra lançada
pela pala do boné obscurece-lhe todo o rosto, exceto a boca e o pequeno
queixo.
— De-de-dei-xa eu-a-a-ajudar — diz Lance, e ela ergue os olhos. A
sombra lançada pela pala do boné desaparece, ele vê seus grandes olhos
azuis, os que ela vai passar para a filha deles. Um vislumbre daqueles olhos
e a batalha está ganha sem um único tiro disparado; ele pertence a ela tão
seguramente quanto qualquer rapaz já pertenceu a qualquer moça.
O resto, como dizem por aqui, foi só cortejar.
O velho tinha três filhos, mas Lance era o único com quem ele
parecia se importar. (“A filha é completamente pirada...”, disse Bill sem
rodeios. “Em alguma ridícula academia na Califórnia. Ouvi dizer também
que teve câncer.”) O fato de Lance não mostrar nenhum interesse por
computadores e softwares na realidade parecia agradar ao pai. Ele tinha
outro filho capaz de tocar o negócio. Fora isso, porém, o meio-irmão mais
velho de Lance Devore era totalmente incapaz: por parte dele não haveria
neto nenhum.
— Veado — disse Bill. — Parece que tem um monte desses lá na
Califórnia.
Havia também uma boa quantidade ali mesmo na TR, eu imaginava,
mas achei que não cabia a mim oferecer instrução sexual a meu caseiro.
Lance Devore tinha frequentado a Reed College, no Oregon,
formando-se em Reflorestamento — o tipo do sujeito que se apaixona por
calças de flanela verde, suspensórios vermelhos e a visão de condores ao
alvorecer. Um lenhador dos Irmãos Grimm, descontando-se o jargão
acadêmico. No verão entre seu penúltimo e o último ano de faculdade, o pai
o tinha convocado ao complexo residencial da família em Palm Springs e o
presenteado com uma valise de advogado quadrada apinhada de mapas,
fotos aéreas e documentos legais. Estavam fora de ordem, pelo que Lance
podia ver, mas duvido que se importasse com isso. Imagine um
colecionador de histórias em quadrinhos que ganhe um caixote com
exemplares antigos e raros do Pato Donald. Imagine um colecionador de
filmes recebendo o copião nunca distribuído de um estrelado por Humphrey
Bogart e Marilyn Monroe. Agora imagine o nosso jovem amante de florestas
percebendo que o pai possui não apenas hectares ou quilômetros quadrados
nas vastas florestas não fomentadas do Maine ocidental, mas regiões
inteiras.
Embora Max Devore tivesse partido da TR em 1933, havia
conservado um vivo interesse pela área onde crescera, mantendo
assinaturas de jornais da região e comprando revistas como Down East e o
Maine Times. No início dos anos 1980, começara a comprar longas faixas
de terra bem a leste da fronteira Maine-New Hampshire. Deus sabe que
havia muitas à venda; as companhias de papel que possuíam a maior parte
delas haviam caído num poço de recessão, e muitas se haviam convencido
de que o melhor lugar para começar a cortar despesas seria em suas
holdings e operações da Nova Inglaterra. Assim, essa terra, roubada dos
índios e retalhada impiedosamente nos anos 1920 e 1950, havia passado às
mãos de Max Devore. Ele pode tê-la comprado porque simplesmente estava
lá, um bom negócio com que podia arcar e do qual poderia tirar vantagem.
Pode tê-la comprado como modo de demonstrar a si mesmo que realmente
sobrevivera à sua infância; que tinha, na verdade, triunfado sobre ela.
Ou pode tê-la comprado como um brinquedo para o amado filho mais
novo. Nos anos em que Devore efetuava suas maiores compras no Maine
ocidental, Lance era apenas uma criança... mas com idade suficiente para
que um pai perceptivo visse para onde se inclinavam seus interesses.
Devore pediu a Lance que passasse o verão de 1994 supervisionando
compras que, na maior parte, já tinham dez anos. Queria que o rapaz
colocasse a papelada em ordem, e mais, queria que Lance extraísse um
sentido daquilo. Não estava atrás de uma recomendação sobre o uso da
terra, exatamente, embora eu ache que teria escutado se Lance quisesse
lhe dar uma; desejava simplesmente ter uma noção do que tinha comprado.
Lance aceitaria passar um verão no Maine ocidental tentando descobrir sua
impressão das terras compradas? Por um salário de dois ou três mil
dólares por mês?
Imagino que a resposta de Lance tenha sido uma versão mais
educada de “Um corvo ainda caga no topo dos pinheiros?”.
O garoto tinha chegado em junho de 1994 e se instalado numa tenda
na outra extremidade do lago Dark Score. Devia estar de volta a Reed no
final de agosto. Em vez disso, porém, decidiu tirar um ano de licença. O pai
não ficou contente. Sentiu o cheiro do que chamava de “problema com
garotas”.
— É, mas a distância da Califórnia ao Maine é um estirão danado
para se sentir qualquer cheiro — disse Bill Dean, apoiando-se na porta do
motorista da picape com os bronzeados braços cruzados. — Ele tinha
alguém muito mais perto do que Palm Springs para farejar por ele.
— De que está falando?
— De falação. Gente faz isso de graça, e a maioria faz isso até com
maior boa vontade se for paga.
— Gente como Royce Merrill?
— Royce pode ser um deles — concordou ele —, mas não seria o
único. Os tempos aqui não se dividem entre maus e bons; e se você é um
habitante local, eles se dividem principalmente entre mau e pior. Portanto,
quando um sujeito como Max Devore envia um camarada com um
suprimento de notas de cinquenta e cem dólares...
— Quem é esse habitante local? Um advogado?
— Não um advogado, um corretor imobiliário chamado Richard
Osgood (“um tipo meio escorregadio” foi o julgamento de Bill Dean sobre o
homem), que se entocava e fazia negócios em Motton. Posteriormente
Osgood contratara um advogado de Castle Rock. A tarefa inicial do sujeito
escorregadio, quando o verão de 1994 terminou e Lance Devore permaneceu
na TR, foi descobrir que droga estava acontecendo e pôr um fim à coisa.
— E depois? — perguntei.
Bill deu uma olhada no relógio, outra no céu e então centralizou o
olhar em mim. Sacudiu os ombros de modo engraçado, como se dissesse:
“Nós dois somos homens do mundo, de uma maneira calma e estabelecida
— não precisa me fazer uma pergunta boba dessas.”
— Então Lance Devore e Mattie Stanchfield se casaram na igreja
batista da Graça, bem na rota 68. Correram histórias sobre o que Osgood
pode ter feito para impedir o casamento... soube que chegou até a tentar
subornar o reverendo Gooch para que ele se recusasse a “amarrá-los”, mas
acho que isso foi idiota, eles simplesmente iriam a outro lugar. Além disso,
não vejo muito sentido em repetir o que não sei com certeza.
Bill descruzou os braços e começou a contar com os dedos nodosos
de sua mão direita.
— Eles se casaram em meados de setembro, 1994, eu sei disso. —
Então esticou o polegar. — O pessoal olhava em torno com certa
curiosidade para ver se o pai do noivo ia aparecer, mas ele não apareceu. —
Esticou o indicador. Junto com o polegar, formavam uma pistola. — Mattie
teve um bebê em abril de 1995, o que torna o bebê um pouco prematuro...
mas não o suficiente para isso ter importância. Eu o vi no armazém com
meus próprios olhos quando ele não tinha nem uma semana, e era do
tamanho certo. — Esticou o dedo do meio. — Não sei se o pai de Lance
Devore se recusava totalmente a ajudá-los financeiramente, mas sei que
estavam morando naquele trailer depois da oficina do Dickie, e isso me faz
pensar que estavam passando um período difícil.
— Devore fez o torniquete — eu disse. — É o que faria um cara
acostumado a conseguir tudo do seu modo... mas se ele gostava do rapaz
como você pensa, ele pode ter mudado de ideia.
— Talvez sim, talvez não. — Deu uma olhada de novo no relógio. —
Vou terminar isso rápido e te deixar em paz... mas você precisa escutar
mais uma historinha porque ela mostra de fato como a terra funciona.
— Em julho do ano passado, menos de um mês antes de ele morrer,
Lance Devore aparece no balcão dos correios no Armazém Lakeview. Traz
um envelope pardo que quer enviar, mas primeiro quer mostrar a Carla
DeCinces o que está ali dentro. Ela contou que ele estava todo inchado de
vaidade, como os pais ficam às vezes quando os filhos são pequenos.
Concordei com a cabeça, entretido com a ideia do magricela e gago
Lance Devore todo inchado. Mas pude ver com a minha imaginação, e a
imagem também era terna.
— Era uma foto de estúdio tirada em Rock. Mostrava a garota... qual
é o nome dela? Kayla?
— Kyra.
— É, botam qualquer nome nas crianças hoje em dia, não é?
Mostrava Kyra sentada numa grande cadeira de couro, com uns óculos de
brinquedo no narizinho, olhando para uma daquelas fotos aéreas dos
bosques do outro lado do lago na TR-100 ou na TR-110, parte do que o
velho tinha comprado, de qualquer modo. Carla disse que o bebê tinha um
ar de surpresa, como se não imaginasse que houvesse tanto bosque no
mundo inteiro. Disse que ela era terrível de esperta, era mesmo.
— Esperta como um azougue — murmurei.
— E o envelope, registrado, Correio Expresso, era endereçado a
Maxwell Devore em Palm Springs, Califórnia.
— Levando você a deduzir que o velho derreteu-se o suficiente para
pedir um retrato da única neta, ou que Lance Devore achou que um retrato
podia derretê-lo.
Bill assentiu com a cabeça, parecendo tão contente quanto um pai
cujo filho tivesse concluído uma soma difícil.
— Não sei se conseguiu — disse ele. — Não houve tempo suficiente
para dizer se foi de um modo ou de outro. Lance tinha comprado uma
dessas pequenas antenas parabólicas como a que você tem aqui. No dia em
que ele a colocou, caiu uma tempestade violenta... granizo, vento forte,
árvores derrubadas à beira do lago, um monte de raios. Ela continuou até de
noite. Lance tinha colocado a antena à tarde, tudo terminado e seguro;
entretanto, na hora em que a tempestade começou, ele se lembrou de ter
deixado a chave inglesa no telhado do trailer. Subiu até lá para pegar a
ferramenta, caso contrário ela ia se molhar e enferrujar...
— Ele foi atingido por um raio? Meu Deus do céu, Bill!
— Atingido, sim, senhor, mas o raio atingiu também o caminho. Se
você passar pelo lugar onde a estrada Wasp Hill se liga à 68, vai ver o toco
da árvore que o raio derrubou. Lance descia a escada com a chave inglesa
quando o raio caiu. Se você nunca viu um raio estourar bem acima de sua
cabeça, não sabe como é apavorante, é como um rio bêbado se despejando
na pista, bem na na sua direção, e aí dá uma guinada para o rumo dele no
último minuto. Um raio próximo faz o seu cabelo ficar em pé, faz até a
droga do seu pau levantar. Pode fazer o rádio de suas entranhas de aço
tocar, os ouvidos zumbirem e o ar ficar com cheiro de queimado. Lance
caiu da escada. Se teve tempo de pensar em algo antes de bater no chão,
aposto que pensou fui eletrocutado. Pobre rapaz. Adorava a TR, mas não
teve sorte com ela.
— Quebrou o pescoço?
— É. Com todos aqueles trovões, Mattie não ouviu a queda dele ou
grito ou coisa alguma. Ela espiou para fora um ou dois minutos depois,
quando o granizo começou e Lance ainda não tinha voltado. E lá estava ele,
deitado no chão, fixando o granizo gelado de olhos abertos.
Bill olhou o relógio pela última vez e escancarou a porta do carro.
— O velho não tinha vindo para o casamento deles, mas veio para o
funeral do filho. E ficou aqui desde então. Não queria coisa alguma com a
moça...
— Mas quer a criança — eu disse. Já sabia daquilo, mas mesmo
assim senti um buraco na boca do estômago. Não fale sobre isso, me
pedira Mattie na manhã do dia 4. Não é um bom período para Ki e para
mim. — Até onde ele foi no processo?
— No terceiro turno e rumando para o final, eu diria. Vai haver uma
audiência na Corte Superior do condado de Castle talvez no final desse mês,
ou no próximo. O juiz pode ordenar a entrega da menina ou pôr o caso de
lado até o outono. Isso na verdade pouco importa, porque a única coisa que
nunca acontecerá na verde terra de Deus é uma decisão a favor da mãe. De
um modo ou de outro, a garotinha vai crescer na Califórnia.
Colocada daquela forma, a coisa me deu um calafriozinho muito
desagradável.
Bill deslizou para o banco atrás do volante da picape.
— Fique fora disso, Mike. Fique longe de Mattie Devore e da filha. E
se for chamado ao tribunal por ter encontrado as duas no sábado, sorria
muito e fale tão pouco quanto puder.
— Max Devore a acusa de não ser apta para criar a menina.
— É.
— Bill, eu vi a criança, e ela está ótima.
Ele sorriu de novo, mas desta vez não havia nada divertido em seu
sorriso.
— Imagino. Mas a questão não é essa. Fique longe desse negócio
deles, meu velho. É minha função te dizer isso; como Jo não está aqui,
acho que agora sou o único a tomar conta de você. — Bateu a porta do
Ram, ligou o motor, estendeu a mão para a mudança e então deixou a mão
pender, como se lhe ocorresse outra coisa. — Se puder, você devia procurar
as corujas.
— Que corujas?
— Tem um par de corujas de plástico por aí em algum lugar. Podem
estar no porão ou no estúdio de Jo. Chegaram por encomenda via correio no
outono antes de ela ter falecido.
— O outono de 1993?
— É.
— Não é possível. — Não tínhamos usado Sara no outono de 1993.
— Mas é. Eu estava aqui colocando as portas de tempestade quando
Jo apareceu. Batíamos papo quando chegou um caminhão do serviço de
entregas. Levei a caixa para a entrada e tomamos um café. Eu ainda o
tomava quando Jo tirou as corujas da caixa de papelão e mostrou para
mim. Puxa, como pareciam verdadeiras! Ela foi embora menos de dez
minutos depois. Como se tivesse vindo para cá apenas para aquilo, apesar
de que não sei por que alguém ia dirigir todo o estirão de Derry até aqui só
para receber duas corujas de plástico.
— Isso foi quando no outono, Bill? Você se lembra?
— Na segunda semana de novembro — disse ele prontamente. — Eu
e minha esposa fomos até Lewinston depois naquela mesma tarde, até a
irmã de ’Vette. Era aniversário dela. Na volta paramos no Castle Rock
Agway para ’Vette comprar o peru do Dia de Ação de Graças. — Ele me
olhava curiosamente. — Você não sabia mesmo das corujas?
— Não.
— Isso é um pouco esquisito, não é?
— Talvez Jo tenha me dito e eu esqueci — falei. — Acho que não
tem muita importância agora, de qualquer modo. — Mesmo assim parecia
ter. Era uma coisa pequena, mas parecia ter importância. — Por falar nisso,
para que Jo ia querer duas corujas de plástico?
— Para impedir os corvos de cagar nos madeirames, como estão
fazendo em seu deck. Os corvos veem aquelas corujas de plástico e se
mandam.
Estourei de rir apesar de estar intrigado... ou talvez por causa disso.
— É? Funciona mesmo?
— Funciona, desde que a gente mude elas de lugar de vez em
quando, para os corvos não desconfiarem. Corvos são os pássaros mais
inteligentes que existem por aí, você sabe. Procure essas corujas que você
vai se livrar de muita sujeira.
— Vou procurar — eu disse. Corujas de plástico para afastar os
corvos. Era exatamente o tipo de conhecimento com que Jo esbarraria (ela
própria era como um corvo nesse sentido, recolhendo pedaços cintilantes de
informação que prendiam seu interesse), pondo-o em ação sem se
preocupar em me contar. De repente estava me sentindo solitário sem ela
de novo, sentindo terrivelmente sua falta.
— Ótimo. Algum dia, quando eu tiver mais tempo, vamos dar uma
volta pelo lugar todo. Bosque também, se você quiser. Acho que ficará
satisfeito.
— Tenho certeza que sim. Onde é que Devore está hospedado?
As peludas sobrancelhas se ergueram.
— No Warrington’s. Ele e você são praticamente vizinhos. Achei que
precisava saber.
Lembrei-me da mulher que eu tinha visto — parte de cima de maiô
preto e short combinando de algum modo para lhe dar uma exótica
aparência de coquetel — e concordei com a cabeça.
— Conheci a mulher dele.
Bill riu tão vigorosamente que precisou do lenço. Pescou-o do painel
do carro (algo em lã escocesa de um azul vivo do tamanho de uma
bandeirola de futebol) e enxugou os olhos.
— O que é que é tão engraçado?
— A mulher magricela? Cabelo branco? Cara de máscara de criança
do Dia das Bruxas?
Foi minha vez de rir.
— Essa.
— Não é a mulher dele, é o, como-é-que-se-diz, assistente pessoal.
Rogette Whitmore é o nome dela. — Pronunciou-o Ro-GET, com um G duro.
— Todas as esposas de Devore morreram. A última, há vinte anos.
— Que tipo de nome é esse, Rogette? Francês?
— Califórnia — disse ele, e sacudiu os ombros como se aquela
palavra explicasse tudo. — Tem gente na cidade que tem medo dela.
— É mesmo?
— É. — Bill hesitou, depois acrescentou com um daqueles sorrisos
que exibimos quando queremos que os outros saibam que nós sabemos que
vamos dizer algo tolo. — Brenda Meserve diz que ela é bruxa.
— E os dois estão no Warrington’s por quase um ano?
— É. Essa Whitmore vai e vem, mas na maior parte do tempo fica
aqui. O pessoal da cidade acha que ficarão até que o caso da custódia
termine, depois voltarão todos para a Califórnia no jato particular de
Devore. Ele vai deixar Osgood para vender o Warrington’s e...
— Vender o Warrington’s? O que está dizendo?
— Achei que precisava saber — disse Bill, colocando a mudança em
primeira. — Quando o velho Hugh Emerson disse a Devore que fechava o
lugar depois do Dia de Ação de Graças, Devore disse que não tinha nenhuma
intenção de se mudar. Disse que se sentia bem confortável ali mesmo onde
estava, e não pretendia se mover.
— Ele comprou o lugar. — Eu ficara sucessivamente surpreso,
divertido e enraivecido nos últimos vinte minutos, mas nunca exatamente
estarrecido. Agora era assim que me sentia. — Ele comprou o Warrington’s
Lodge para que não tivesse que se mudar para o Lookout Rock Hotel em
Castle View ou alugar uma casa.
— É, fez isso sim. Nove construções, inclusive o chalé principal e o
Sunset Bar; 5 hectares de bosques, um campo de golfe de seis buracos e
152 metros de praia ao longo da Rua. Mais um espaço de boliche com duas
pistas e um campo de softbol. Quatro milhões e duzentos e cinquenta mil.
Seu amigo Osgood fez o negócio e Devore pagou com um cheque pessoal.
Eu me pergunto como é que terá achado lugar para todos aqueles zeros.
Até logo, Mike.
Com isso, recuou pela entrada de carros e me deixou no alpendre olhando-o de boca aberta.
Corujas de plástico.
Bill tinha me contado cerca de duas dúzias de coisas interessantes
entre espiadas no relógio, mas a que estava no alto da pilha era o fato (e
aceitei-o como um fato; ele fora afirmativo demais para que não o
aceitasse) de que Jo descera até aqui para receber duas malditas corujas
de plástico.
Teria ela me contado?
Pode tê-lo feito. Eu não lembrava, e me parecia que eu teria
lembrado, mas Jo costumava dizer que quando eu entrava na zona de
escrever não adiantava me contar nada; a coisa entrava por um ouvido e
saía pelo outro. Às vezes ela espetava pequenos bilhetes — coisas a fazer,
telefonemas a dar — na minha camisa, como se eu fosse um menino do
curso primário. Mas não me lembrava de ela ter dito: “Vou até Sara, meu
bem, porque o serviço de entregas vai levar algo que quero receber
pessoalmente, está interessado em fazer companhia a uma moça?” Que
droga, eu não teria ido? Eu sempre apreciava um pretexto para ir para a
TR. A não ser que eu estivesse trabalhando naquele roteiro e talvez
fazendo-o avançar um pouco... bilhetes espetados na manga da minha
camisa... Se você sair quando terminar, precisamos de leite e suco de
laranja...
Inspecionei o pouco que sobrara da horta de Jo com o sol de julho
espancando meu pescoço e pensei sobre corujas, as malditas corujas de
plástico. Suponhamos que Jo tivesse me contado que estava indo a Sara
Laughs. E se eu tivesse recusado o oferecimento quase sem ouvir porque
me encontrava na zona de escrever? Mesmo se essas coisas fossem
inquestionáveis, havia outra questão: por que Jo tinha sentido necessidade
de vir aqui pessoalmente quando poderia simplesmente ter ligado para
alguém na TR e pedido para receber a entrega? Kenny Auster teria ficado
feliz em fazê-lo, sra. Meserve também. E Bill Dean, o caseiro, tinha de fato
estado aqui. Isso levava a outras perguntas — uma era por que ela não
tinha mandado que o serviço de entrega levasse as malditas coisas para
Derry — e finalmente decidi que não poderia viver sem realmente ver uma
genuína coruja de plástico por mim mesmo. Talvez, pensei, voltando a casa,
eu colocasse uma no teto do meu Chevy quando estacionasse na entrada de
carros. Para prevenir futuros bombardeios.
Dei uma parada na entrada, atingido por uma súbita ideia, e liguei
para Ward Hankins, o sujeito de Waterville que lida com meus impostos e
os negócios não relacionados à minha carreira de escritor.
— Mike — disse ele animadamente. — Como anda o lago?
— O lago está frio e o tempo quente, exatamente como gostamos —
eu disse. — Ward, você guarda todos os registros que mandamos para você
por cinco anos, não guarda? Para o caso de a Receita Federal nos criar
algum problema?
— Cinco anos é a prática aceita — disse ele —, mas eu guardo os
seus registros por sete. Aos olhos do pessoal do imposto, você pode ser
um pombo gordo.
Melhor um pombo gordo do que uma coruja de plástico, pensei, mas
não disse. O que disse foi:
— Isso inclui as agendas de mesa, não é? A minha e de Jo, até a
morte dela?
— Sem dúvida. Já que nem você nem ela mantinham diários, era o
melhor modo de fazer um cruzamento dos recibos e das despesas alegadas
com...
— Será que podia encontrar a agenda de Jo de 1993 e ver o que ela
anotou na segunda semana de novembro?
— Com prazer. O que é que você está procurando especificamente?
Por um momento me vi sentado à mesa da cozinha em Derry em
minha primeira noite de viúvo, segurando uma caixa com as palavras Teste
Doméstico de Gravidez na lateral. O que exatamente eu procurava naquela
altura dos acontecimentos? Considerando-se que eu amara a moça e ela já
estava em seu túmulo havia quatro anos, o que é que eu estava
procurando? Além de problemas, o que seria?
— Estou procurando duas corujas de plástico — disse. Ward
provavelmente achou que eu estava falando com ele, mas não tenho
certeza de que eu o fazia. — Sei que parece esquisito, mas é o que estou
procurando. Você pode me ligar de volta?
— Dentro de uma hora.
— Bom sujeito — eu disse, e desliguei.
Agora, quanto às próprias corujas. Onde seria o local mais provável
para guardar dois artefatos tão interessantes?
Meus olhos se voltaram para a porta do porão. Elementar, meu caro
Watson.
A escada do porão era escura e levemente úmida. Enquanto eu estava em
pé no patamar tateando em busca do interruptor de luz, a porta bateu com
tanta força atrás de mim que dei um grito de surpresa. Não havia brisa,
nenhuma correnteza, o dia estava totalmente parado, mas mesmo assim a
porta tinha batido com força. Ou tinha sido sugada.
Fiquei no alto da escada no escuro, tateando à procura do interruptor,
sentindo aquele cheiro lodoso que até mesmo boas fundações de concreto
expelem depois de algum tempo se não há um arejamento apropriado. Fazia
frio, muito mais frio do que no outro lado da porta. Eu não estava só, e
sabia disso. Estava com medo, seria uma mentira dizer que não... mas
também fascinado. Alguma coisa estava comigo. Alguma coisa estava
comigo.
Afastei a mão da parede do interruptor e fiquei imóvel, os braços
caídos ao lado do corpo. Algum tempo se passou. Não sei quanto. Meu
coração batia furiosamente no peito; podia senti-lo nas têmporas. Estava
gelado.
— Oi? — eu disse.
Nada em resposta. Ouvi os pingos irregulares e tênues de água
condensada caindo de um dos canos lá embaixo, ouvi minha própria
respiração e, debilmente — distante, em outro mundo onde o sol brilhava
—, ouvi o crocitar de um corvo. Talvez ele tivesse soltado um bólido no
capô do meu carro. Eu realmente preciso de uma coruja, pensei. Na
verdade, não sei como algum dia pude viver sem uma.
— Oi? — falei de novo. — Você pode falar?
Nada.
Umedeci os lábios. Talvez eu devesse me achar tolo, ali em pé no
escuro e chamando por fantasmas. Mas não achava. Nem um pouco. A
umidade fora substituída por um gelo que eu podia sentir, e eu tinha
companhia, ah, sem dúvida nenhuma.
— Pode dar uma batida, então? Se você pode fechar a porta, deve
poder bater.
Fiquei ali e escutei os pingos suaves e isolados dos canos. Nada
mais. Estava esticando a mão para o interruptor novamente quando houve
uma pancada suave não muito abaixo de mim. O porão de Sara Laughs é
alto, e os 90 centímetros superiores de concreto — a parte que fica contra
o cinturão de gelo do chão — foram isolados com grandes painéis de
alumínio. O som que ouvi era, tenho certeza, o de um punho batendo num
desses painéis.
Apenas um punho batendo num quadrado de material isolante, mas
cada tripa e músculo de meu corpo pareceram se desenrolar. Meus cabelos
ficaram em pé. Minhas órbitas pareceram se expandir e os globos oculares
se contraíram, como se minha cabeça estivesse tentando se transformar
numa caveira. Cada centímetro de minha pele ficou arrepiado. Algo estava
ali comigo. Muito provavelmente algo morto. Eu não podia mais ligar a luz
se quisesse fazê-lo. Não tinha mais força para levantar o braço.
Tentei falar e, finalmente, num sussurro rouco que mal reconheci,
perguntei:
— Você está aí?
Tum.
— Quem é você? — Eu ainda não conseguia emitir nada melhor que
um sussurro rouco, a voz de um homem dando as últimas instruções para
a família enquanto jaz no leito de morte. Desta vez não veio nada de baixo.
Tentei pensar, e o que chegou com esforço à minha mente foi Tonny
Curtis como Harry Houdini em algum filme antigo. No filme, Houdini tinha
sido o Diógenes do circuito do tabuleiro Ouija, um sujeito que passava seu
tempo livre procurando um médium honesto. Ele tinha assistido a uma
sessão onde os mortos se comunicavam por...
— Bata uma vez se for sim, duas se for não — eu disse. — Pode
fazer isso?
Tum.
Era mais abaixo na escada onde eu estava... mas não abaixo demais.
Cinco, seis, sete degraus no máximo. Não o suficiente para tocá-lo se eu
estendesse a mão no ar negro do porão... algo que eu podia imaginar, mas
não imaginar fazer de fato.
— Você é... — Minha voz se extinguiu. Simplesmente não havia força
no diafragma. Ar gelado em meu peito como um ferro de engomar. Reuni
toda a vontade e tentei de novo. — Você é Jo?
Tum. Aquele punho suave no material de isolamento. Uma pausa, e
depois: Tum-tum.
Sim e não.
Então, sem qualquer noção do motivo de fazer tal pergunta:
— As corujas estão aqui embaixo?
Tum-tum.
— Sabe onde elas estão?
Tum.
— Devo procurá-las?
Tum! Bem forte.
Por que é que ela as quer? Eu podia perguntar, mas a coisa nos
degraus não tinha meios de res...
Dedos quentes tocaram meus olhos e quase gritei antes de perceber
que era suor. Levantei as mãos no escuro e limpei a testa perto do cabelo
com as palmas. Deslizaram como se fosse em óleo. Frio ou não, eu estava
completamente banhado em meu próprio suor.
— Você é Lance Devore?
Tum-tum, imediatamente.
— Ficar em Sara é seguro para mim? Estou em segurança?
Tum. Uma pausa. E eu sabia que era uma pausa, que a coisa nos
degraus não terminara. Então: Tum-tum. Sim, eu estava em segurança.
Não, não estava.
Reconquistara um controle periférico do braço. Estendi-o, apalpei a
parede e finalmente encontrei o interruptor. Descansei os dedos nele. Agora
o suor de meu rosto parecia estar virando gelo.
— Você é a pessoa que chora à noite? — perguntei.
Tum-tum veio dos degraus abaixo, e entre as duas pancadas acionei
o interruptor. Os globos de luz do porão se acenderam. Da mesma forma
que uma brilhante lâmpada pendente — pelo menos 125 watts — sobre o
patamar. Não tinha havido tempo para alguém se esconder, sem falar em ir
embora, e também não havia ninguém lá para tentar fazê-lo. Além disso, a
sra. Meserve — admirável em tantos aspectos — negligenciara a escada do
porão e não a varrera. Quando desci até o lugar de onde imaginava terem
vindo as pancadas, deixei pegadas na leve poeira. Mas as minhas eram as
únicas.
Quando soltei a respiração, pude ver à minha frente que o ar tinha
estado frio, ainda estava frio... mas aquecia-se rapidamente. Exalei outra
vez e pude ver apenas um vestígio de nevoeiro. Uma terceira exalação não
mostrou nada.
Corri a mão por um dos quadrados isolados. Macio. Empurrei-o com
um dedo e, mesmo não o fazendo com força, meu dedo deixou uma marca
na superfície prateada. Elementar. Se alguém tivesse batido com o punho
ali, o material mostraria uma depressão, a superfície fina talvez até
estivesse rachada, revelando o recheio rosa sob ela. Mas todos os
quadrados estavam uniformes.
— Você ainda está aí? — perguntei.
Nenhuma resposta, e mesmo assim eu tive a sensação de que meu
visitante ainda estava lá. Em algum lugar.
— Espero não tê-lo ofendido acendendo a luz — eu disse, e então me
senti ligeiramente esquisito, em pé na escada do meu porão, falando em
voz alta, num sermão para as aranhas. — Queria ver você, se eu pudesse.
— Não tinha ideia se aquilo era verdade ou não.
Subitamente — tão subitamente que quase perdi o equilíbrio e
tropecei escada abaixo — eu me virei, convencido de que a criatura coberta
com a mortalha estava atrás de mim, que fora ela quem dera as batidas,
ela, nenhum educado fantasma de M. R. James e sim um horror dos confins
do universo.
Não havia nada.
Virei de novo, respirei profunda e firmemente duas ou três vezes e
então desci o restante dos degraus do porão. Logo abaixo deles, via-se uma
canoa em perfeitas condições e um remo. No canto havia o fogão a gás que
substituíramos depois de comprar a casa; e também a banheira com pés
de garra que Jo quisera (com a minha objeção) transformar num recipiente
para plantas. Achei um baú cheio de roupas de mesa vagamente lembradas,
uma caixa de fitas cassetes mofadas (grupos como os Delfonics,
Funkadelic e o .38 Special), várias caixas de papelão com velhos pratos.
Havia uma vida lá embaixo, mas não muito interessante afinal de contas.
Ao contrário da vida que senti no estúdio de Jo, esta de cá não tinha sido
cortada bruscamente, mas apagada de modo lento, abandonada como uma
pele antiga, e isso estava certo. Era, de fato, a ordem natural das coisas.
Havia um álbum de fotografias numa prateleira com quinquilharias e
peguei-o, curioso e cauteloso ao mesmo tempo. Nenhuma bomba desta vez,
porém; quase todos os filmes eram instantâneos de paisagens de Sara
Laughs do modo como era quando nós a compramos. Achei uma foto de Jo
com calças boca de sino (cabelo partido ao meio e batom branco na boca)
e uma de Michael Noonan usando uma camisa florida e grandes costeletas
que me fizeram estremecer (o Mike solteirão na foto era um sujeito tipo
Barry White que eu não queria reconhecer e reconhecia ao mesmo tempo).
Achei uma velha esteira mecânica de Jo, quebrada, um ancinho que
eu ia querer se ainda estivesse por aqui quando o outono chegasse, uma
máquina para remover neve que eu ia querer mais ainda se estivesse por
aqui quando o inverno chegasse, e várias latas de tinta. Mas não encontrei
nenhuma coruja de plástico. Meu amigo batedor-no-isolamento estava certo.
No andar de cima, o telefone começou a tocar.
Apressei-me para atendê-lo, passando pela porta do porão e então
esticando a mão para trás a fim de desligar a luz. Isso me divertiu e ao
mesmo tempo parecia comportamento perfeitamente normal... exatamente
como me parecera perfeitamente normal ter cuidado para não pisar nas
fendas da calçada quando eu era garoto. E ainda que não fosse normal, que
importância tinha? Eu só estava de volta a Sara havia três dias, mas já
postulava a Primeira Lei de Excentricidade de Noonan: quando se está
sozinho, comportamento estranho não parece nem um pouco estranho.
Agarrei o telefone sem fio.
— Alô?
— Oi, Mike. É Ward.
— Foi rápido.
— A sala de arquivo fica apenas a uma curta distância no corredor
— disse ele. — Fácil como beber água. Há apenas uma coisa na agenda de
Jo para a segunda semana de novembro de 1993. Diz, S-do Maine, Freep, 11
horas da manhã. Isso na terça, dia 16. Ajuda?
— Sim — eu disse. — Obrigado, Ward. Ajuda muito.
Cortei a ligação e coloquei o telefone de volta no suporte. Tinha ajudado muito. S-do Maine era o Sopão Solidário do Maine. Jo pertencera ao
conselho de diretores de 1992 até sua morte. Freep era Freeport. Deve ter
sido uma reunião do conselho. Provavelmente tinham discutido planos para
alimentar os sem-teto no Dia de Ação de Graças... e depois Jo tinha dirigido
mais ou menos 40 quilômetros até a TR para receber duas corujas de
plástico. Não respondia a todas as perguntas, mas não restam sempre
perguntas na esteira da morte de um ente querido? E nenhum estatuto de
limites quando elas surgem.
A voz de OVNI então falou. Enquanto você está bem aí junto do
telefone, disse, por que não liga para Bonnie Amudson? Diga olá, veja como
Bonnie vai indo.
Jo pertencera a quatro conselhos diferentes durante os anos 1990,
todos fazendo trabalho de caridade. Sua amiga Bonnie a persuadiu a entrar
para o Conselho do Sopão quando um lugar vagou. Haviam participado de
um monte de reuniões juntas. Não a de novembro de 1993,
presumivelmente, e era difícil pensar que Bonnie pudesse se lembrar
especificamente daquela reunião quase cinco anos depois... mas se ela
guardasse suas velhas atas das reuniões...
Mas que droga eu estava pensando exatamente? Ligar para Bonnie,
ser simpático, depois pedir-lhe para checar as atas de dezembro de 1993?
Eu lhe perguntaria se o relatório de presença mostrava a ausência de minha
mulher na reunião de novembro? Perguntaria se Jo parecia diferente no
último ano de sua vida? E quando Bonnie me perguntasse para que eu
queria saber daquilo, o que é que eu responderia?
Me dá isso, Jo rosnara no meu sonho. No sonho, ela não se parecia
de modo nenhum com Jo, e sim com qualquer outra mulher, talvez com
aquela do Livro dos Provérbios, a estranha mulher que tinha lábios de mel,
mas cujo coração estava cheio de bile e absinto. Uma mulher estranha com
dedos tão frios quanto gravetos depois de uma geada. Me dá isso, é o meu
pega-poeira.
Fui até a porta do porão e toquei na maçaneta. Girei-a... depois
soltei-a. Não queria olhar lá para baixo no escuro, não queria arriscar a
chance de que algo pudesse começar a dar pancadas de novo. Era melhor
deixar a porta fechada. O que eu queria era beber algo gelado. Entrei na
cozinha, estendi a mão para a porta da geladeira e então parei. Os ímãs
tinham voltado a se arrumar num círculo, mas desta vez duas letras
alinhavam-se no centro. Estavam organizadas numa única palavra em caixa
baixa:
oi
Havia algo ali. Mesmo em plena luz do dia eu não duvidava disso. Eu
havia perguntado se era seguro para mim ficar ali e recebi um recado
duplo... mas isso não tinha importância. Se eu fosse embora de Sara agora,
não haveria nenhum lugar para ir. Tinha uma chave da casa de Derry, mas as questões tinham que ser resolvidas aqui. Eu sabia disso.
— Oi — eu disse, e abri a geladeira para pegar um refrigerante. —
Seja lá quem ou o que você for, oi.
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