se tem depois de um feriado de sábado, composto de partes iguais de
sacralidade e ressaca. Notei dois ou três pescadores estacionados bem
longe no lago, mas nem um único barco a motor zumbia por ali, nem um só
ruidoso bando de crianças gritava e espadanava água. Passei por meia dúzia
de chalés no declive acima de mim e, embora todos estivessem habitados
nessa época do ano, os únicos sinais de vida que vi eram roupas de banho
penduradas no corrimão do deck dos Passendale e um cavalo-marinho verde
fluorescente meio vazio num toco de uma doca dos Batchelder.
Mas o pequeno chalé cinzento dos Passendale ainda era deles? O
divertido e circular acampamento de verão dos Batchelder, com sua janela
de filme em Cinerama apontando para o lago e as montanhas além, ainda
pertencia aos Batchelder? Não havia modo de saber, claro. Quatro anos
podem trazer um bocado de mudanças.
Eu caminhava e não fazia nenhum esforço para pensar — um velho
truque dos dias de escritor. Trabalhe o corpo, descanse a mente, deixe os
rapazes do porão fazerem seu trabalho. Fui andando e passei pelos campos
onde Jo e eu havíamos comido churrasco, tomado drinques e participado de
uma ocasional reunião para jogar cartas; eu me embebia do silêncio como
uma esponja, bebia meu suco, limpava o suor da testa com o braço e
esperava para ver que pensamentos surgiriam.
O primeiro foi uma percepção esquisita: que o choro do bebê na
noite parecia de certo modo mais real do que o telefonema de Max Devore.
Eu tinha recebido mesmo uma ligação de um rico magnata da tecnologia
obviamente de mau humor na minha primeira noite inteira de volta à TR?
Teria realmente o dito magnata me chamado de mentiroso em determinado
momento? (Eu o era, considerando-se a história que contara, mas essa não
era a questão.) Sabia que aquilo acontecera, mas na verdade era mais fácil
acreditar no Fantasma de Dark Score, conhecido em torno de algumas
fogueiras como A Misteriosa Criança que Chora.
Meu pensamento seguinte — imediatamente antes de terminar meu
suco — foi que eu devia ligar para Mattie Devore e lhe contar o que
acontecera. Cheguei à conclusão de que era um impulso natural, mas
provavelmente má ideia. Eu estava velho demais para acreditar em tais
simplicidades como A Donzela em Apuros versus O Padrasto Malvado... ou,
nesse caso, o Sogro. Tinha meus próprios problemas para resolver neste
verão, e não queria complicar meu trabalho entrando numa disputa
potencialmente feia entre sr. Computador e srta. Trailer Duplo. Devore
havia alisado meu pelo da maneira errada — e vigorosamente —, mas isso
provavelmente não fora pessoal, só algo que ele fez naturalmente. Ora,
alguns sujeitos puxam e soltam bruscamente as alças dos sutiãs. Eu
desejava enfrentá-lo nisso? Não. Não desejava. Eu salvara a Pequena
Senhorita Red Sox, havia tido uma inadvertida amostra do pequeno mas
agradavelmente firme peito de mamãe, aprendido que Kyra era a palavra
grega para “como uma dama”. Mais do que isso seria gula, por Deus.
Naquele ponto, tanto meu cérebro quanto meus pés pararam,
percebendo que eu tinha caminhado até o Warrington’s, uma vasta estrutura
de galpão de madeira que os habitantes daqui chamam às vezes de country
club. E era uma espécie disso — tinha um campo de golfe de seis buracos,
um estábulo e trilhas para cavalgar, um restaurante, um bar e alojamento
para talvez umas três dúzias de pessoas na construção principal e nas oito
ou nove cabanas satélites. Havia até um local para jogo de boliche com
duas pistas, embora você e seus competidores tivessem que se alternar
para pôr os pinos em pé. O Warrington’s tinha sido construído no início da
Primeira Guerra Mundial. Isso o tornava mais jovem que Sara Laughs, mas
não muito.
Um embarcadouro comprido levava a uma construção menor
chamada Sunset Bar. Era ali que os hóspedes de verão do Warrington’s se
reuniam para tomar drinques no final do dia (e alguns para bloody marys no
início dele). Então, quando dei uma olhada naquela direção, percebi que não
estava mais sozinho. Uma mulher em pé na varanda à esquerda da porta do
bar flutuante me observava.
Tive um sobressalto. No momento, meus nervos não estavam em
sua melhor forma, e aquilo provavelmente tinha algo a ver com isso... mas
acho que ela me faria ter um sobressalto de qualquer modo. Em parte por
sua imobilidade. Em parte por sua extraordinária magreza. Mas
principalmente pelo rosto dela. Você já viu aquele desenho do Edvard Munch,
O Grito? Bem, se imaginar aquele rosto em repouso, a boca fechada e os
olhos vigilantes, teria uma imagem bastante boa da mulher em pé no final
do embarcadouro, com uma mão de dedos compridos descansando no
corrimão. Embora eu possa lhe dizer que meu primeiro pensamento não foi
Edvard Munch e sim sra. Danvers.
Ela parecia ter uns 70 anos e estava usando short preto sobre um
maiô da mesma cor. A combinação parecia estranhamente formal, uma
variação do sempre popular vestidinho preto de coquetel. Sua pele era de
um branco cremoso, a não ser acima dos peitos quase retos e ao longo dos
ombros ossudos. Lá, grandes manchas marrons de idade nadavam em sua pele. O rosto era um objeto em forma de cunha, mostrando os ossos dos
molares como os de uma caveira, e uma linha desigual de sobrancelhas.
Abaixo dessa saliência, seus olhos se perdiam em órbitas de sombra.
Cabelos brancos pendiam escassos e lisos à volta das orelhas, caindo até a
proeminente prateleira do maxilar.
Deus, como é magra, pensei. Ela é apenas um saco de...
Diante daquilo, um estremecimento passou por meu corpo. Foi algo
forte, como se alguém tivesse girado um fio elétrico em minha carne. Não
queria que ela tivesse notado aquilo — que modo de começar um dia de
verão, abalando tanto um cara que ele ficava ali tremendo e fazendo
caretas na sua frente —, portanto, ergui minha mão e acenei. Tentei sorrir
também. Olá, senhora em pé junto ao bar flutuante. Olá, seu velho saco de
ossos, você me assustou pra caramba, mas não é preciso muito nesses
dias para fazê-lo, e eu a perdoo. Porra, como vai indo? Eu me perguntei se
meu sorriso parecia para ela a mesma careta que parecia para mim.
Ela não acenou de volta.
Sentindo-me um tanto tolo — AQUI NÃO HÁ NENHUM IDIOTA DO
VILAREJO, NÓS TODOS NOS REVEZAMOS —, concluí meu aceno numa
saudação meio estúpida e voltei pelo caminho por onde tinha vindo. Cinco
passos depois, tive que olhar por cima do ombro; a sensação de que ela me
observava era tão forte que eu sentia como se uma mão me apertasse
entre as omoplatas.
O embarcadouro onde a mulher havia estado mostrava-se
completamente deserto. Apertei os olhos, no início com a certeza de que
ela apenas se retirara mais para dentro da sombra causada pela pequena
“casa da birita”, mas ela desaparecera. Como se ela própria fosse um
fantasma.
Ela entrou no bar, meu bem , disse Jo. Você sabe disso, não sabe?
Quero dizer... você sabe mesmo, certo?
— Certo, certo — murmurei, tomando o caminho norte pela Rua em
direção à minha casa. — Claro que sei. Para onde mais? — Só que não me
pareceu que tivesse havido tempo; não me pareceu que pudesse ter
entrado, mesmo descalça, sem que eu a ouvisse. Não numa manhã tão quieta.
Jo de novo:
Talvez ela tenha entrado furtivamente.
— É — murmurei. Eu falei um bocado de vezes alto antes de o verão
terminar. — É, talvez tenha. Talvez ela seja furtiva. — Claro. Como a sra.
Danvers.
Parei de novo e olhei para trás, mas o caminho direito de passagem
acompanhava o lago numa pequena curva, e eu não podia mais ver o
Warrington’s ou o Sunset Bar. E realmente, pensei, para mim estava tudo
bem.
No caminho de volta, tentei fazer uma lista das estranhezas que haviam
precedido e depois envolvido meu retorno a Sara Laughs: os sonhos
repetidos; os girassóis; o adesivo da estação de rádio; o choro na noite.
Cogitei que meu encontro com Mattie e Kyra, além do consequente
telefonema do sr. Pixel Easel também se qualificava como provisoriamente
estranho... mas não do mesmo modo que uma criança que você ouve
soluçar na noite.
E o fato de que estávamos em Derry em vez de em Dark Score
quando Johanna morrera? Aquilo podia entrar na lista? Não sabia. Não
conseguia nem lembrar por que fora assim. No outono e no inverno de 1993,
havia estado escrevendo contos e trabalhando num roteiro para O homem
da camisa vermelha. Em fevereiro de 1994, prosseguia com De cima a
baixo, e aquilo absorvia a maior parte da minha atenção. Além disso, decidi
rumar a oeste para a TR, oeste para Sara...
— Era tarefa de Jo — disse para o dia, e assim que ouvi as palavras
compreendi como eram verdadeiras. Ambos adorávamos a velha garota,
mas dizer “Ei, irlandês, vamos levantar nossos rabos daqui e passar alguns
dias na TR” tinha sido tarefa de Jo. Ela podia dizê-lo a qualquer momento...
só que no ano antes de sua morte não o dissera nem uma vez. E eu jamais
pensara em dizê-lo no lugar dela. De algum modo, eu esquecera tudo sobre
Sara Laughs, parece, mesmo quando o verão chegou. Era possível estar tão
absorvido num texto? Não parecia provável... mas que outra explicação
havia?
Algo estava muito errado com esse quadro, mas eu não sabia o quê.
Não sabia nada de nada.
Aquilo me lembrou Sara Tidwell e as letras de uma de suas canções.
Sara nunca fora gravada, mas eu devia ao cego Lemon Jefferson a versão
dessa música em especial. Um verso dizia:
É só um baile no celeiro, benzinho,
É só rodar e rodar.
Deixe-me beijar seus lábios doces, benzinho,
Tão bom te encontrar.
Eu adorava aquela canção, e sempre imaginei como seria saindo da
boca de uma mulher em vez de emitida pela voz cheia de uísque do velho
trovador. Na voz de Sara Tidwell. Aposto que ela cantava docemente. E,
rapaz, aposto que sabia cantar a canção.
Eu tinha voltado novamente para minha casa. Olhei em torno, não vi
ninguém nas vizinhanças imediatas (embora pudesse ouvir agora o primeiro
barco de esqui aquático do dia zumbindo ao longe na água), despi-me até
ficar de cuecas e nadei para a plataforma flutuante. Não subi, fiquei apenas
deitado ao lado dela, segurando a escada com uma das mãos e
preguiçosamente batendo com os pés. Era bastante agradável, mas o que faria com o resto do dia?
Decidi passá-lo limpando minha área de trabalho no segundo andar.
Quando tivesse terminado, talvez saísse e desse uma olhada no estúdio de
Jo. Quer dizer, se não perdesse a coragem.
Nadei de volta, batendo facilmente as pernas, erguendo a cabeça
dentro e fora da água, que fluía ao longo do meu corpo como seda fria.
Sentia-me uma lontra. Já tinha nadado a maior parte do caminho em
direção à praia quando ergui meu rosto pingando e vi uma mulher em pé na
Rua, observando-me. Era tão magra quanto a que eu tinha visto perto do
Warrington’s... mas esta era verde. Verde e apontando o norte ao longo do
caminho como uma dríade numa velha lenda.
Arquejei, engoli água, tossi-a para fora. Fiquei em pé com a água
pelo peito e esfreguei meus olhos que escorriam. Então ri (embora com um
pouco de dúvida). A mulher era verde porque se tratava de uma bétula
crescendo um pouco ao norte onde minha escada de dormentes terminava
na rua. E mesmo com meus olhos limpos de água, havia algo arrepiante no
modo como as folhas em torno do tronco marfim-rajado-de-preto quase
formavam um rosto que espiava. O ar estava totalmente parado e assim o
rosto estava totalmente parado (como o rosto da mulher de short preto e
maiô), mas num dia de brisa ele pareceria sorrir ou franzir o cenho... ou
talvez rir. Atrás dela crescia um pinheiro doentio. Um galho desfolhado
esticava-se para o norte. Fora isso que eu havia tomado por um braço
magro e uma ossuda mão apontando.
Não era a primeira vez que eu me assombrava assim. Vejo coisas,
só isso. Escreva histórias e cada sombra no chão parece uma pegada, cada
linha na sujeira uma mensagem secreta. O que não facilita, é claro, a
tarefa de decidir o que era realmente peculiar em Sara Laughs e o que era
peculiar apenas porque minha mente era peculiar.
Dei uma olhada ao redor, vi que ainda tinha aquela parte do lago para
mim (embora não por muito tempo mais; ao zumbido de abelha do primeiro
barco a motor iriam se seguir o segundo e o terceiro) e despi minha cueca
encharcada. Eu a torci, a coloquei em cima do short e da camiseta, e andei
pelos degraus de dormentes com minhas roupas contra o peito. Fingia que era Bunter, levando o desjejum e o jornal da manhã para lorde Peter
Wimsey. Quando entrei em casa, estava sorrindo como um bobo.
O segundo andar estava abafado, apesar das janelas abertas, e vi por quê,
assim que cheguei ao alto da escada. Jo e eu havíamos compartilhado o
espaço ali, ela na esquerda (apenas uma pequena sala, realmente só uma
toca, que era tudo de que necessitava com o estúdio norte da casa) e eu à
direita. Na extremidade final do corredor, ficava o focinho gradeado da
unidade monstro de ar-condicionado, que havíamos comprado um ano depois
de comprarmos a casa de campo. Olhando para ele, percebi que sentira
falta de seu zumbido característico sem ter consciência disso. Colado nele,
havia um aviso que dizia: Sr. Noonan: quebrado. Sopra ar quente quando você o liga & faz barulho de vidro quebrado. Dean diz que a peça necessária
está prometida pela Western Auto em Castle Rock. Vou acreditar nisso quando vir. B. Meserve.
Eu sorri depois de ler a última frase — era a sra. Meserve cuspida —
e então experimentei o interruptor. O maquinário de modo geral reage
favoravelmente quando sente que há um ser humano dotado de pênis nas
proximidades, Jo costumava dizer, mas não dessa vez. Ouvi o rangido do
ar-condicionado por cinco segundos ou coisa assim, depois o desliguei. “O
diabo da coisa tá cagada”, como o pessoal da TR gosta de dizer. E até que
fosse consertado, eu não faria ali nem palavras cruzadas.
Olhei meu escritório mesmo assim, tão curioso do que eu poderia
sentir quanto do que poderia descobrir. A resposta foi quase nada. Havia a
mesa onde eu terminara O homem da camisa vermelha, provando assim a
mim mesmo que a primeira vez não fora um acaso feliz; havia uma foto
de Richard Nixon, os braços erguidos, fazendo um duplo V da vitória, com a
legenda VOCÊ COMPRARIA UM CARRO USADO DESTE HOMEM? abaixo da
foto; havia o pequeno tapete que Jo fizera para mim um ou dois invernos
antes de ela ter descoberto o maravilhoso mundo das mantas de tricô e ter
desistido de fazer tapetes.
Não era bem o escritório de um estranho, mas cada objeto
(principalmente a superfície esquisitamente vazia da mesa) dizia que era o
espaço de trabalho de um Mike Noonan de uma geração anterior. A vida dos
homens, eu lera certa vez, é geralmente definida por duas forças
primordiais: trabalho e casamento. Em minha vida, o casamento estava
terminado, e a carreira num hiato que parecia permanente. Dado isso, não
me parecia estranho que o espaço onde eu passara tantos dias, geralmente
num estado de verdadeira felicidade enquanto inventava diversas vidas
imaginárias, agora parecesse não significar nada. Era como olhar para a
sala de um funcionário que fora despedido... ou que morrera subitamente.
Comecei a sair dali, depois tive uma ideia. O arquivo no canto estava
entupido de papéis — declarações de bancos (na maioria de oito ou dez
anos atrás), correspondência (a maioria nunca respondida), alguns
fragmentos de história —, mas não encontrei o que procurava. Fui até o
closet, onde a temperatura devia estar pelo menos a 40 graus e onde havia
uma caixa de papelão na qual a sra. M. escrevera APARELHOS; então
retirei-o — um Memo-Scriber da Sanyo que Debra Weinstock tinha me dado
na conclusão de nosso trabalho no primeiro dos livros na Putnam. O
gravador podia ser programado para ligar sozinho quando se começava a
falar; caía para o modo de PAUSA quando se parava para pensar.
Nunca perguntei a Debra se ela simplesmente se deparara com a
coisa e pensara “Ora, aposto que qualquer romancista popular que se
respeite gostaria de possuir uma dessas maquininhas”, ou se fora algo um
pouquinho mais específico... uma espécie de sugestão, talvez? Verbalize
esses pequenos fax de seu inconsciente enquanto ainda estão frescos,
Noonan. Na época, eu não sabia, e ainda não sei agora. Mas lá estava ela,
uma genuína máquina de ditar de qualidade profissional, e havia pelo menos
12 cassetes em meu carro, gravações domésticas que eu fizera para ouvir
enquanto dirigia. Inseriria uma no Memo-Scriber esta noite, poria o controle
de volume tão alto quanto possível e colocaria a máquina em DITADO.
Então, se o ruído que ouvi pelo menos duas vezes se repetisse, seria
gravado. Eu podia tocá-lo para Bill Dean e perguntar o que é que ele achava
daquilo.
E se eu escutar a criança soluçando esta noite e a máquina não ligar
sozinha?
— Bem, então vou saber de outra coisa — disse para o escritório
vazio e iluminado pelo sol. Eu estava em pé ali na entrada, com o MemoScriber
sob o braço, olhando a mesa vazia e suando como um porco. — Ou
pelo menos suspeitar.
O recanto de Jo do outro lado do corredor fazia meu escritório
parecer apinhado e confortável em comparação. Nunca cheio demais, agora
não era nada senão um espaço de formato quadrado. O tapete se fora, suas
fotos tinham desaparecido, até mesmo a mesa sumira. Aquilo parecia um
projeto faça-você-mesmo que fora abandonado depois de noventa por cento
do trabalho feito. Jo tinha sido esfregada dali para fora — raspada dali —, e
senti um momento de raiva irracional de Brenda Meserve. Pensei no que
minha mãe geralmente dizia quando eu fazia algo por minha própria
iniciativa que ela desaprovava: “Você assume muito mais do que pode, não
é?” Era o que eu sentia sobre o pequeno pedaço de escritório de Jo: que ao
esvaziá-lo até as paredes daquele jeito Brenda Meserve tinha assumido
muito mais do que podia.
Talvez não tenha sido a sra. M. quem limpou tudo, disse a voz OVNI.
Talvez tenha sido a própria Jo a fazê-lo. Já pensou nisso, camarada?
— Isso é uma idiotice — eu disse. — Por que o faria? Dificilmente
eu poderia pensar que ela tivesse tido uma premonição da própria morte.
Considerando-se que acabara de comprar...
Mas eu não queria dizer aquilo. Não alto. De algum modo, parecia má
ideia.
Virei-me para sair da sala e uma súbita rajada de ar frio,
surpreendente naquele calor, passou por meu rosto. Não por meu corpo, só
por meu rosto. Foi a sensação mais extraordinária, como mãos dando
tapinhas de modo rápido mas gentilmente em minhas bochechas e na testa.
Ao mesmo tempo senti um suspiro no ouvido... só que não era bem isso.
Era um sussurro que passou por meu ouvido, como uma mensagem
murmurada depressa.
Eu me virei, esperando ver as cortinas da janela da sala se
movimentarem... mas estavam perfeitamente imóveis.
— Jo? — disse, e ouvir seu nome me fez tremer tão violentamente
que quase deixei cair o Memo-Scriber. — Jo, é você?
Nada. Nenhuma mão de fantasma dando tapinhas na minha pele,
nenhum movimento na cortina... o que certamente teria ocorrido se tivesse
havido de fato uma correnteza. Tudo estava quieto. Havia apenas um
homem alto com um rosto suado e um gravador debaixo do braço em pé à
porta de uma sala vazia... mas foi aí que comecei a acreditar realmente que não estava sozinho em Sara Laughs.
E daí?, perguntei a mim mesmo. Mesmo que fosse verdade, e daí?
Fantasmas não podem fazer mal a ninguém.
Era o que eu pensava então.
Quando visitei o estúdio de Jo (com ar-condicionado) depois do almoço,
sentia-me muito melhor a respeito de Brenda Meserve — não assumira
demais para si mesma, afinal de contas. Os poucos objetos de que me
lembrava especialmente no pequeno escritório de Jo — o quadrado
emoldurado de sua primeira manta de tricô, o pequeno tapete verde, o
pôster emoldurado representando as flores silvestres do Maine — haviam
sido colocados ali, junto com quase tudo de que eu lembrava. Era como se
a sra. M. tivesse enviado uma mensagem: Não posso diminuir sua dor ou
abreviar sua tristeza, assim como não posso impedir os ferimentos que sua
volta para cá podem reabrir, mas posso colocar todas as coisas que o
machucam num só lugar para que o senhor não fique tropeçando nelas de
repente ou sem estar preparado. Até aí posso ir.
O estúdio não tinha paredes vazias; as paredes acotovelam-se com
o espírito e a criatividade de minha mulher. Havia coisas tricotadas
(algumas sérias, muitas caprichosas), quadrados de batique, bonecas de
trapos pulando para fora do que ela chamava de minhas “colagens de bebê”,
uma pintura abstrata de deserto feita de tiras de seda amarela, preta e
laranja, suas fotos de flores e até algo, no alto da estante, que parecia uma
construção-em-progresso, uma cabeça da própria Sara Laughs. Era feita de
palitos e varetas de pirulitos.
Num dos cantos ficava seu pequeno tear e um armário de madeira
com um aviso que dizia MATERIAL DE TRICOTAR DE JO ! NÃO
ULTRAPASSE! pendurado no puxador. Em outro se via um banjo que ela
havia tentado aprender a tocar e depois desistido, dizendo que machucava
muito os dedos. Num terceiro havia um remo de caiaque e um par de
patins com arranhões na altura de onde ficariam os dedos e pequenos
pompons roxos nas pontas dos cadarços.
O que atraiu e capturou meus olhos estava na velha escrivaninha
com tampa de rolar no centro da sala. Durante os muitos e bons fins de
semana de verão, outono e inverno que havíamos passado lá, a mesa ficava
cheia de carretéis de linha, meadas de fios, almofadas para alfinetes,
esboços, talvez um livro sobre a guerra civil espanhola ou famosos cães
americanos. Johanna podia ser exasperante, pelo menos para mim, porque
não impunha nenhum sistema ou ordem real no que fazia. Também podia
ser intimidante e até mesmo esmagadora, às vezes. Era uma brilhante
cabeça de vento, e sua escrivaninha sempre refletia isso.
Mas não agora. Talvez a sra. M. tivesse retirado os objetos
espalhados pela mesa e enfiado por ali o que estava lá agora, mas era
impossível de acreditar. Por que o faria? Não fazia sentido.
O objeto estava coberto com uma capa de plástico cinza. Estendi a
mão para tocá-lo. Minha mão se deteve a 3 ou 4 centímetros dele quando a
lembrança de um velho sonho
(Me dá isso, é o meu pega-poeira)
deslizou por minha mente da mesma forma que a corrente de ar
tinha passado por meu rosto. Então desapareceu, e eu puxei a capa de
plástico. Debaixo dela estava minha velha Selectric IBM verde, que eu não
via e na qual não pensava havia anos. Inclinei-me mais para perto, sabendo
que a bola de tipos da máquina seria o Courier — minha velha preferida —
mesmo antes de vê-la.
Pelo amor de Deus, o que estaria minha velha máquina de escrever
fazendo ali?
Johanna pintava (embora não muito bem), tirava fotos (muito boas
realmente) e às vezes as vendia, tricotava, fazia crochê, tecia e tingia
panos, e podia tocar oito ou dez acordes no violão. Podia escrever, é claro;
a maioria dos estudantes que fazem especialização em inglês consegue
fazê-lo, razão pela qual se especializam em inglês. Demonstrara qualquer
grau fulgurante de criatividade literária? Não. Após algumas experiências
com poesia, quando aluna, antes de colar grau, desistiu daquele ramo
específico das artes como um trabalho ruim. Você escreve por nós dois,
Mike, disse ela certa vez. É tudo seu; eu simplesmente vou dar uma
experimentada em todo o resto. Ante a qualidade de seus poemas em
comparação à qualidade de suas sedas, fotos e arte tricotada, achei que
provavelmente Jo tinha sido sábia.
Mas ali estava minha velha IBM. Por quê?
— Cartas — eu disse. — Ela a encontrou no porão ou coisa assim e
resgatou-a para escrever cartas.
Só que não tinha sido Jo. Ela me mostrava a maioria das cartas,
geralmente insistindo para que eu escrevesse pequenos pós-escritos,
deixando-me culpado ao proferir aquele velho ditado, casa de ferreiro,
espeto de pau (“e os amigos do escritor nunca teriam notícias dele se não
fosse por Alexander Graham Bell”, acrescentava prontamente). Jamais tinha
visto uma carta pessoal de minha mulher batida à máquina durante todo o
tempo em que fomos casados — se não por outro motivo, simplesmente
porque ela o teria considerado uma porcaria em termos de etiqueta. Podia
datilografar, produzindo cartas de negócios sem erros lenta e
metodicamente, mas sempre usava o computador de mesa ou seu próprio
PowerBook para tais tarefas.
— O que está planejando, meu bem? — perguntei, e então comecei a
investigar as gavetas de sua escrivaninha.
Brenda Meserve havia se esforçado com elas, mas a natureza
fundamental de Jo a tinha derrotado. A ordem da superfície (carretéis de
linha segregados por cor, por exemplo) rapidamente cedeu à velha e querida
bagunça de Jo. Encontrei o suficiente dela nas gavetas para machucar meu
coração com cem lembranças inesperadas, mas não achei nenhum papel
que tivesse sido datilografado com minha velha IBM, com ou sem a bola
Courier. Nem uma só página.
Quando terminei a caçada, encostei-me no espaldar da cadeira (a
cadeira dela) e olhei a pequena foto emoldurada sobre a escrivaninha, que
não me lembrava de ter visto antes. Provavelmente a própria Jo a imprimiu
(o original poderia ter saído de algum sótão local) e depois pintara à mão o
resultado. O produto final parecia um cartaz de procura-se colorido por Ted
Turner.
Peguei-a e passei a ponta do polegar sobre o vidro, aturdido. Sara
Tidwell, a cantora de blues da virada do século cujo último porto de
passagem conhecido tinha sido aqui, na própria TR. Quando ela e seu
pessoal — alguns deles amigos, a maioria parentes — haviam deixado a TR,
tinham prosseguido para Castle Rock por algum tempo... depois
simplesmente desapareceram, como uma nuvem no horizonte ou como
nevoeiro numa manhã de verão.
Ela sorria um pouco na foto, um sorriso difícil de ler, os olhos meio
fechados. O cordão de seu violão — não uma correia, mas um cordão —
era visível por cima de um dos ombros. Ao fundo, eu podia ver um homem
negro usando um chapéu-coco num ângulo arrebatador (uma observação
sobre os músicos: eles realmente sabem usar chapéus) e em pé ao lado do
que parecia ser um baixo acústico.
Jo havia tingido a pele de Sara de café-au-lait, talvez baseada em
outros retratos que viu (há alguns por aí, a maioria mostrando Sara com a
cabeça jogada para trás e o cabelo caindo quase até a cintura enquanto ela
dispara seu famoso, despreocupado e estrondoso riso), embora nenhuma
fosse colorida. Não na virada do século. Sara Tidwell não havia deixado sua
marca apenas nas fotos. Lembrei que Dickie Brooks, proprietário da oficina,
tinha me contado certa vez que o pai afirmava ter ganhado um urso de
pelúcia no tiro ao alvo da Feira do Condado de Castle, e que o tinha dado a
Sara Tidwell. Segundo Dickie, ela recompensara seu pai com um beijo. De
acordo com ele, o velho jamais esquecera aquilo, dizendo que fora o melhor
beijo de sua vida... embora eu duvide que tivesse dito isso perto de sua
esposa.
Naquela foto, Sara Tidwell, conhecida como Sara Laughs, apenas
sorria. Jamais fora gravada, mas suas canções haviam sobrevivido mesmo
assim. Uma delas, “Walk me Baby”, tem uma notável semelhança com
“Walk This Way”, do Aerosmith. Hoje, Sara seria conhecida como uma afroamericana.
Em 1984, quando Johanna e eu compramos a casa e
consequentemente ficamos interessados nela, teria sido chamada de negra.
Em sua própria época, teria sido chamada de preta ou escurinha, ou
possivelmente mulata. E crioula, é claro. Devia haver muita gente usando
este último termo à vontade. E eu podia acreditar que ela tinha beijado o
pai de Dickie Brooks — um homem branco — na frente de metade do
condado de Castle? Não, não podia. Mesmo assim, quem poderia dizer?
Ninguém. Por isso o passado era fascinante.
— É só um baile no celeiro, benzinho — cantei, tornando a colocar o
retrato na escrivaninha. — É só rodar e rodar.
Peguei a capa da máquina de escrever e então resolvi deixá-la
descoberta. Enquanto levantava, meus olhos voltaram a Sara, ali em pé com
seus olhos fechados e o cordão que lhe servia como correia de violão
visível sobre um ombro. Algo em seu rosto e sorriso sempre me haviam
parecido familiares, e subitamente a coisa se revelou. Ela se assemelhava
estranhamente a Robert Johnson, cujos improvisos primitivos se escondiam por trás dos acordes de quase todas as canções do Led Zeppelin e
Yardbirds já gravadas. Segundo a lenda, Johnson tinha descido às
encruzilhadas e vendido a alma a Satã por sete anos de vida rápida, bebida
de alto teor e mulheres da vida. E por uma marca de imortalidade nas
vitrolas automáticas dos bares, é claro. O que conseguiu. Robert Johnson, supostamente teria envenenado uma mulher.
No final da tarde, desci até o armazém e vi um bonito pedaço de linguado
na geladeira. Para mim tinha aparência de jantar. Comprei uma garrafa de
vinho branco para combinar com ele e, enquanto esperava minha vez na
caixa registradora, uma voz trêmula soou atrás de mim.
— Vi que o senhor fez uma amiga ontem. — O sotaque ianque era
tão forte que parecia quase uma piada... exceto que o acento em si foi só
parte da coisa; a maioria, percebi, tem aquele som cantado, os verdadeiros
naturais do Maine falam todos como leiloeiros.
Virei-me e vi o velhote que estivera parado na pista da oficina no dia
anterior com Dickie Brooks, observando-me conhecer Kyra, Mattie e
Scoutie. Ainda levava a bengala com castão de ouro, e agora eu a
reconhecia. Em algum momento da década de 1950, o Boston Post tinha
doado essas bengalas a cada condado nos estados da Nova Inglaterra. Eram
dadas aos residentes mais velhos, e passadas adiante de velhote para
velhote. E o engraçado era que o Post tinha esticado as canelas anos atrás.
— Na verdade, duas novas amigas — respondi, tentando desenterrar
seu nome da memória. Não consegui, mas lembrava-me dele de quando Jo
estava viva; ele com a mão numa das superestofadas cadeiras na sala de
espera de Dickie, discutindo o tempo e a política, a política e o tempo,
enquanto os pistões golpeavam e os compressores de ar descarregavam.
Um cliente habitual. E se algo acontecia na rodovia 68, ele, como o olho-de-
Deus, estava lá para ver.
— Ouvi dizer que Mattie Devore pode ser uma graça de pessoa —
disse ele, graçah, Devoreh, pessoah, e uma de suas crostosas pálpebras
caiu. Já vi um bom número de piscadelas sacanas na vida, mas nenhuma
que fosse páreo para a que o velho com a bengala de castão de ouro me
dirigiu. Senti um forte impulso de arrancar aquele nariz brilhoso com um
soco. O som dele separando-se do rosto seria como o estalar de um galho
morto quebrando-se contra um joelho dobrado.
— Você ouve muita coisa, veterano? — perguntei.
— Ah, sim! — disse. Seus lábios, escuros como tiras de fígado,
abriram-se num sorriso. Suas gengivas mostravam muitas manchas
brancas. Tinha um par de dentes amarelos ainda plantados nas gengivas de
cima, e mais uns dois na de baixo. — E ela tem aquela garotinha... esperta
que só! É sim!
— Esperta como azougue — concordei.
Ele pestanejou, um pouco surpreso ao ouvir uma expressão tão
antiga da minha boca de presas novas, e então o repreensível sorriso se
alargou.
— Mas ela não se importa com a menina — disse. — A criança fugiu
de casa, sabe?
Tive consciência — antes tarde do que nunca — de que meia dúzia
de pessoas estavam nos observando e escutando.
— Não foi minha impressão — falei, levantando um pouco a voz. —
Não, essa não foi minha impressão mesmo.
Ele apenas sorriu... aquele sorriso de velho que diz Ah, tá, meu caro;
conheço uma que vale por duas dela.
Fui embora do armazém me sentindo preocupado com Mattie Devore.
Tinha a impressão de que gente demais estava se metendo na sua vida.
Ao chegar em casa, levei a garrafa de vinho para a cozinha — ela
podia gelar enquanto eu fazia funcionar a churrasqueira no deck. Estendi a
mão para a geladeira e então parei. Talvez umas quatro dúzias de pequenos
ímãs se espalhavam ao acaso pela porta — legumes, frutas, letras e
números de plástico, até mesmo uma boa seleção das passas da Califórnia
—, só que não estavam mais ao acaso. Agora formavam um círculo na
porta da geladeira. Alguém estivera ali. Alguém tinha entrado e...
Rearrumado os ímãs na geladeira? Se era isso, o invasor precisava
submeter-se a um intenso trabalho terapêutico. Toquei num deles —
cautelosamente, só com a ponta do dedo. Então, subitamente enraivecido
comigo mesmo, estiquei a mão e espalhei-os de novo, fazendo-o com força
suficiente para derrubar uns dois. Não os recolhi do chão.
Naquela noite, antes de ir para a cama, coloquei o Memo-Scriber na
mesa debaixo de Bunter, o Grande Alce Americano Empalhado, ligando-o em
DITADO. Então inseri nele um de meus velhos cassetes gravados em casa,
zerei o mostrador e fui para a cama, onde dormi sem sonhos ou qualquer
outra interrupção por oito horas.
A manhã seguinte, segunda-feira, era o tipo do dia pelo qual os turistas
vêm ao Maine — um ar tão límpido e ensolarado que as colinas do outro
lado do lago pareciam estar sob uma sutil ampliação. O monte Washington,
o mais alto da Nova Inglaterra, flutuava na distância longínqua.
Servi café e então entrei na sala, assobiando. Tudo que eu imaginara
naqueles últimos dias parecia tolo esta manhã. Então o assobio parou. O
mostrador do Memo-Scriber, colocado em 000 quando eu fora para cama,
estava agora em 012.
Rebobinei-o, hesitei com o dedo no botão PLAY, disse a mim mesmo
(na voz de Jo) para deixar de ser tolo e apertei-o.
— Ah, Mike — sussurrou, quase chorou, uma voz na fita, e me
peguei tendo que apertar a boca com a mão para sufocar um grito. Era o
que eu tinha ouvido na sala de Jo quando a correnteza passou por meu
rosto... só que agora as palavras estavam lentas o suficiente para que eu
as compreendesse. — Ah, Mike — disse ela de novo. Houve um tênue
clique. A máquina tinha se desligado por certo período de tempo. E então,
mais uma vez, pronunciado na sala enquanto eu dormia na ala norte: — Ah, Mike.
Então desapareceu.
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