cozinheiro e avental branco enodoado, o mesmo cabelo preto sob o chapéu
manchado de sangue bovino ou sujo de morango. Aparentemente, até as
mesmas migalhas de biscoitos de aveia prendiam-se em seu bigode
desigual. Tinha talvez 55 anos, talvez 70, o que em alguns homens
geneticamente beneficiados parece estar ainda nas fronteiras mais
distantes da meia-idade. Ele era enorme e desajeitado — provavelmente
mais de um metro e noventa e mais de 130 quilos —, e tão cheio de graça,
espirituosidade e joie de vivre como há quatro anos.
— Quer um cardápio ou ainda se lembra? — grunhiu ele, como se eu
tivesse estado lá pela última vez no dia anterior.
— Ainda faz o Villagebúrguer Deluxe?
— Um corvo ainda caga no topo dos pinheiros? — Olhos pálidos me
encarando. Nada de pêsames, o que para mim estava bem.
— Provavelmente. Quero um com tudo, um Villagebúrguer, não um
corvo, e um frappé de chocolate. Bom ver você de novo.
Estiquei a mão. Ele pareceu surpreso, mas tocou-a com a própria
mão. Contrariamente às coisas brancas que usava, o avental e o chapéu, a
mão estava limpa. Até as unhas estavam limpas.
— É — disse ele, e então virou-se para a mulher amarelada que
cortava cebolas ao lado da grelha. — Villagebúrguer, Audrey — disse. —
Traga para o jardim.
Normalmente sou o tipo de cara-que-senta-ao-balcão. Naquele dia,
porém, instalei-me numa mesa perto do contêiner de refrigeração das
bebidas e esperei o berro de Buddy dizendo que estava pronto — Audrey
fornece as minutas, mas não funciona como garçonete. Eu queria pensar, e
o Buddy’s é um bom lugar para se fazer isso. Havia dois moradores locais
comendo sanduíches e tomando refrigerantes direto da lata, mas era tudo;
pessoas com chalés de veraneio tinham que estar morrendo de fome para
comer no Village Café, e mesmo assim seria preciso arrastá-las, chutando
e gritando, porta adentro. O chão de linóleo verde desbotado mostrava uma
ondulante topografia de colinas e vales. Como o uniforme de Buddy, não era
muito limpo (o pessoal de verão que entrava provavelmente não reparava
nas mãos dele). As paredes forradas de madeira eram engorduradas e
escuras. Acima, onde o reboco começava, havia certa quantidade de
adesivos de para-choque — a noção de decoração para Buddy.
BUZINA QUEBRADA — AGUARDE PELO DEDO.
ESPOSA E CACHORRO DESAPARECIDOS. RECOMPENSA PELO
CACHORRO.
NÃO HÁ NENHUM BÊBADO DA CIDADE AQUI. TODOS NÓS NOS
REVEZAMOS.
O humor é sempre raiva maquiada, penso, mas nas cidadezinhas
pequenas a maquiagem tende a ser tênue. Três ventiladores de teto
moviam apaticamente o ar quente, e à esquerda do contêiner para gelar
refrigerantes havia duas fitas pendentes de papel pega-moscas, as duas
generosamente apinhadas de vida selvagem, algumas ainda lutando
debilmente. Se você podia olhar aquilo e ainda comer, provavelmente sua
digestão funcionava muito bem.
Pensei na semelhança de nomes. Era certamente, tinha que ser, uma
coincidência. Pensei numa moça bem jovem e bonita que se tornara mãe
aos 16 ou 17 anos, e viúva aos 19 ou 20. Pensei no toque inadvertido em
seu seio, e como o mundo julgava homens de 40 que descobriam
subitamente o fascinante mundo das moças e seus acessórios. Pensei
sobretudo na coisa esquisita que acontecera comigo quando Mattie me
dissera o nome da criança — a sensação de que minha boca e garganta
estavam subitamente cheias de água fria, com um travo mineral. Aquela
golfada.
Quando o meu hambúrguer ficou pronto, Buddy teve que chamar
duas vezes. Quando fui até o balcão para pegá-lo, ele perguntou:
— Voltou para ficar ou para esvaziar a casa?
— Por quê? — perguntei. — Sentiu falta de mim, Buddy?
— Não — disse ele —, mas pelo menos você é do estado. Sabia que
“Massachusetts” significa “idiota” na linguagem indígena local?
— Você continua engraçado como sempre.
— É. Vou no porra do Letterman. Para explicar a ele por que Deus
pôs asas nas gaivotas.
— Por que, Buddy?
— Para que elas pudessem ganhar desses franceses de merda na
sujeira.
Peguei um jornal do suporte e um canudo para o meu frapée. Então
fiz um desvio até o telefone pago e, metendo o jornal debaixo do braço, abri
a lista telefônica. Se a gente quisesse, podia andar por ali com ela; não
estava presa ao telefone. Afinal de contas, quem ia querer roubar uma lista
telefônica do condado de Castle?
Havia mais de vinte Devore, o que não me surpreendeu muito — é
um desses nomes, como Pelkey, Bowie ou Toothaker, em que se vive
esbarrando caso se more por aqui. Imagino que seja o mesmo em toda
parte — algumas famílias geram mais e viajam menos, só isso.
Havia um Devore alistado em “RD Est Wsp Hll”, mas não era Mattie,
Mathilda, Martha ou M. Era Lance. Olhei a capa da lista e vi que era de
1997, impressa e enviada quando o marido de Mattie ainda se encontrava na
terra dos vivos. Certo... havia algo mais naquele nome. Devore, Devore,
agora vamos elogiar os famosos Devore; onde estais vós, Devore? Mas não
apareceu, fosse o que fosse.
Comi meu hambúrguer, bebi meu sorvete liquefeito e tentei não olhar para o que fora capturado no papel pega-mosca.
Enquanto esperava que a amarela e silenciosa Audrey me desse o troco
(ainda se podia comer a semana inteira no Village Café por cinquenta
dólares... isto é, se nossas veias aguentassem), li o adesivo grudado na
caixa registradora. Era outro especial de Buddy Jellison: O CIBERESPAÇO
ME ASSUSTOU TANTO QUE FIZ DOWNLOAD NAS CALÇAS. O que não me
fez ter exatamente convulsões de alegria, mas forneceu a chave para
resolver um dos mistérios do dia: por que o nome Devore parecera não
apenas familiar, mas evocativo.
Eu era abastado, ou rico, para o padrão de muitos. No entanto, havia
uma pessoa com laços com a TR que era rica pelo padrão de todos, e
podre de rica pelo padrão da maioria dos residentes do ano inteiro na região
dos lagos. Se é que ele ainda comia, respirava e caminhava por ali.
— Audrey, Max Devore ainda está vivo?
Ela deu um pequeno sorriso.
— Ah, tá sim. Mas não se vê muito ele por aqui.
Aquilo me arrancou o riso que todos os adesivos “engraçados” de
Buddy não tinham conseguido provocar. Audrey, que sempre fora amarelada
e que parecia agora uma candidata a um transplante de fígado, também deu
um risinho abafado. Buddy nos lançou um severo e feroz olhar de
bibliotecária da outra extremidade do balcão, onde lia um folheto sobre a
corrida de Stock Car no feriado, em Oxford Plains.
Voltei de carro pelo mesmo caminho que tinha ido. Um grande
hambúrguer é uma refeição ruim para se comer no meio de um dia quente;
ela nos deixa com sono e com raciocínio lento. Tudo que eu queria era ir
para casa (estaria lá em menos de 24 horas e já pensava na casa como um
lar), me jogar na cama do quarto norte sob o ventilador de teto e dormir
por duas horas.
Quando passei pela estrada Wasp Hill, diminuí a marcha. As roupas
pendiam indiferentes das cordas e havia brinquedos espalhados no pátio da
frente, mas o Scout desaparecera. Mattie e Kyra tinham posto suas roupas
de banho, imaginei, e rumado para a prainha pública. Eu gostara um bocado
delas. O casamento de vida curta de Mattie provavelmente a vinculara de
algum modo a Max Devore... mas olhando para o enferrujado trailer duplo
com sua entrada de carro suja e o pátio da frente meio careca, lembrando
o short largo e a bata de algodão Kmart de Mattie, eu duvidava que o
vínculo fosse forte.
Antes de se retirar para Palm Springs no final da década de 1980,
Maxwell William Devore tinha sido uma força propulsora na revolução dos
computadores. Esta é uma revolução primordialmente de jovens, mas
Devore se saiu bem para um veterano dos anos dourados — conhecia o
campo do jogo e entendia as regras. Começou quando a memória era
estocada numa fita magnética em vez de em chips, e um computador
chamado Univac, do tamanho de um armazém, era a última palavra no
ramo. Era fluente em Cobol e falava Fortran como um nativo. Quando o
mercado se ampliou além de sua capacidade de alcançá-lo, expandindo-se a
ponto de definir o mundo, ele comprou o talento de que precisava para
continuar crescendo.
Sua companhia, Visions, tinha criado programas de transferência de
dados que podiam transferir material do disco rígido para os disquetes
quase instantaneamente, programas gráficos que se tornaram o padrão na
indústria, o Pixel Easel, que permitia que usuários de laptops pintassem
com o mouse... na realidade, pintassem com o dedo, se o equipamento
deles viesse com o dispositivo que Jo chamava de “cursor clitorial”. Devore
não tinha inventado nada desse último, mas entendeu que podia ser
inventado e contratou gente para fazê-lo. Era proprietário de dúzias de
patentes e coproprietário de centenas de outras. Especulava-se que sua
fortuna era algo como 600 milhões de dólares, dependendo de quanto valiam
as ações da tecnologia em determinado dia.
Na TR, sua fama era de irritante e desagradável. Nenhuma surpresa
nisso; santo de casa não faz milagre. E as pessoas diziam que ele era
excêntrico, claro. Ouça o pessoal da velha-guarda se lembrar dos ricos e
bem-sucedidos de sua juventude (e todos os da velha-guarda dizem que se
lembram) e você vai escutar que eles comiam o papel de parede, fodiam o
cachorro e apareciam nos jantares da igreja usando apenas as cuecas
manchadas de mijo. Mesmo sendo tudo verdade no caso de Devore, e ainda
que ele fosse o Tio Patinhas, eu duvidava que permitisse que duas parentas
próximas morassem num trailer tamanho duplo.
Subi a pista acima do lago e parei à cabeceira da minha entrada de
carros, olhando a tabuleta: as palavras SARA LAUGHS queimadas num
pedaço de madeira envernizada pregada a uma árvore. É o modo como
fazem as coisas por aqui. Olhar para ela me trouxe de volta o último sonho
da série Manderley. Naquele sonho, alguém colava um adesivo de estação
de rádio na tabuleta, do modo como sempre se veem adesivos colados nas
cestas de recolhimento do pedágio nas pistas de quantia exata.
Saí do carro, fui até a tabuleta e examinei-a. Nenhum adesivo. Os
girassóis haviam brotado ali, crescendo para fora do alpendre — havia uma
foto em minha valise para prová-lo —, mas não havia nenhum adesivo de
estação de rádio na tabuleta da casa. Provando exatamente o quê? Ora,
Noonan, tem paciência.
Comecei a voltar para o carro — pela porta aberta, os Beach Boys
despejavam-se dos alto-falantes — e então mudei de ideia e fui até a
tabuleta de novo. No sonho, o adesivo fora colocado pouco acima do RA de
SARA e do LAU de LAUGHS. Toquei com os dedos o lugar e achei que meus
dedos tinham ficado ligeiramente grudentos. Claro que poderia ter sido o
verniz num dia quente. Ou a minha imaginação.
Dirigi até a casa, estacionei, puxei o freio de mão (nos declives à
volta do Dark Score e na dúzia de outros lagos na parte oeste do Maine,
sempre se puxa o freio de mão) e escutei o resto de “Don’t Worry, Baby”,
que sempre considerei a melhor canção dos Beach Boys, ótima não a
despeito da letra boba, mas por causa dela. Se você soubesse quanto te
amo, baby, canta Brian Wilson, nada poderia dar errado com você. Puxa,
pessoal, não seria fantástico?
Fiquei onde estava, escutando, e olhei para o armário no lado direito
do alpendre. Guardávamos o lixo ali para protegê-lo dos guaxinins das
redondezas. Nem sempre as latas com as tampas empurradas para dentro
adiantam; se os bichos estão com bastante fome, dão um jeito de manejar
as tampas com suas mãozinhas ágeis.
Você não vai fazer o que está pensando, disse a mim mesmo... Vai?
Parece que eu ia — ou pelo menos faria uma tentativa. Quando os
Beach Boys cederam lugar a Rare Earth, saí do carro, abri o armário de
guardar lixo e puxei para fora duas latas de lixo de plástico. Um sujeito
chamado Stan Proulx vinha pegar o lixo duas vezes por semana (ou pelo
menos pegava, há quatro anos, lembrei a mim mesmo); ele pertencia à
vasta rede de contatos de Bill que trabalhava em meio expediente para
descolar um dinheiro por fora, mas eu não achava que Stan viria recolher o
atual acúmulo de sujeira por causa do feriado, e eu estava certo. Havia dois
sacos plásticos de lixo em cada lata. Puxei-os para fora (chamando-me de
idiota mesmo enquanto o fazia) e desatei os cordões amarelos.
Na verdade, não acho que estivesse tão obcecado a ponto de
despejar um monte de lixo úmido no meu alpendre, se a coisa tivesse
chegado a esse ponto (claro que nunca saberei ao certo e talvez seja
melhor assim), mas não chegou. Ninguém morava na casa havia quatro
anos, lembre-se, e é a ocupação que produz lixo — tudo, de pó de café a
absorventes íntimos. O material naqueles sacos era lixo seco varrido e
reunido com um carrinho de mão pela equipe de limpeza de Brenda
Meserve.
Havia nove sacos de lixo de aspirador de pó contendo 48 meses de
poeira, sujeira e moscas mortas. Havia chumaços de toalhas de papel,
alguns cheirando ao aromático óleo de mobília, outros com o penetrante e
ainda mais agradável aroma de Windex. Havia uma almofada de colchão
mofada e um paletó de seda com a inequívoca aparência de ter sido
jantado-pelas-traças. Pelo paletó eu certamente não lamentei; equívoco de
meu período de jovem macho, ele parecia algo da era “I Am the Walrus”,
dos Beatles. Du-bi-du-bi-du, baby.
Havia uma caixa cheia de vidro quebrado... outra cheia de
irreconhecíveis (e presumivelmente ultrapassados) artefatos de
encanamento... um pedaço de carpete rasgado e sujo... panos de prato nas
últimas, desbotados e rasgados... as velhas luvas para forno que eu usava quando fazia hambúrgueres e galinha na churrasqueira...
O adesivo estava numa dobra do segundo saco. Eu sabia que iria
encontrá-lo — e o sabia desde o momento em que havia tocado com os
dedos a tênue mancha pegajosa na tabuleta —, mas precisei vê-lo por mim
mesmo. Do mesmo modo que São Tomé, suponho.
Pus o adesivo numa tábua do alpendre aquecido pelo sol e o alisei
com a mão. Estava esfarrapado nas pontas. Meu palpite era que Bill
provavelmente tinha usado uma espátula para raspá-lo. Não devia querer
que o sr. Noonan voltasse para o lago depois de quatro anos e descobrisse
que algum garoto cheio de cerveja tinha colado um adesivo de estação de
rádio na tabuleta de sua entrada de carros. Nãhn seria apropriadoh, orah.
Portanto, retirara-o, colocando-o no lixo, e ali estava ele de novo, mais um
pedaço de meu pesadelo desenterrado e não muito danificado. Passei o dedo
nele. WBLM, 102.9, DIRIGÍVEL DE ROCK AND ROLL DE PORTLAND.
Disse a mim mesmo que não precisava ter medo. Aquilo não
significava nada, assim como todo o resto da coisa também não significava nada. Então peguei a vassoura no armário e varri e reuni todo o lixo,
despejando-o novamente nos sacos plásticos. O adesivo foi com o resto.
Entrei na casa querendo tomar um banho de chuveiro para tirar a poeira e a
sujeira. Em vez disso, porém, olhando meu calção de banho ainda numa das
valises abertas, resolvi nadar. O calção que eu havia comprado em Key
Largo era engraçado, coberto de baleias jorrando. Achei que minha
camaradinha com o boné do Bosox teria aprovado. Olhei o relógio e vi que
terminara meu Villagebúrguer havia 45 minutos. Era hora de me dedicar a
um trabalho importante, cara pálida, especialmente depois de me envolver
num enérgico jogo de Caça ao Tesouro no Saco de Lixo.
Vesti o calção e desci os degraus, feitos de dormentes de estrada de
ferro, que levavam de Sara até a água. Minha sandália de dedo estalava no
chão. Uns poucos mosquitos retardatários zumbiam. O lago cintilava à
minha frente, parado e convidativo sob o céu úmido e baixo. Percorrendo
norte e sul ao longo de suas bordas, contornando todo o lado leste do lago,
havia uma trilha direito de passagem (é chamada “servidão” nas escrituras)
que o pessoal da TR chama simplesmente de A Rua. Caso se dobrasse à
esquerda para A Rua no início dos meus degraus, podia-se andar todo o
caminho até a marina de Dark Score, passando-se pelo Warrington’s e pelo
sórdido restaurantezinho de Buddy Jellison... sem mencionar quatro dúzias
de chalés de verão, discretamente metidos em inclinados bosques de
abetos e pinheiros. Virando à direita, pode-se ir a pé para Halo Bay, embora
se leve um dia para fazê-lo com A Rua coberta de folhagem como está
agora.
Fiquei por um momento no atalho e então corri para a frente e pulei
dentro d’água. Ainda quando voava pelo ar com a maior facilidade, ocorreume
que a última vez que eu havia pulado assim foi segurando a mão de
minha mulher.
Aterrissar foi quase uma catástrofe. A água estava fria o suficiente
para me lembrar que eu tinha 40 anos, não 14, e por um momento meu
coração parou completamente de bater. Enquanto o lago Dark Score
fechava-se sobre mim, tive certeza de que não ia subir vivo. Seria
encontrado à deriva, o rosto para baixo, entre a plataforma flutuante e
minha pequena extensão da Rua, vítima da água fria e de um gordurento
Villagebúrguer. Esculpiriam “Sua Mãe Sempre Disse para Esperar pelo Menos
uma Hora” na lápide.
Então meus pés aterrissaram nas pedras e em escorregadias ervas
aquáticas que cresciam no fundo do lago, meu coração pegou com um
tranco e disparei para cima como um sujeito planejando converter a última
jogada debaixo da cesta no final de um jogo de basquete. Voltei ao ar
arquejando. A água entrou na minha boca e tossi-a para fora, batendo no
peito com uma das mãos para encorajar o coração — vamos, meu bem,
continue, você pode fazer isso.
Na descida, fiquei em pé até a cintura no lago e com a boca cheia
daquele gosto frio — água do lago com um travo mineral, do tipo que se
teria que corrigir ao lavar as roupas. Era o mesmo gosto que eu sentira
quando em pé no acostamento da rota 68. Era o mesmo gosto do momento
em que Mattie Devore me disse o nome da filha.
Fiz uma conexão psicológica, só isso. Entre a semelhança dos nomes
com minha esposa falecida, e dela com este lago. Gosto que...
— Gosto que já senti uma ou duas vezes antes — disse alto. Como
para sublinhar o fato, com a concha da mão peguei um pouco de água, uma
das mais limpas e claras do estado, segundo os relatórios de análise que eu
e todos os outros membros da chamada Associação dos Lagos do Oeste
recebemos a cada ano, e bebi. Não houve nenhuma revelação, nada de
flashes repentinos e esquisitos em minha mente. Era só o Dark Score,
primeiro em minha boca e depois no estômago.
Nadei até a plataforma, subi os três degraus da escada de mão ao
lado e com um baque atingi as tábuas quentes, subitamente muito
satisfeito por ter chegado. Apesar de tudo. Amanhã começaria a organizar
algum tipo de vida ali... pelo menos tentaria. Por hora era suficiente estar
deitado com a cabeça na curva do braço, à beira de uma soneca, confiante
de que as aventuras do dia haviam terminado.
Pelo que aconteceu, não era bem verdade.
Durante nosso primeiro verão na TR, Jo e eu descobrimos que se podia ver
o espetáculo de fogos de Castle Rock do deck do lago. Eu me lembrei disso
exatamente quando começava a escurecer, e pensei que naquele ano
passaria a data na sala, vendo um filme no aparelho de vídeo. Reviver todos
os crepúsculos de 4 de Julho que havíamos passado lá, tomando cerveja e
rindo enquanto os grandes foguetes eram disparados seria uma má ideia. Eu
já estava suficientemente solitário sem aquilo, solitário de um modo que
não tivera consciência em Derry. Então cogitei por que teria voltado senão
para finalmente enfrentar a lembrança de Johanna — toda a lembrança — e
fazê-la descansar. Certamente a possibilidade de escrever de novo jamais
parecera tão distante quanto naquela noite.
Não havia cerveja — eu também tinha esquecido de comprar um
pacote de seis no armazém ou no Village Café —, mas havia refrigerante,
cortesia de Brenda Meserve. Peguei uma lata de Pepsi e me instalei para
assistir ao show de luzes, esperando não me machucar demais. Esperando,
acho eu, não chorar. Não que estivesse me enganando; houve mais lágrimas
ali, claro. Eu simplesmente teria que passar por elas.
A primeira explosão da noite havia acabado de se dissipar — uma
explosão de lantejoulas azuis com o estouro viajando imediatamente depois
—, quando o telefone tocou. Aquilo me fez dar o pulo que a tênue explosão
de Castle Rock não tinha conseguido. Provavelmente seria Bill Dean, pensei,
fazendo uma chamada de longa distância para ver se tudo estava certo.
No verão antes de Jo morrer, tínhamos comprado um telefone sem
fio para podermos percorrer o andar de baixo enquanto falávamos, coisa
que nós dois gostávamos de fazer. Passei pela porta de correr, de vidro,
entrei na sala, apertei o botão de resposta e disse:
— Alô, é Mike — enquanto voltava à minha cadeira do deck e me
sentava. A distância, do outro lado do lago, explodindo abaixo das nuvens
baixas pendendo sobre Castle View, havia irrupções de estrelas verdes e
amarelas, seguidas por flashes cujo som posteriormente me alcançaria.
Por um momento não saiu nada do telefone. Então uma ríspida voz
de homem — voz de homem idoso, mas não a de Bill Dean — falou:
— Noonan? Sr. Noonan?
— Sim. — Uma enorme lantejoula de ouro iluminou o oeste, fazendo
tremular as nuvens baixas com uma breve filigrana. Fez-me pensar
naqueles shows de prêmios que se veem na televisão, todas aquelas belas
mulheres em vestidos brilhantes.
— Devore.
— Sim? — disse, cautelosamente.
— Max Devore.
Não o vemos muito por aqui, tinha dito Audrey. Eu tomara aquilo
como espirituosidade ianque, mas aparentemente ela havia falado a sério. O
espanto nunca termina.
Tudo bem, e daí? Eu me sentia totalmente perdido em dar o passo
inicial numa conversa. Pensei em lhe perguntar como conseguiu meu
número, que não estava na lista, mas de que adiantaria? Quando se vale
meio bilhão de dólares — se aquele era realmente o Max Devore de que eu
falava —, pode-se conseguir qualquer velho número fora da lista que se
quiser.
Resolvi dizer sim de novo, desta vez sem o pequeno tom de
discussão no final.
Seguiu-se outro silêncio. Quando eu o rompesse e começasse a fazer
perguntas, ele se encarregaria da conversa... se é que se podia dizer que
estávamos conversando naquele ponto. Uma boa jogada inicial, mas eu tinha
a vantagem de minha longa associação com Harold Oblowski na qual me
apoiar — Harold, mestre da pausa fértil. Senti-me tenso, apertando o
pequeno telefone sem fio contra a orelha, e observei o espetáculo no oeste.
Vermelho estourando em azul, verde e ouro; mulheres invisíveis
caminhavam pelas nuvens em fulgurantes vestidos de noite em shows de
prêmios.
— Soube que o senhor conheceu minha nora hoje — disse ele
finalmente. Parecia aborrecido.
— É possível — eu disse, tentando não parecer surpreso. — Posso te
perguntar por que está me ligando, sr. Devore?
— Soube que houve um incidente.
Luzes brancas dançavam no céu — podiam ter sido uma espaçonave
explodindo. Depois, trilhando atrás delas, as explosões. Descobri o segredo
da viagem no tempo, pensei. É um fenômeno auditivo.
Minha mão apertava excessivamente o telefone, e obriguei-me a
relaxá-la. Maxwell Devore. Meio bilhão de dólares. Não em Palm Spring,
como eu imaginara, mas perto — bem aqui na TR, se se podia confiar no
zumbido característico na linha.
— Estou preocupado com minha neta. — Sua voz soava mais
irritante do que nunca. Estava zangado e demonstrava isso, aquele homem
não precisava esconder as emoções havia um monte de anos. — Soube que
a atenção de minha nora desgarrou-se de novo. Desgarra-se com
frequência.
Agora meia dúzia de explosões de estrelas coloridas iluminaram a
noite, desabrochando como flores num velho filme de Disney sobre a
natureza. Podia imaginar a multidão reunida em Castle View sentada de
pernas cruzadas em seus cobertores, tomando sorvetes e bebendo cerveja,
e todos dizendo Oooooh ao mesmo tempo. É isso que provoca qualquer obra
de arte bem-sucedida, acho eu — todo o mundo diz Oooooh ao mesmo
tempo.
Você está com medo desse cara, não está?, perguntou Jo. Ok, talvez
tenha razão. Um homem que acha que pode ficar zangado todas as vezes
que quiser e com quem quiser... pode ser perigoso.
Então a voz de Mattie surgiu: Sr. Noonan, eu não sou uma mãe
desatenta. Isso nunca me aconteceu antes.
Claro que é isso que a maioria das mães relapsas dizem em tais
circunstâncias, imaginava eu... mas eu havia acreditado nela.
Além disso, que droga, meu número não estava na lista telefônica.
Eu me sentara ali tomando um refrigerante, vendo os fogos de artifício,
sem aborrecer ninguém, e esse camarada...
— Sr. Devore, eu não tenho qualquer ideia do que...
— Não me venha com essa, com todo o devido respeito, não me
venha com essa, sr. Noonan, o senhor foi visto falando com elas. — Ele
soava como Joe McCarthy, imagino, aos pobres idiotas que terminavam
sendo tachados de comunistas sujos quando compareciam perante o comitê
dele.
Tenha cuidado, Mike, disse Jo. Atenção ao machado de prata de
Maxwell.
— De fato vi e falei com uma mulher e uma meninazinha esta
manhã — eu disse. — Acho que é delas que está falando.
— Não, o senhor viu praticamente um bebê andando pela estrada
sozinho — disse ele. — E depois viu uma mulher correndo atrás dele. Minha
nora, naquela coisa velha que ela dirige. A criança poderia ter sido
atropelada. Por que está protegendo essa moça, sr. Noonan? Ela te
prometeu alguma coisa? O senhor não está certamente fazendo nenhum
favor à criança, isso eu posso te dizer.
Ela prometeu me levar ao trailer e depois me carregar numa volta
pelo mundo, pensei em dizer. Prometeu manter a boca fechada o tempo
todo se eu conservasse a minha fechada também — é isso que quer ouvir?
Sim, disse Jo. Muito provavelmente é isso que ele quer ouvir. Muito
provavelmente é nisso que quer acreditar. Não deixe que ele provoque uma
de suas explosões de sarcasmo de aluno de faculdade, Mike — você pode
se arrepender.
Por que eu estava me dando ao trabalho de proteger Mattie Devore,
afinal de contas? Não sabia. Não tinha a mínima ideia de onde podia estar
me metendo ali, por falar nisso. Só sabia que ela parecera cansada, e a
criança não fora machucada, não estava assustada ou taciturna.
— Havia um carro. Um velho jipe.
— Assim está melhor. — Satisfação. E um agudo interesse. Cobiça,
quase. — O que...
— Creio que achei que tivessem vindo no carro juntas — eu disse.
Havia certo prazer frívolo em descobrir que minha capacidade de invenção
não me abandonara. Senti-me como um lançador que não pode mais jogar
na frente da multidão, mas que ainda faz uma boa jogada no velho pátio de
trás. — A meninazinha tinha colhido algumas margaridas. — Todas as
cuidadosas qualificações, como se eu estivesse depondo num tribunal em
vez de sentado no meu deck. Harold teria ficado orgulhoso. Bem, não,
Harold teria ficado horrorizado por eu simplesmente estar tendo tal
conversa.
— Acho que pensei que estava colhendo flores silvestres. Minha
lembrança do incidente não é muito clara, infelizmente. Sou escritor, sr.
Devore, e quando estou dirigindo geralmente derivo para os meus próprios...
— O senhor está mentindo. — A raiva está em aberto agora,
brilhante e pulsando como uma fervura. Como eu havia suspeitado, não foi
preciso muito esforço para escoltar aquele camarada para além das
delicadezas sociais.
— Sr. Devore. Dos computadores Devore, imagino.
— Imagina corretamente.
Jo sempre ficava mais fria no tom e na expressão à medida que seu
temperamento nada insignificante ficava mais alterado. Agora eu me
escutava emulá-la de um modo que era francamente sinistro.
— Sr. Devore, não estou acostumado a receber ligações à noite de
homens que não conheço, nem pretendo prolongar a conversa quando sou
chamado de mentiroso. Boa noite, senhor.
— Se tudo estava bem, por que o senhor parou?
— Tenho estado longe da TR há algum tempo, e queria saber se o
Village Café ainda estava aberto. Ah, por falar nisso, não sei onde o senhor
conseguiu meu telefone, mas sei onde pode enfiá-lo. Boa noite.
Interrompi a ligação com o polegar e então olhei para o telefone
como se jamais tivesse visto tal dispositivo em minha vida. A mão
segurando o telefone tremia. Meu coração batia com força; podia senti-lo
no pescoço e nos pulsos, assim como no peito. Cogitei se teria podido dizer
a Devore para enfiar meu número de telefone no rabo se eu mesmo não
tivesse alguns milhões chacoalhando no banco.
A Batalha dos Titãs, querido, disse Jo com sua voz fria. E tudo por
causa de uma adolescente num trailer. Ela não tem nem seios de que se
possa falar.
Ri alto. Guerra dos Titãs? Dificilmente. Um velho barão ladrão da
virada do século dissera: “Nos dias que correm, um homem com um milhão
de dólares pensa que é rico.” Devore provavelmente teria a mesma opinião
a meu respeito e, no esquema mais amplo das coisas, estaria certo.
Agora o céu do oeste estava aceso com uma cor não natural e
pulsante. Era o final.
— De que trata tudo isso? — perguntei.
Nenhuma resposta, só um mergulhão-do-norte gritando no lago.
Provavelmente protestando por todo o estranho barulho no céu.
Levantei, entrei e coloquei o telefone de novo no suporte, percebendo
enquanto o fazia que esperava que tocasse novamente, esperava que
Devore começasse a cuspir clichês de cinema: Se ficar no meu caminho,
eu... e Estou lhe avisando, amigo, para não... e Vou lhe dar um bom
conselho antes que você...
O telefone não tocou. Derramei o resto do refrigerante goela abaixo,
compreensivelmente seco, e resolvi ir para a cama. Pelo menos não tinha
havido nenhum choro ou choramingo no deck; Devore me tirara de mim
mesmo. De um modo esquisito, estava grato a ele.
Entrei no quarto norte, despi-me e deitei. Pensei sobre a garotinha,
Kyra, e a mãe que poderia ter sido sua irmã mais velha. Devore estava
irritado com Mattie, isso era claro, e se eu era uma não entidade financeira
para o sujeito, o que então ela seria para ele? E que tipo de recursos teria
Mattie se ele tivesse se colocado contra ela? Tal pensamento era bastante
desagradável, na verdade, e foi com ele que adormeci.
Levantei três horas depois para eliminar a lata de refrigerante que
pouco sabiamente tomara antes de deitar e, enquanto estava diante do
vaso, mijando com um dos olhos abertos, ouvi os soluços de novo. Em
algum lugar do escuro, uma criança perdida e assustada... ou talvez só
fingindo estar perdida e assustada.
— Não — eu disse. Estava em pé, nu, diante do vaso sanitário, com
a pele toda arrepiada. — Por favor, não comece de novo com essa bosta, é
assustador.
O choro foi minguando como antes, parecendo diminuir como algo
carregado por um túnel abaixo. Voltei para a cama, virei para o meu lado e
fechei os olhos.
— Foi um sonho — disse. — Só outro sonho de Manderley.
Eu sabia que não era isso, mas sabia também que voltaria a dormir,
e naquele momento isso parecia o mais importante. Enquanto adormecia,
pensei com uma voz que era puramente minha: Ela está viva. Sara está
viva.
E compreendi algo também: ela me pertencia. Eu a reivindicara. Para
o bem ou para o mal, eu voltara para casa.
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