quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Capítulo Sete


A garotinha — na realidade não era muito mais do que um bebê — vinha
andando pelo meio da rota 68, numa roupa de banho vermelha, sandália de
dedo de plástico amarelo e um boné de beisebol dos Red Sox de Boston
virado para trás. Eu tinha acabado de passar pelo Armazém Lakeview e a
Oficina Dickie Brooks, e o limite de velocidade ali cai de 90 para 60
quilômetros. Graças a Deus, eu obedecia ao limite naquele dia, caso
contrário poderia ter matado a garota.
Era o meu primeiro dia depois da volta. Havia acordado tarde e tinha
passado a maior parte da manhã no bosque ao longo da praia do lago, vendo
o que permanecia igual e o que tinha mudado. A água parecia um pouco
mais baixa e havia menos barcos do que eu esperava, especialmente no
maior feriado do verão, mas fora isso tudo estava da mesma forma de
antes. Eu parecia até dar tapas nos mesmos insetos.
Por volta das 11, meu estômago me alertou para o fato de que eu
tinha pulado o café da manhã. Decidi que seria uma boa ideia ir até o
Village Café. Sem a menor dúvida, o restaurante em Warrington era mais
badalado, mas lá eu seria observado pelas pessoas. O Village Café era
melhor — se é que ainda funcionava. Buddy Jellison era um sujeito malhumorado,
mas sempre fora o melhor cozinheiro de frituras do oeste do
Maine, e o que meu estômago queria era um grande e gorduroso
Villagebúrguer.
Então entra a garotinha, caminhando reto na linha branca e parecendo
uma baliza à frente da banda conduzinho uma parada invisível.
Rodando a cerca de 60 quilômetros, tive tempo de sobra para vê-la,
mas aquela estrada era agitada no verão, e poucas pessoas se
preocupavam em reduzir a velocidade na área. Havia apenas uma dúzia de
radiopatrulhas no condado de Castle, afinal de contas, e não muitas se
importavam com a TR, a não ser que fossem especificamente chamadas.
Parei no acostamento, liguei o pisca-alerta e saí antes que a poeira
começasse a baixar. Era um dia de mormaço, fechado e estagnado, e
mesmo assim as nuvens pareciam baixas o suficiente para serem tocadas.
A criança — uma lourinha com nariz arrebitado e joelhos esfolados —
continuava na linha branca como numa corda bamba e observou minha
aproximação tão destemidamente como uma corça.
— Oi — disse ela. — Vou pra praia. Mamãe não quer me levar e eu
tô chateada. — Bateu o pé para mostrar que sabia tão bem quanto qualquer
pessoa o que era ficar chateada. Três ou 4 anos, era o meu palpite. Bem
falante à sua maneira e muito bonitinha, mas com não mais de 3 ou 4
anos.
— Bom, a praia é um bom lugar para se ir no 4 de Julho, não há
dúvida — disse —, mas...
— Quatro de Julho e os fogos também — concordou ela, fazendo o
“também” soar exótico e doce, como uma palavra em vietnamita.
— ... mas se você andar até lá pela estrada, é mais provável que
acabe no Hospital de Castle Rock.
Decidi que não ficaria ali batendo papo com ela no meio da rota 68,
não com uma curva a apenas 50 metros ao sul e um carro podendo dobrar
a quase 100 por hora a qualquer momento. Na realidade, eu escutava um
motor, e estava girando rápido.
Peguei a criança e a carreguei até onde tinha deixado o carro. Apesar
de ela estar perfeitamente satisfeita de ser carregada e sem o mínimo
medo, eu me senti como um molestador no segundo em que seu bumbum
se apoiou em meu braço. Tinha plena consciência de que qualquer um que
estivesse na combinação de escritório e sala de espera da oficina de
Brooks poderia olhar para fora e me ver. Esta é uma das estranhas
realidades da meia-idade de minha geração: não podemos tocar uma
criança que não seja nossa sem temer que os outros vejam nisso algo
lascivo... ou sem pensar, bem no fundo de nossa psique, que provavelmente
há algo lascivo nisso. Mas tirei-a da estrada. Cheguei a esse ponto. Deixem
que as Mães em Marcha do Oeste do Maine corram atrás de mim e façam
o pior.
— Me leva pra praia? — pediu a garotinha. Tinha olhos brilhantes e
era sorridente. Imaginei que provavelmente estaria grávida por volta dos 12
anos, especialmente dado o modo bacana como usava seu boné de beisebol.
— Tá de calção?
— Acho que deixei meu calção em casa. Não é horrível? Onde está
sua mãe, garotinha?
Como se respondesse diretamente à minha pergunta, o carro que eu
tinha ouvido veio voando de uma estrada no lado próximo da curva. Era um
Jeep Scout com lama borrifada até o alto nas duas laterais. O motor
rosnando como algo no alto de uma árvore e furioso com isso. Uma cabeça
de mulher espetava-se para fora da janela lateral. A mamãe da gracinha
deve ter ficado com medo demais para se sentar; ela dirigia num
agachamento maluco, e se o carro tivesse virado naquela curva específica
na rota 68, quando fosse lançada para fora, minha amiga de maiô vermelho
provavelmente ficaria órfã no ato.
O Scout deu uma guinada brusca, a cabeça enfiou-se novamente para
dentro do carro e ouviu-se um rangido quando a motorista fez a mudança
para aumentar a marcha, tentando colocar sua lata velha de zero a 100
km/h em talvez nove segundos. Se o terror puro pudesse ter feito o
trabalho, tenho certeza de que ela teria sido bem-sucedida.
— É Mattie — disse a menina de roupa de banho. — Tô zangada com
ela. Tô fugindo para passar o 4 de Julho na praia. Se ela tá zangada, eu vou
até minha vó branca.
Eu não tinha ideia do que ela estava falando, mas me passou pela
cabeça que Miss Bosox 1998 poderia ter seu 4 de Julho na praia; eu
aceitaria uma certa porção de qualquer alimento saudável em casa.
Enquanto isso, com o braço que não estava sob o traseiro da criança, eu
acenava para a frente e por cima da cabeça, e com força suficiente para
fazer levantar as mechas do bonito cabelo louro da garota.
— Ei! — gritei. — Ei, senhora! Estou com ela!
O Scout passou voando, ainda acelerando e ainda parecendo furioso
com isso. O cano de descarga soprava nuvens de fumaça azul. Houve um
rangido ainda mais medonho na velha marcha do Scout. Era como alguma
versão maluca de Vamos fazer um trato: “Mattie, você conseguiu passar a
segunda — gostaria de sair e assumir a máquina de lavar roupa ou vai
tentar a terceira?”
Fiz a única coisa em que pude pensar: fui para o meio da estrada,
me virei em direção ao jipe, que agora se distanciava de mim (o cheiro do
óleo era forte e acre) e levantei a criança acima de minha cabeça,
esperando que Mattie nos visse pelo retrovisor. Não me sentia mais um
molestador; sentia-me agora o cruel leiloeiro de um desenho da Disney,
oferecendo o leitãozinho mais bonitinho da ninhada ao lance mais alto. Mas
funcionou. As lanternas traseiras cobertas de lama do Scout se acenderam
e ouviu-se um uivo demoníaco quando os freios mal-usados se trancaram.
Foi bem na frente da oficina. Se houvesse uns velhos clientes por ali para
uma boa fofoca de 4 de Julho, teriam muito para fofocar. Achei que
gostariam especialmente da parte em que mamãe grita para que eu largue
sua filha. Quando você volta para sua casa de veraneio após uma longa
ausência, é sempre bom começar com o pé direito.
As luzes traseiras reluziam e o jipe começou a vir de marcha a ré
pela estrada a mais de 30 quilômetros por hora. Agora a transmissão soava
não furiosa, mas em pânico — por favor, dizia ela, por favor, pare, você
está me matando. A traseira do Scout oscilava de um lado para outro como
a cauda de um cão feliz. Observei-o vir na minha direção, hipnotizado —
agora na pista para o norte, depois através da linha branca e na pista para
o sul, então corrigindo-se para que os pneus do lado esquerdo tirassem
poeira da beira da estrada.
— Mattie vem depressa — disse minha nova amiguinha num tom de
conversa, de não-é-interessante? Tinha um braço em torno do meu
pescoço; por Deus, agora éramos camaradas.
Entretanto, o que a criança disse me acordou. Mattie vem depressa,
não há dúvida, depressa demais. Era bem provável que Mattie amassasse a
traseira do meu Chevrolet. E se eu ficasse simplesmente ali, eu e Baby
Snooks podíamos terminar como pasta de dente entre os dois veículos.
Recuei para a lateral do meu carro, mantendo os olhos fixos no jipe,
e gritei:
— Devagar, Mattie! Devagar!
O docinho gostou.
— Devagaaar... — berrou ela, começando a rir. — Devagaaar... ô
Mattie, devagaaar!
Os freios guincharam numa nova agonia. O jipe levou a última surra,
deu um pulo infeliz para trás enquanto Mattie parava sem o benefício da
embreagem. Aquela investida final levou o para-choque traseiro do Scout
para tão perto do para-choque traseiro de meu Chevy que a brecha poderia
ser fechada com um cigarro. Um tremendo e arrepiante odor de óleo
pairava no ar. A criança sacudiu a mão na frente do rosto, tossindo
teatralmente.
A porta do motorista se abriu e Mattie Devore saiu voando como um
acrobata de circo disparado de um canhão, se você pode imaginar um
acrobata de circo vestido com um velho short de lã estampado e uma bata
de algodão. Minha primeira ideia foi de que a irmã mais velha da garotinha
estava exercendo a função de sua baby-sitter, e que Mattie e mamãe eram
duas pessoas diferentes. Sabia que as garotinhas passam com frequência
um período de seu desenvolvimento chamando os pais pelo primeiro nome,
mas essa moça loura e pálida parecia ter 12, 14 anos, à primeira vista.
Cheguei à conclusão de que sua louca manipulação do Scout não fora terror
pela criança (ou não apenas terror) e sim uma total inexperiência com
automóveis.
Havia algo mais também, certo? Outra suposição que eu fiz. O
enlameado tração-nas-quatro-rodas, o short largo de lã, a bata que só
faltava gritar Kmart, o cabelo louro comprido preso atrás com um daqueles
pequenos elásticos vermelhos e, sobretudo, a desatenção que permite que
uma criança de 3 anos a seus cuidados perambule por aí, em primeiro
lugar... todas essas coisas cheiravam a “lixo-de-trailer”. Sei a impressão
que tais palavras dão, mas eu me baseava em alguma coisa. Além disso,
sou irlandês, droga. Meus ancestrais eram lixo-de-trailer quando os trailers
ainda eram carroções puxados por cavalos.
— Fedorento! — disse a garotinha, ainda sacudindo uma rechonchuda
mão no ar à frente do rosto. — Carro fedorento!
Onde está a roupa de banho do Scout?, pensei, e então minha nova
amiguinha foi-me arrebatada dos braços. Agora que Mattie estava mais
próxima, minha ideia de que era irmã da belezinha de maiô levou um golpe.
É verdade que Mattie só entraria na meia-idade com o século XXI já bem
adiantado, mas também não tinha 12 ou 14 anos. Meu palpite agora era de
20 anos, talvez um ano menos. Quando me arrebatou a garota, vi a aliança
em sua mão esquerda. Vi também os círculos escuros em volta dos olhos,
uma pele cinzenta passando a roxa. Ela era jovem, mas pensei que aquilo
fosse terror de mãe e exaustão.
Esperei que batesse na pirralha, porque é assim que mães lixo-detrailer
reagem ao cansaço e ao medo. Quando ela o fizesse, eu a deteria,
de um modo ou de outro — a distrairia para que voltasse sua raiva contra
mim, se fosse preciso. Não havia nada muito nobre nisso, devo acrescentar,
o que eu queria realmente era adiar os tapas, os sacolejões no ombro e a
gritaria no rosto para um tempo e lugar onde eu não tivesse que presenciá-
los. Era o primeiro dia de minha volta ao local; não queria passar nenhuma
parte dele vendo uma puta desatenta maltratar a filha.
Em vez de sacudir a menina ou gritar “Onde que achava que estava
indo, sua desgraçada?”, Mattie primeiro a abraçou (a menina respondendo
entusiasticamente ao abraço e não mostrando absolutamente nenhum sinal
de medo) e depois cobriu o rosto dela de beijos.
— Por que fez isso? — exclamou. — O que é que te deu na cabeça?
Quando vi que não conseguia encontrar você, me deu vontade de morrer.
Mattie irrompeu em lágrimas. A criança na roupa de banho olhava
para ela com uma expressão de surpresa tão grande e tão completa que
teria sido cômica em outras circunstâncias. Então seu próprio rosto se
enrugou. Fiquei um pouco atrás, vendo-as chorar e se abraçar, e me
sentindo envergonhado de minhas ideias preconcebidas.
Um carro passou por nós e diminuiu a marcha. Um casal idoso — Ma
e Pa Kettle a caminho do armazém para comprar a caixa de cereal do
feriado — olhou embasbacado. Acenei impacientemente com as mãos,
como se dissesse: o que é que estão olhando?, vão embora, vão ver se
estou na esquina. Eles retomaram a velocidade, mas não vi nenhuma placa
de fora do estado, como tinha esperado. Aquela versão de Ma e Pa era de
habitantes locais, e a história logo estaria circulando pelas redondezas;
Mattie, a noiva adolescente, e a alegria de sua vida (a dita alegria tendo
sido indubitavelmente concebida no banco de trás de um carro ou na cama
de um caminhão alguns meses antes da cerimônia legitimadora),
derretendo-se em lágrimas no acostamento da estrada. Com um estranho.
Não, não exatamente um estranho. Mike Noonan, o cara escritor do norte do
estado.
— Eu queria ir pra praia e naa-d-aar! — chorava a garotinha, e agora
era “nadar” que soava exótico. Talvez fosse a palavra em vietnamita para
“êxtase”.
— Eu disse que ia levar você de tarde. — Mattie ainda fungava, mas
começando a se controlar. — Não faça isso de novo, garota, por favor,
nunca mais faça isso, mamãe ficou tão assustada.
— Não vou fazer — disse a criança. — Não vou fazer mesmo. —
Ainda chorando, ela abraçou a moça bem apertado, pondo a cabeça num dos
lados do pescoço de Mattie. Seu boné de beisebol caíra. Peguei-o,
começando a me sentir um estranho ali. Enfiei o boné azul e vermelho na
mão de Mattie até que seus dedos se fecharam sobre ele.
Cheguei à conclusão de que me sentia bastante bem quanto ao modo
como as coisas haviam se resolvido, e talvez tivesse direito a fazê-lo.
Apresentei o incidente como se fosse divertido, e o era, mas tratava-se de
um tipo de diversão que só se percebe depois. Enquanto acontecera, fora
aterrorizante. E se um caminhão tivesse vindo da outra direção? Dobrando a
curva e chegando rápido demais?
Um veículo de fato estava vindo, uma picape do tipo que os turistas
nunca dirigem. Dois outros habitantes locais passaram por ali e se
embasbacaram.
— Moça? — disse. — Mattie? Acho que é melhor eu ir andando. Que
bom que sua garotinha está bem. — Um segundo depois que falei, tive uma
vontade quase irresistível de rir. Eu podia me visualizar fazendo esse
discurso com um sotaque arrastado para Mattie (um nome que tinha a ver
com filmes como Os imperdoáveis ou Bravura indômita, se é que algum
nome teria), com os polegares enfiados no cinto de minhas perneiras de
couro e o Stetson empurrado para trás, revelando minha testa nobre. Senti
um louco impulso de acrescentar: “A senhora é bonita pra burro, dona, não
é a nova professora da escola?”
Ela se virou para mim e vi que era bonita pra burro. Mesmo com
olheiras e porções de seu cabelo louro espetando-se dos dois lados da
cabeça. E achei que ela estava indo bem para uma moça provavelmente
ainda não velha o bastante para tomar um drinque num bar. Pelo menos não
tinha batido na criança com o cinto.
— Muito obrigada — disse a moça. — Ela estava na estrada? — Diga
que não, imploravam seus olhos. Diga pelo menos que ela estava andando
pelo acostamento...
— Bom...
— Eu tava andando pela linha — disse a garota, apontando. Sua voz
assumiu um tênue tom cheio de razões. — É seguro.
O rosto já branco de Mattie ficou ainda mais branco. Não gostei de
vê-la assim, e não gostei de imaginá-la dirigindo para casa daquela maneira,
especialmente com uma criança.
— Onde é que mora, senhora...
— Devore — disse ela. — Sou Mattie Devore. — Ajeitou a criança e
estendeu a mão. Eu a apertei. A manhã estava tépida, e ia ser quente por
volta do meio-dia, um tempo para praia, sem dúvida, mas os dedos que
toquei estavam gelados.
— Moramos logo ali.
Ela apontou para o cruzamento do qual tinha surgido o Scout, e pude
ver — surpresa, surpresa — um trailer duas vezes o tamanho comum
estacionado num bosque de pinheiros a uns 60 metros acima na estradinha
vicinal. Estrada Wasp Hill, lembrei. Percorria cerca de uns 800 metros da
rota 68 até a água — que era conhecido como Middle Bay. Ah, sim, doutor,
está tudo me voltando agora. Estou mais uma vez percorrendo a extensão
de Dark Score. Salvar criancinhas é minha especialidade.
Mesmo assim, eu estava aliviado de saber que ela morava perto —
menos de um quilômetro do lugar onde nossos respectivos veículos
estavam parados com suas traseiras quase se tocando —, e quando pensei
a respeito, fazia sentido. Uma criança tão jovem como a belezinha de roupa
de banho não poderia ter andado muito longe... embora aquela ali já
demonstrasse um bom grau de determinação. Pensei que a aparência
desfigurada de mamãe era ainda mais sugestiva da determinação da filha.
Fiquei contente por ser velho demais para ser um de seus futuros
namorados; ela os faria saltar através de uma argola no colégio e na
faculdade. Uma argola de fogo, provavelmente.
Bom, pelo menos na parte do colégio. Moças do lado trailer duplo da
cidade geralmente não cursavam faculdade, a não ser que houvesse uma
escola vocacional por perto. E ela os faria saltar até que o rapaz certo (ou
mais provavelmente o errado) dobrasse impetuosamente a Grande Curva da
Vida e a atropelasse na rodovia, ela completamente inconsciente de que a
linha branca e segurança eram duas coisas diferentes. Então o ciclo inteiro
se repetiria.
Meu Deus do céu, Noonan, deixe disso, falei comigo mesmo. Ela tem
só 3 anos e você já lhe arranjou três filhos, dois com micose e um
retardado.
— Muito, muito obrigada — repetiu Mattie.
— Tudo bem — disse, e puxei o nariz da garotinha. Embora ainda
com o rosto molhado de lágrimas, ela sorria ensolaradamente para mim
como resposta. — É uma garotinha muito falante.
— Muito falante e muito cheia de vontades. — Agora Mattie deu à
filha um pequeno sacolejão, mas a garota não mostrou nenhum medo,
nenhum sinal de que sacolejar ou bater estivesse na ordem da maioria dos
dias. Pelo contrário, seu sorriso se alargou. A mãe sorriu. E sim, uma vez
passada a aparência desconjuntada, ela era extraordinariamente bonita.
Vestindo uma roupa de tênis e no Castle Rock Country Club (onde
provavelmente jamais entraria em sua vida, a não ser como criada ou
garçonete), ela ficaria provavelmente mais do que bonita. Uma jovem Grace
Kelly, talvez.
Então ela me olhou novamente, os olhos muito abertos e graves.
— Sr. Noonan, não sou uma mãe desatenta — disse ela.
Senti um sobressalto ao ouvir meu nome saindo de sua boca, mas
apenas momentaneamente. Ela estava com a idade certa, afinal de contas,
e meus livros eram provavelmente melhores para ela do que se passasse
as tardes em frente a General Hospital e One life to live. Um pouco, pelo
menos.
— Tivemos uma discussão sobre quando iríamos à praia. Eu queria
pendurar as roupas, almoçar e ir esta tarde. Kyra queria... — ela se
interrompeu. — O quê? O que foi que eu disse?
— O nome dela é Kia? Eu... — Antes que eu pudesse dizer qualquer
outra coisa, aconteceu algo extraordinário: minha boca se encheu de água.
A tal ponto que senti um momento de pânico, como alguém que está
nadando no mar e é embrulhado. Só que aquilo não tinha gosto de sal; era
frio e fresco, com um tênue travo de metal, como sangue.
Virei a cabeça para o lado e cuspi. Esperei que uma golfada de
sangue jorrasse da boca — o tipo de golfada que se recebe geralmente ao
se começar a fazer respiração artificial numa vítima de quase afogamento.
Em vez disso, o que saiu foi o que geralmente sai quando se cospe num dia
quente: uma bolinha branca. E aquela sensação desapareceu antes mesmo
que a bolinha branca atingisse a sujeira do acostamento. Num instante,
como se jamais tivesse estado ali.
— O homem cuspiu — disse a menina prosaicamente.
— Desculpe — eu disse. Também estava perturbado. Pelo amor de
Deus, o que fora aquilo? — Acho que tive uma pequena reação retardada.
Mattie pareceu preocupada, como se eu tivesse 80 anos em vez de
40. Pensei que talvez, para uma moça da idade dela, 40 seja 80.
— Quer vir até minha casa? Eu te dou um copo d’água.
— Não, já estou bem.
— Muito bem. Sr. Noonan... só quero dizer que isso nunca me
aconteceu antes. Eu estava pendurando lençóis... e ela dentro de casa vendo
um desenho do Mighty Mouse no vídeo... então, quando entrei para pegar
mais pregadores... — Olhou para a garota, que não sorria mais. A coisa
agora começava a chegar até ela. Seus olhos estavam bem abertos, e
prestes a se encherem de lágrimas. — Ela tinha sumido. Por um minuto,
achei que eu ia morrer de medo.
Agora a boca da criança começara a tremer, e as lágrimas encheram
seus olhos exatamente no momento esperado. Ela começou a chorar. Mattie
acariciou-lhe os cabelos, consolando a pequena cabeça até que esta se
deitou contra a bata de algodão da Kmart.
— Tudo bem, Ki — disse Mattie. — Desta vez saiu tudo bem, mas
você não pode ir até a estrada. É perigoso. Coisas pequenas são atropeladas
na estrada, e você é uma coisa pequena. A coisinha mais preciosa do
mundo.
Kyra chorou mais forte. Era o som exausto de uma criança que
precisava de uma soneca antes de qualquer outra aventura, na praia ou em
qualquer outro lugar.
— Kia má, Kia má — soluçou ela no pescoço da mãe.
— Não, meu bem, só uma menininha de 3 anos — disse Mattie, e se
eu tivesse abrigado qualquer outro pensamento de sua incompetência como
mãe, ele se dissolveu completamente. Ou talvez já o tivesse feito, afinal de
contas a criança era rechonchuda, graciosa, bem-cuidada e não sofrera dano
nenhum.
Em determinado nível, tais coisas eram registradas. Em outro, eu
tentava lidar com a coisa estranha que tinha acabado de acontecer, e com
a coisa igualmente estranha que pensei estar ouvindo — que a garotinha
que eu retirei da linha branca tinha o nome que planejáramos dar a nossa
filha, se nossa filha tivesse sido uma menina.
— Kia — eu disse. Realmente maravilhado. Como se meu toque
pudesse quebrá-la, acariciei hesitantemente a parte de trás de sua cabeça.
Seu cabelo estava aquecido pelo sol e bonito.
— Não — disse Mattie. — Kia é o máximo que ela consegue
pronunciar do próprio nome por enquanto. Mas é Kyra, não Kia. Vem do
grego. Significa “elegante, distinta”. — Mexeu-se, um pouco autoconsciente.
— Eu tirei de um livro de nomes de bebê. Enquanto estava grávida, entrei
no estilo Oprah. Melhor que entrar em parafuso.
— É um nome adorável — eu disse. — E não acho que você não seja
uma boa mãe.
O que passou por minha cabeça imediatamente foi uma história
contada por Frank Arlen durante uma refeição de Natal, a respeito de Petie,
o irmão mais novo. Frank tinha feito com que a mesa inteira risse sem
parar. Mesmo Petie, que afirmava não se lembrar nem um pouco do
incidente, havia rido até as lágrimas escorrerem por seu rosto.
Certa Páscoa, disse Frank, quando Petie tinha uns 5 anos de idade,
seu pessoal os reunira para uma caça aos ovos de Páscoa. Os pais haviam
escondido mais de cem ovos cozidos coloridos pela casa na noite anterior,
depois de entregar as crianças aos avós. Todos passaram uma antiga e
animada manhã de Páscoa, pelo menos até que Johanna, no pátio contando
sua porção dos despojos, olhasse para cima e desse um uivo. Lá estava
Petie, arrastando-se alegremente pela aba do telhado do segundo andar na
parte de trás da casa, a uns 2 metros de altura até o pátio de concreto.
O sr. Arlen resgatara Petie enquanto o resto da família permanecia
embaixo, dando-se as mãos, gelados de horror e fascínio. A sra. Arlen
repetia a ave-maria vezes sem conta (“Tão rápido que parecia uma
algaravia maluca”, dissera Frank, rindo ainda mais), até que o marido
desaparecesse novamente pela janela do quarto com Petie nos braços.
Então ela desmaiou no chão, quebrando o nariz. Quando lhe pediram uma
explicação, Petie disse que queria procurar ovos na calha do telhado.
Penso que todas as famílias têm pelo menos uma história assim; a
sobrevivência dos Peties e Kyras do mundo é um argumento convincente —
pelo menos na mente dos pais — da existência de Deus.
— Fiquei tão assustada — disse Mattie, agora parecendo novamente
ter 14 anos. Quinze no máximo.
— Mas já passou — eu disse. — E Kyra não vai mais andar pela
estrada, vai, Kyra?
Ela balançou a cabeça no ombro da mãe, sem levantá-la. Tive a
impressão de que provavelmente estaria dormindo antes de Mattie voltar ao
velho e bom trailer duplo.
— O senhor não sabe como isso é esquisito para mim — disse
Mattie. — Um de meus escritores favoritos aparece do nada e salva minha
filha. Eu sabia que o senhor tinha uma casa na TR, aquela casa grande e
velha de troncos que todos chamam de Sara Laughs, mas o pessoal diz que
o senhor não vem mais desde que sua mulher morreu.
— Por muito tempo não vim — disse. — Se Sara fosse um
casamento em vez de uma casa, poderíamos chamar isso de uma
reconciliação experimental.
Ela sorriu brevemente, mas a seguir sua expressão tornou-se grave
de novo.
— Quero te pedir uma coisa. Um favor.
— Peça.
— Não fale sobre isso. Não é um bom período para Ki e para mim.
— Por que não?
Ela mordeu o lábio e pareceu ponderar se respondia à pergunta —
pergunta esta que eu poderia não ter feito, se tivesse tido um momento a
mais para pensar —, e então balançou a cabeça.
— Porque não. E eu ficaria grata se o senhor não falasse sobre o que
aconteceu na cidade. Mais grata do que pode imaginar.
— Sem problemas.
— Tem certeza?
— Claro. Sou basicamente um veranista que não tem estado por aqui
há algum tempo... O que significa que eu não tenho muita gente com quem
falar, de qualquer modo. — Havia Bill Dean, claro, mas eu podia permanecer
em silêncio perto dele. Não que ele não soubesse. Se essa moça achava que
o pessoal da terra não ia descobrir sobre a tentativa da filha dela de chegar
à praia pelas próprias pernas, estava enganando a si própria. — Mas acho
que já fomos notados. Dê uma espiada na Oficina de Brooks. Dê uma
espiada, não olhe fixamente.
Ela o fez, e suspirou. Dois velhos estavam em pé na pista asfaltada
onde antes havia bombas de gasolina. Um era provavelmente o próprio
Brooks; achei que podia ver vestígios do cabelo vermelho ondulante, o que
sempre o tinha feito parecer uma versão Nova Inglaterra do palhaço Bozo.
O outro, velho o bastante para fazer Brooks parecer um garotão ainda nos
cueiros, apoiava-se numa bengala de castão de ouro de um modo
estranhamente ardiloso.
— Não posso fazer nada quanto a eles — disse ela, parecendo
deprimida. — Ninguém pode fazer nada quanto a eles. Acho que devia me
considerar sortuda porque é um feriado e só há dois ali.
— Além disso — acrescentei —, eles provavelmente não viram
muito. — O que ignorava duas coisas: primeiro, que meia dúzia de carros e
picapes haviam passado enquanto estávamos ali e segundo, fosse lá o que
Brooks e seu amigo idoso não tivessem visto, eles ficariam mais do que
felizes de inventar.
No ombro de Mattie, Kyra roncou como uma dama. Mattie olhou para
ela e sorriu, cheia de arrependimento e amor.
— Lamento termos nos encontrado em circunstâncias que me fazem
parecer uma tola, porque sou realmente uma grande fã sua. Na livraria de
Castle Rock dizem que o senhor tem um novo romance saindo nesse verão.
Concordei com a cabeça.
— Chama-se A promessa de Helen.
Ela sorriu.
— Bom título.
— Obrigado. É melhor você levar sua companheirinha para casa
antes que ela quebre o seu braço.
— É.
Há gente neste mundo que tem uma propensão a fazer perguntas
constrangedoras e embaraçosas sem querer — é como o talento para
entrar pelas portas adentro. Sou dessa tribo, e enquanto andava com ela até
o lado do passageiro no Scout, achei uma boa pergunta. E mesmo assim era
difícil me censurar de modo muito entusiástico. Afinal de contas, vi a
aliança de casamento em sua mão.
— Vai contar a seu marido?
Seu sorriso continuou, mas de certo modo empalideceu. E ficou
tenso. Se fosse possível apagar uma pergunta falada como se pode apagar
uma linha digitada quando se escreve, eu teria feito isso.
— Ele morreu em agosto passado.
— Mattie, desculpe. Vivo metendo os pés pelas mãos.
— Você não podia saber. Não se pensa que uma moça da minha
idade é casada, não é? E se é, o marido supostamente está no Exército ou
qualquer coisa assim.
Havia um assento para bebê cor-de-rosa — também da Kmart,
segundo o meu palpite — do lado do passageiro do Scout. Mattie tentou
suspender Kyra até ele, mas vi que lutava para fazê-lo. Dei um passo à
frente para ajudá-la e, por um momento, enquanto eu passava por ela para
agarrar uma perna gorducha, o dorso de minha mão roçou em seu seio. Ela
não pôde recuar, a não ser que quisesse correr o risco de Kyra deslizar
para fora do assento e cair no chão, mas eu podia sentir que ela tinha
registrado o toque. Meu marido está morto, não é uma ameaça, portanto o
escritor importante acha que tudo bem arriscar uma mão boba numa
manhã quente de verão. E o que posso dizer? O Escritor Importante apareceu e tirou minha filha da estrada, talvez tenha salvado sua vida.
Não, Mattie, eu posso ter 40 a caminho dos 100, mas não estava
arriscando uma mão boba. Só que eu não podia dizer isso; apenas pioraria
as coisas. Senti meu rosto enrubescer um pouco.
— Que idade você tem? — perguntei, depois de ajustarmos o bebê
na posição e nos colocarmos a uma distância segura.
Ela me encarou. Cansada ou não, já se controlara.
— Velha o bastante para saber em que situação estou. — Estendeu a
mão. — Mais uma vez, obrigada, sr. Noonan. Deus o mandou para cá no
momento certo.
— Não, Deus só me disse que eu precisava de um hambúrguer no
Village Café — eu disse. — Ou talvez fosse seu oposto, o diabo. Por favor,
diga que Buddy ainda continua com o mesmo velho quiosque.
Ela sorriu. Seu rosto se aqueceu de novo, e fiquei feliz de vê-lo.
— Ele ainda vai estar lá quando os filhos de Kyra estiverem velhos o
bastante para tentar comprar cerveja usando carteiras de identidade falsas.
A não ser que alguém enverede estrada adentro e peça algo como camarão
tetrazzini. Se isso acontecesse, ele provavelmente cairia duro com um
ataque do coração.
— É. Bem, quando eu tiver alguns exemplares do novo livro, eu te
mando um.
O sorriso continuava lá, mas agora sombreado de cautela.
— Não precisa fazer isso, sr. Noonan.
— Não, mas vou fazer. Meu agente me manda cinquenta exemplares
grátis. Descobri que quanto mais velho fico, mais eles aumentam.
Talvez ela ouvisse em minha voz mais do que eu pretendera colocar
lá — as pessoas às vezes o fazem, acho eu.
— Muito bem. Vou esperar com ansiedade.
Dei uma olhada na criança, dormindo naquele modo estranhamente
casual que elas têm — a cabeça inclinada sobre o ombro, os lábios
adoráveis apertados e soprando uma bolha. A pele delas é que me espanta
— tão fina e perfeita que não parece conter poro nenhum. Seu boné estava
torto. Mattie me observou pegá-lo e rearrumá-lo para que a sombra do
visor abrigasse os olhos fechados da menina.
— Kyra — eu disse.
Mattie assentiu com a cabeça.
— Como uma dama.
— Kia é um nome africano — eu disse. — Significa “o começo da
estação”. — Então fui embora, fazendo-lhe um pequeno aceno enquanto
voltava para o lado do motorista do Chevy. Sentia seus olhos curiosos sobre
mim, e tive a sensação muito estranha de que eu ia chorar.
A sensação permaneceu comigo muito tempo depois de as duas
terem desaparecido de minha visão; ainda continuava comigo quando
cheguei ao Village Café. Entrei no estacionamento sujo à esquerda das
bombas de gasolina de marca barata e me sentei ali por algum tempo,
pensando em Jo e num kit para teste doméstico de gravidez que custara
22,50 dólares. Um pequeno segredo que ela quis manter até estar
absolutamente certa. Devia ser isso; o que mais poderia ter sido?
— Kia — eu disse. — O começo da estação. — Mas isso me fez ter
vontade de chorar de novo, então saí do carro e bati a porta com força
atrás de mim, como se desse modo pudesse conservar a tristeza lá dentro.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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