quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Capítulo Seis


No dia 3 de julho de 1998, joguei duas maletas e meu PowerBook no porta malas de meu Chevrolet de tamanho médio, comecei a dar marcha a ré
pela entrada de carros, então parei e entrei novamente na casa. Eu a senti
vazia e de certo modo abandonada, como um amante fiel que foi deixado e
não entende por quê. A mobília não fora coberta, e a energia ainda estava
ligada (eu sabia que A Grande Experiência do Lago podia se revelar um
rápido e completo fracasso), mas o número 14 da rua Benton parecia
esquecido mesmo assim. Ambientes muito cheios de mobília para
produzirem eco ainda o faziam quando andei por eles, e em toda parte
parecia haver luz empoeirada demais.
Em meu escritório, contra a poeira, o computador estava encapuzado
como um executor. Ajoelhei-me diante dele e abri uma das gavetas da
mesa. Dentro dela havia quatro resmas de papel. Peguei uma, comecei a
andar com ela debaixo do braço; então pensei melhor e voltei. Eu tinha
colocado aquela provocante foto de Jo em traje de banho na gaveta larga do
meio. Então a retirei, rasguei o invólucro de papel na parte de trás da
resma e coloquei a foto no meio dela, como um marcador de livro. Se por
acaso eu começasse a escrever de novo, e se o texto fosse adiante,
encontraria Johanna por volta da página 250.
Deixei a casa, tranquei a porta dos fundos, entrei no carro e me afastei. E nunca mais voltei.

Senti-me tentado a descer até o lago e examinar o trabalho — que se
revelou mais extenso do que Bill Dean originalmente tinha esperado — em
várias ocasiões. O que me manteve distante foi uma sensação, nunca
muito articulada por minha mente consciente mas ainda bastante poderosa,
de que eu não devia fazer a coisa daquele modo; de que, na próxima vez
que viesse a Sara, devia ser para desfazer a mala e ficar.
Bill contratou Kenny Auster para consertar o telhado, e conseguiu o
primo de Kenny, Timmy Larribee, para “raspar a garotona de alto a baixo”,
um processo de limpeza parecido como arear panelas que é empregado às
vezes em casas de troncos. Bill fez também com que um bombeiro
examinasse os canos, e recebeu a minha permissão para substituir alguns
dos velhos encanamentos e a bomba do poço.
Ele se queixou de todas essas despesas pelo telefone; deixei que o
fizesse. Quando se trata de ianques da quinta ou sexta geração e gasto de
dinheiro, pode-se muito bem sentar e deixar que desabafem. De algum
modo, puxar uma verdinha simplesmente parece tão errado a um ianque,
como bolinar em público. Quanto a mim mesmo, não me importava de
gastar um pouco. Vivo frugalmente a maior parte do tempo, não por
qualquer código moral e sim porque minha imaginação, muito viva em
outros aspectos, não funciona muito bem no assunto dinheiro. Minha ideia
de farra são três dias em Boston, um jogo de beisebol dos Red Sox, uma
ida à Tower Records & Video e uma visita à livraria Wordsworth, em
Cambridge. Viver assim não faz diferença no lucro, muito menos no
montante principal; eu tinha um bom administrador de investimentos em
Waterville, e no dia em que tranquei a porta da casa de Derry e rumei na
direção oeste para a TR-90 eu valia ligeiramente mais que cinco milhões de
dólares. Não muito, comparado a Bill Gates, mas um grande número para
aquela área, e podia arcar animadamente com o alto custo dos consertos
da casa.
Foi uma estranha primavera tardia e um verão precoce para mim. O
que fiz, sobretudo, foi esperar, encerrar meus negócios na cidade, falar com
Bill Dean quando este ligou com a última rodada de problemas e tentar não
pensar. Fiz a entrevista para a Publishers Weekly, e quando o entrevistador
perguntou se tive qualquer problema voltando a trabalhar “no despertar do
meu luto”, eu disse não com uma cara absolutamente limpa. Por que não?
Era verdade. Meus problemas só haviam começado quando terminei De
cima a baixo; até então, eu havia continuado a todo vapor.
Em meados de junho, encontrei-me com Frank Arlen para almoçar no
Starlite Cafe. O Starlite fica em Lewiston, geograficamente a meio caminho
entre a cidade dele e a minha. À sobremesa (a famosa tortinha de morango
do Starlite), Frank perguntou se eu estava saindo com alguém. Olhei-o
surpreso.
— Por que ficou tão espantado? — perguntou ele, o rosto registrando
uma das novecentas emoções sem nome, esta em algum lugar entre a
diversão e a irritação. — É claro que eu não pensaria que está sendo infiel a
Jo. Em agosto vai fazer quatro anos que ela morreu.
— Não — eu disse. — Não estou saindo com ninguém.
Ele me encarou silenciosamente. Olhei de volta por alguns segundos,
depois comecei a mexer com a colher o chantili no alto da minha tortinha.
Os biscoitos ainda estavam quentes do forno, e o chantili derretia. Isso me
fez pensar naquela velha canção tola falando de alguém que deixou o bolo
na chuva.
— Você tem saído com alguém, Mike?
— Tenho certeza de que não é da sua conta.
— Ah, pelo amor de Deus. Nas suas férias? Você...
Eu me obriguei a erguer os olhos do chantili que derretia.
— Não — eu disse. — Não.
Ficou em silêncio por mais um momento ou dois. Achei que ele
estava pronto para mudar de assunto, o que seria ótimo para mim. Em vez
disso, ele me perguntou diretamente se eu tinha dormido com alguém
desde que Johanna morreu. Teria aceito uma mentira sobre aquele assunto
mesmo se não acreditasse inteiramente nela — os homens mentem sobre
sexo o tempo todo. Mas eu disse a verdade... e com um certo prazer
perverso.
— Não.
— Nem uma única vez?
— Nem uma única vez.
— Uma massagista? Sabe, pelo menos para...
— Não.
Ele ficou ali sentado, batendo com a colher na borda da tigela com a
sobremesa. Não tinha comido um único pedaço. Olhava para mim como se
eu fosse uma espécie nova e nojenta de inseto. Não gostei muito daquilo,
mas acho que entendi.
Cheguei perto do que nesses dias se chama de “uma relação” em
duas ocasiões, nenhuma delas em Key Largo, onde eu observara vagamente
duas mil mulheres bonitas andando, vestidas apenas de um ponto e uma
promessa. Tinha havido uma garçonete de cabelos vermelhos, Kelli, num
restaurante, onde eu almoçava com frequência. Depois de algum tempo,
passamos a conversar, brincando, e então começou a haver certo contato
visual, você sabe do que estou falando, olhares que simplesmente
demoravam um pouco demais. Comecei a reparar nas pernas dela e no
modo como o uniforme se retesava nos quadris quando se virava, e ela
notou que eu reparava.
E houve uma mulher em Nu You, o lugar onde eu costumava malhar.
Uma mulher alta que gostava de bustiê de jogging cor-de-rosa e short preto
de ciclismo. Muito apetitosa. Além disso, eu gostava das coisas que ela
levava para ler enquanto pedalava a bicicleta ergométrica numa daquelas
intermináveis viagens aeróbicas para lugar nenhum — não Mademoiselle ou
Cosmo, mas romances de pessoas como John Irving e Ellen Gilchrist. Gosto
de gente que lê livros de verdade, e não apenas porque eu mesmo os
escrevia no passado. Leitores de livros têm a mesma propensão que
qualquer um a falar sobre o tempo, mas geralmente podem continuar dali.
O nome da loura com o bustiê rosa e short preto era Adria Bundy.
Começamos a conversar sobre livros enquanto pedalávamos lado a lado,
entrando cada vez mais profundamente em lugar nenhum, e chegou ao
ponto em que eu a estava ajudando uma ou duas manhãs por semana na
sala de peso. Há algo estranhamente íntimo em ajudar outra pessoa na
ginástica. A posição de bruços de quem ergue o peso é parte dela, suponho
(especialmente quando quem ergue o peso é uma mulher), mas não é tudo,
e nem mesmo a maior parte da coisa. É principalmente o fator
dependência. Embora raramente chegue a esse ponto, aquele que ergue o
peso está confiando a vida a quem o ajuda. E em algum ponto no inverno de
1996, aqueles olhares começaram enquanto ela se deitava no banco e eu
ficava em pé sobre ela, olhando para seu rosto de cabeça para baixo.
Olhares que se demoram um pouco demais.
Kelli tinha uns 30 anos, Adria talvez fosse um pouco mais nova. Kelli
era divorciada, Adria nunca se casou. Em nenhum dos dois casos eu teria
assaltado um berçário, e acho que ambas ficariam contentes de ir para a
cama comigo mesmo sem ser nada definitivo. Uma espécie de teste de
química. Mesmo assim o que eu fiz no caso de Kelli foi achar um
restaurante diferente para almoçar e, quando a Associação Cristã de Moços
me mandou uma oferta de exercícios grátis como experiência, aceitei e
jamais voltei a Nu You. Lembro-me de ter passado por Adria Bundy certo
dia na rua seis meses ou mais depois da mudança, e embora eu a
cumprimentasse, fiz questão de não ver seu olhar intrigado e levemente
magoado.
De um modo puramente físico, eu queria ambas (na verdade, lembro
de um sonho no qual eu tinha as duas, na mesma cama e ao mesmo
tempo), e ainda assim não queria nenhuma das duas. Em parte era minha
incapacidade de escrever — minha vida já estragada o suficiente, obrigado,
sem que eu acrescentasse complicações adicionais. E em parte era o
trabalho para a verificação de que a mulher retribuindo seus olhares está
interessada em você e não em sua conta bancária mais para extravagante.
A maior parte, creio eu, era que ainda havia muito de Jo na minha
cabeça e no meu coração. Não havia espaço para ninguém mais, mesmo
depois de quatro anos. Aquela dor era como colesterol, e se você acha isso
engraçado ou esquisito, seja grato.
— E amigos? — perguntou Frank, finalmente começando a comer sua
tortinha de morango. — Você tem amigos com quem sai, não tem?
— Tenho — eu disse. — Montes de amigos. — O que era uma
mentira, mas eu tinha um monte de palavras cruzadas para fazer, um
monte de livros para ler e um monte de filmes para assistir no meu vídeo
à noite; praticamente podia recitar de cor a advertência do FBI sobre
cópias ilegais. Quando se tratava de gente da vida real, as únicas pessoas
para as quais eu liguei quando estava pronto para deixar Derry foram meu
médico e meu dentista, e a maior parte da correspondência que mandei
naquele junho consistia em cartões de mudança de endereço para revistas
como Harper’s e National Geographic.
— Frank — eu disse —, você parece uma mãe judia.
— Às vezes, quando estou com você, eu me sinto como uma mãe
judia — respondeu. — Daquelas que acreditam nos poderes curativos de
batatas cozidas em vez de pão ázimo. Há muito tempo que você não está com uma aparência tão boa, finalmente engordou um pouco, acho eu...
— Demais.
— Besteira, você parecia um faquir quando veio no Natal. Além
disso, pegou um pouco de sol no rosto e nos braços.
— Tenho andado à beça.
— Portanto está com melhor aparência... a não ser pelos olhos. Às
vezes você fica com essa expressão, e cada vez que eu a vejo, me
preocupo. Acho que Jo ficaria contente que alguém esteja se preocupando.
— Que expressão?
— Seu olhar de mil metros de distância. Quer saber a verdade? Você parece alguém que foi capturado e não consegue se soltar.

Fui embora de Derry às três e meia, parei em Rumford para jantar e depois dirigi lentamente pelas colinas ascendentes do oeste do Maine enquanto o
sol se punha. Eu tinha planejado cuidadosamente minha hora de partida e
chegada, mesmo que inconscientemente, e enquanto passava por Morton e
entrava no distrito não incorporado da TR-90, tornei-me consciente das
batidas aceleradas de meu coração. Eu transpirava no rosto e nos braços,
apesar do ar-condicionado do carro. Nada no rádio parecia bom, todas as
músicas soavam como gritos. Assim, desliguei-o.
Eu me sentia amedrontado, e com um bom motivo para estar assim.
Mesmo pondo de lado a peculiar polinização cruzada entre os sonhos e as
coisas no mundo real (como pude fazer facilmente, descartando o corte em
minha mão e os girassóis crescendo através das tábuas do alpendre dos
fundos como coincidências ou felpas psíquicas), eu tinha motivo para estar
com medo. Porque aqueles sonhos não haviam sido comuns, e minha
decisão de voltar ao lago depois de todo esse tempo não fora uma decisão
comum. Eu não me sentia como o homem moderno de fin-de-millénaire,
numa busca espiritual para confrontar seus medos (eu estou bem, você
está bem, vamos todos fazer uma masturbação mútua enquanto William
Ackerman toca suavemente ao fundo); sinto-me mais como algum louco
profeta do Velho Testamento indo ao deserto para viver de gafanhotos e
água alcalina porque Deus o convocou num sonho.
Eu estava com problemas, minha vida continuava razoavelmente
uma-tremenda-bagunça, e não conseguir escrever era só parte daquilo. Não
estuprava crianças ou percorria o Times Square pregando teorias de
conspiração por um megafone, mas mesmo assim estava com problemas.
Havia perdido meu lugar na ordem das coisas e não conseguia encontrá-lo
de novo. Nenhuma surpresa nisso; afinal de contas a vida não é um livro.
Naquela noite quente de julho, eu estava engajado era numa autoinduzida
terapia de choque, e deem-me pelo menos esse crédito — eu sabia disso.
Chega-se a Dark Score assim: I-95 de Derry a Newport; rota 2 de
Newport a Bethel (com uma parada em Rumford, que costumava feder
como a varanda da frente do inferno até que a economia voltada para o
papel praticamente parasse durante a segunda administração Reagan).
Depois toma-se a rota 68, a velha estrada do condado, através de Castle
View, Motton (onde o centro consiste em um celeiro convertido que vende
vídeos, cerveja e rifles de segunda mão) e em seguida passa-se pela
tabuleta que indica TR-90 e a que diz O GUARDA-FLORESTAL É A MELHOR
ASSISTÊNCIA NUMA EMERGÊNCIA, DISQUE 1-800-555-GUARDA OU *72 NO
TELEFONE CELULAR. Ao que alguém acrescentara com um spray,
FODAM-SE AS ÁGUIAS.
Oito quilômetros depois desse sinal, entra-se por uma estrada
estreita à direita, sinalizada apenas por um quadrado de lata com o
desbotado número 42. Acima dela, como tremas, estão dois buracos de bala
calibre .22.
Entrei nessa estrada mais ou menos quando esperava — eram 7h16
da noite, horário de verão da Costa Leste pelo relógio do painel do
Chevrolet.
E a emoção estava chegando em casa.

Percorri uns 300 metros segundo o hodômetro, ouvindo a relva crescida da
pista chicotear o chassi do carro, escutando um ramo de vez em quando
arranhar o teto ou se chocar contra o lado do passageiro como um soco.
Finalmente estacionei e desliguei o motor. Saí, andei até a traseira
do carro, deitei de bruços e comecei a puxar o capim que tocava o quente
sistema exaustor do Chevy. Tinha sido um verão seco, e era melhor tomar
precauções. Eu cheguei exatamente nessa hora para replicar meus sonhos,
esperando por algum insight mais profundo que me revelasse algo mais
sobre eles ou que me desse uma ideia do que fazer a seguir. O que não
queria provocar era um incêndio na floresta.
Executada a tarefa, levantei e olhei ao redor. Os grilos cantavam,
como haviam feito em meus sonhos, e as árvores amontoavam-se
próximas dos dois lados da estrada, como também sempre faziam nos
sonhos. Acima de minha cabeça, o céu era uma faixa de azul desbotado.
Comecei a andar, subindo pelo sulco feito pela roda direita no
caminho. Jo e eu tivemos um vizinho naquele final da estrada, o velho Lars
Washburn, mas agora a entrada de carros de Lars mostrava-se invadida por
arbustos de zimbro e bloqueada por um pedaço de corrente enferrujada.
Pregado a uma árvore à esquerda da corrente havia um aviso de NÃO
ULTRAPASSAR. Numa árvore da direita, uma tabuleta anunciava
CORRETORA IMOBILIÁRIA PRÓXIMO SÉCULO, e um telefone local. Era
difícil ler as palavras desbotadas na escuridão crescente.
Continuei andando, mais uma vez consciente das batidas fortes do
meu coração e de como os mosquitos zumbiam em torno de meu rosto e
meus braços. O auge da estação deles já tinha passado, mas eu estava
transpirando muito, e esse é um cheiro de que gostam. Deve lembrá-los de
sangue.
Até que ponto sentia medo ao me aproximar de Sara Laughs? Não
me lembro. Suspeito que o medo, como a dor, é uma dessas coisas que
escapolem da mente depois que passam. O que eu me lembro é de uma
sensação que havia tido antes quando estava aqui, especialmente quando
caminhava por essa estrada sozinho. A sensação de que a realidade era
frágil. Acho que é frágil, fina como gelo do lago depois de um degelo, e
preenchemos nossa vida com barulho, luz e movimento para esconder tal
fragilidade de nós mesmos. Mas em lugares como a estrada 42, você
descobre que toda aquela fumaça e todos aqueles espelhos foram
removidos. O que sobra é o som de grilos e a visão de folhas verdes
escurecendo até o negro; galhos que têm formas de rostos; o som de seu
coração no peito, o pulsar do sangue contra a parte de trás dos olhos e a
aparência do céu quando o sangue azul do dia some da superfície celeste.
O que chega quando a luz do dia vai embora é uma espécie de
certeza: que abaixo da pele há um segredo, algum mistério tão negro
quanto luminoso. Sente-se esse mistério em cada respiração, em cada
sombra, espera-se mergulhar nele a cada passo. Ele está aqui: desliza-se
nele numa espécie de curva sem fôlego, como um skatista virando para
casa.
Parei por um momento a cerca de 800 metros ao sul de onde tinha
deixado o carro, e ainda a 800 metros ao norte da entrada de carros. Ali a
estrada se dobra bruscamente, e à direita um campo aberto com
inclinações abruptas desce em direção ao lago. Prado Tidwell é como os
moradores locais o chamam, ou às vezes de Velho Campo. Foi aqui que
Sara Tidwell e sua curiosa tribo construíram suas cabanas, pelo menos
segundo Marie Hingerman (e certa vez, quando perguntei a Bill Dean, ele
concordou que o local era este... embora não parecesse interessado em
continuar a conversa, o que no momento me pareceu um pouco estranho).
Fiquei ali por um instante, olhando a extremidade norte do Dark
Score lá embaixo. A água mostrava-se vítrea e calma, ainda cor de açúcar
cristalizado no fulgor do pôr do sol, sem uma ondulação ou pequena
embarcação à vista. O pessoal dos barcos estaria na marina ou no Sunset
Bar de Warrington agora, imaginei, comendo rolinhos de lagosta e tomando
grandes coquetéis misturados. Mais tarde, alguns deles, excitados com
estimulantes e martínis, ficariam para cima e para baixo no lago ao luar.
Imaginei se estaria por perto para escutá-los. Pensei haver uma boa chance
de que então eu estivesse voltando para Derry, aterrorizado com o que
tinha descoberto ou desiludido por não ter encontrado absolutamente nada.
— Homenzinho engraçado — disse Strickland.
Eu não sabia que ia falar até que as palavras tivessem saído de
minha boca, e por que tais palavras especialmente, eu não tinha ideia.
Lembrei-me do sonho sobre Jo debaixo da cama e estremeci. Um mosquito
zumbiu em meu ouvido. Dei um tapa nele e continuei andando.
No final, a chegada ao começo da entrada de carros foi quase
perfeitamente calculada, a sensação de ter voltado a entrar em meu sonho
quase completa. Mesmo os balões de gás amarrados à tabuleta SARA
LAUGHS (um branco e um azul, ambos com um BEM-VINDO DE VOLTA ,
MIKE!) e flutuando contra o fundo de árvores cada vez mais escuras
pareciam intensificar o déjà-vu que havia induzido deliberadamente, pois
nenhum sonho é exatamente igual ao outro, é? As coisas concebidas pelas
mentes e feitas pelas mãos nunca podem ser as mesmas, mesmo quando
se esforçam ao máximo para serem idênticas, porque jamais somos os
mesmos de um dia para o outro, ou mesmo de um momento para o outro.
Andei até a tabuleta, consciente do mistério do lugar ao crepúsculo.
Apertei a tábua, sentindo pelo tato sua áspera realidade, e passei as pontas
dos dedos pelas letras, confrontando as lascas e lendo com minha pele
como um cego lendo em braile: S e A e R e A; L e A e U e G e H e S.
A entrada de carros havia sido limpa de agulhas de pinheiro caídas e
galhos soprados pelo vento, mas Dark Score bruxuleava num rosa desbotado
exatamente como nos meus sonhos, e o volume espalhado da casa era o
mesmo. Atenciosamente, Bill havia deixado acesa a lâmpada do alpendre
dos fundos, e os girassóis que cresciam através das tábuas havia muito
tinham sido cortados, mas todo o resto era o mesmo.
Olhei para cima, para a fenda do céu sobre a estrada. Nada...
esperei... e nada... continuei esperando... e então lá estava ela, bem no
centro do local para onde meu olhar se dirigira. Num momento havia apenas
o céu que se desvanecia (com azul-índigo apenas começando a se erguer
das beiras, como uma infusão de tinta), e no seguinte Vênus fulgurava ali,
brilhante e firme. As pessoas falam de observar as estrelas surgirem, e
acho que algumas o fazem, mas penso que foi a única vez na vida em que realmente vi uma estrela aparecer. Fiz meu pedido para ela também, mas
desta vez era no tempo real, e não pedi Jo.
— Me ajuda — disse, olhando a estrela. Teria dito mais, se soubesse o que dizer. Não sabia de que tipo de ajuda precisava.

Chega, disse uma voz em minha mente de maneira desconfortável. Agora
chega. Volte e entre no carro.
Só que não era esse o plano. O plano era descer a entrada de carros,
exatamente como tinha feito no sonho final, o pesadelo. O plano era provar
a mim mesmo que não havia nenhum monstro embrulhado numa mortalha,
espreitando nas sombras da grande casa de troncos lá embaixo. O plano
baseava-se muito naquele pedacinho de sabedoria da Nova Era, que afirma
que a palavra “temor” significa “Tempo de Enfrentar Males, Obstáculos e se
Recuperar”. Mas enquanto eu estava ali, vendo lá embaixo a centelha de luz
do alpendre (parecia muito pequena na escuridão crescente), me ocorreu
que havia outro pedacinho de sabedoria, não tão otimista, sugerindo que
“temor” é na verdade um acrônimo para “Tempo de Estragar o Mundo,
Olhar e se ‘Retirar’”. Ali sozinho no bosque enquanto a luz deixava o céu, a
última interpretação parecia ser a mais inteligente, não havia dúvida.
Olhei para baixo e fiquei um tanto surpreso de ver que tinha tirado
um dos balões — tinha-o desamarrado sem mesmo notar enquanto
elaborava as coisas. Ele flutuava serenamente por minha mão acima no
final do cordão, as palavras nele impressas agora impossíveis de serem
lidas na escuridão que aumentava.
Talvez seja tudo discutível, afinal de contas; talvez eu não possa me
mover. Talvez aquele velho demônio, o caminho do escritor, tenha me pego
de novo, e eu simplesmente vou ficar aqui como uma estátua até que
alguém apareça e me arraste para longe.
Mas era o tempo real no mundo real, e no mundo real não havia algo
como o caminho do escritor. Abri a mão. Enquanto o cordão que eu vinha
segurando flutuava livremente, caminhei sob o balão que subia e comecei a
descer a entrada de carros. Pé ante pé, como desde que tinha aprendido
esse truque pela primeira vez em 1959. Penetrei cada vez mais
profundamente no cheiro limpo mas acre de pinheiros, e uma vez me
peguei dando um passo extragrande, evitando um galho caído que havia
estado no sonho, mas não estava aqui na realidade.
Meu coração ainda batia com força e o suor ainda fluía de meu
corpo, tornando a pele oleosa e atraindo mosquitos. Ergui a mão para tirar o
cabelo da testa e então parei, mantendo-a com os dedos abertos na frente
dos olhos. Coloquei a outra mão junto da primeira. Nenhuma das duas
estava com qualquer marca; não havia sequer a sombra de uma cicatriz do
corte que eu tinha feito em mim mesmo ao me arrastar pelo quarto
durante a tempestade de gelo.
— Estou bem — disse. — Estou bem.
Homenzinho engraçado, disse Strickland, respondeu uma voz. Não era
a minha, nem de Jo; era a voz de OVNI que tinha narrado meu pesadelo,
que me empurrara para a frente mesmo quando eu queria parar. A voz de
um estranho.
Comecei a andar de novo. Eu tinha passado do meio da entrada de
carros agora. Alcançara o ponto em que, no sonho, eu dizia à voz que
estava com medo da sra. Danvers.
— Tenho medo da sra. D. — disse, experimentando as palavras em
voz alta na escuridão crescente. — E se a velha governanta má estiver lá?
Um mergulhão-do-norte gritou no lago, mas a voz não respondeu.
Suponho que não tinha que fazê-lo. Não havia nenhuma sra. Danvers, ela era
apenas um saco de ossos num velho livro, e a voz sabia disso.
Comecei a andar de novo, passei pelo grande pinheiro onde Jo bateu
com nosso jipe certa vez, tentando subir de ré a entrada de carros. Como
ela tinha xingado! Como um marinheiro! Eu consegui manter a expressão
séria até ela chegar ao “Foda-se tudo”; nesse ponto perdi o controle e ri,
apoiando-me na lateral do jipe com as palmas apertadas contra as
têmporas, uivando até que as lágrimas rolassem por meu rosto, com Jo
disparando faíscas azuis de fogo contra mim o tempo inteiro.
Eu podia ver a marca à altura de quase um metro no tronco da
árvore, o branco parecendo flutuar acima da casca escura na penumbra. Era
exatamente aqui que o desconforto que permeava os outros sonhos
transformava-se em algo muito pior. Mesmo antes de a coisa amortalhada
irromper casa afora, eu tinha sentido que algo estava completamente
errado, tudo torto; senti que de algum modo a própria casa havia
enlouquecido. Era naquele ponto, passando o velho pinheiro com a cicatriz,
que eu tinha querido correr como homem-biscoito.
Agora, eu não sentia aquilo. Tinha medo, sim, mas não terror. A
começar pelo fato de que não havia nada atrás de mim, nenhum som de
respiração. A pior coisa com que um homem provavelmente podia esbarrar
nesses bosques era um alce americano irritado. Ou, penso eu, se realmente
não estivesse com sorte, um urso zangado.
No sonho havia uma lua quase cheia, mas não existia nenhuma lua
no céu acima de mim naquela noite. Nem haveria: dando uma olhada na
seção de previsão do tempo do Derry News daquela manhã, eu tinha notado
que estávamos na lua nova.
Mesmo o mais poderoso déjà-vu é frágil, e à ideia daquele céu sem
lua, o meu se rompeu. A sensação de me soltar de meu pesadelo foi
embora tão abruptamente que cheguei mesmo a me perguntar por que
fizera aquilo, o que esperara provar ou realizar. Agora teria que voltar todo
o caminho até a estrada escura para recuperar o carro.
Muito bem, faria isso com uma lanterna da casa. Uma delas
certamente ainda estaria dentro do...
Uma série de explosões percorreu a margem distante do lago, a
última alta o bastante para ecoar nas colinas. Parei, respirando
rapidamente. Momentos antes, esses estouros inesperados provavelmente
teriam me posto a correr de volta pela entrada de carros em pânico, mas
agora eu tive apenas aquele rápido instante de sobressalto. Eram fogos de
artifício, claro, o último — o mais ruidoso — talvez um M-80. Amanhã seria
4 de Julho, e por todo o lago as crianças estavam celebrando
antecipadamente, como têm o hábito de fazer.
Continuei andando. Os arbustos ainda se estendiam como mãos, mas
haviam sido aparados e seu alcance não era muito ameaçador. Contudo, não
tinha que me preocupar de não haver energia; estava bastante perto do
alpendre dos fundos para ver mariposas adejando em torno da lâmpada que
Bill Dean deixara acesa para mim. Ainda que não houvesse energia (na
parte oeste do estado, diversas linhas ainda correm suspensas do chão, e a
energia é interrompida muitas vezes), o gerador teria disparado
imediatamente.
Apesar disso, estava assombrado por tanto do meu sonho estar
realmente ali, mesmo com a poderosa sensação de repetição — de reviver
— tendo desaparecido. As jardineiras de Jo estavam onde sempre haviam
estado, flanqueando o caminho que leva à pequena faixa de terra de Sara;
suponho que Brenda Meserve as tenha encontrado empilhadas no porão e
tenha mandado que uma de suas ajudantes as pusesse para fora de novo.
Nada crescia nelas ainda, mas eu suspeitava que logo cresceria. E mesmo
sem a lua de meus sonhos, podia ver o quadrado negro na água a uns 50
metros da margem. A plataforma flutuante.
Nenhuma forma oblonga jazia na frente do alpendre, porém; nenhum
caixão. Mesmo assim, meu coração batia com força novamente, e acho que
se mais fogos de artifício tivessem sido disparados do lado Kashwakamak
do lago, eu poderia ter gritado.
Homenzinho engraçado, disse Strickland.
Me dá isso, é o meu pega-poeira.
E se a morte nos enlouquece? E se sobrevivemos, mas tendo ela nos
deixado loucos? O que acontece?
Eu cheguei ao ponto em que, no meu pesadelo, a porta se
escancarava e aquela forma branca irrompia para fora com os braços
erguidos envolvidos na mortalha. Dei mais um passo e parei, ouvindo o som
áspero de minha respiração enquanto empurrava cada sopro de ar garganta
abaixo e depois o empurrava de volta sobre a superfície seca da minha
língua. Não havia nenhuma sensação de déjà-vu, mas por um momento
achei que a forma apareceria mesmo assim — aqui no mundo real, no tempo real. Fiquei ali esperando por ela com as mãos suadas cerradas.
Aspirei o ar novamente e dessa vez o retive.
O suave rolar da água na margem.
Uma brisa tocando meu rosto e sacudindo os arbustos.
Um mergulhão-do-norte gritando no lago; mariposas investindo
contra a luz do alpendre.
Nenhum monstro envolto em mortalha se atirou porta afora e,
através das grandes janelas à esquerda e à direita da porta, eu não via nada
se movendo, branco ou de qualquer outra cor. Havia um bilhete sobre a
maçaneta, provavelmente de Bill, e era tudo. Soltei a respiração num jato e desci o resto do caminho da entrada de carros para Sara Laughs.


O bilhete era mesmo de Bill Dean. Dizia que Brenda tinha feito algumas
compras para mim; a nota do supermercado estava na mesa da cozinha, e
eu encontraria a despensa bem estocada com enlatados. Ela tinha
consumido moderadamente os alimentos perecíveis, mas havia leite,
manteiga, pão e hambúrguer, essa base da cozinha do cara solteiro.
Vejo você na próxima segunda, escreveu Bill. Por minha vontade, eu
estaria aí para lhe dar um alô pessoalmente, mas a patroa diz que é a
nossa vez de dar a fugida do feriado e assim estamos indo para a Virgínia
(quente!!) para passar o dia 4 com a irmã dela. Se precisar de qualquer
coisa ou tiver problemas...
Havia rabiscado o número do telefone da cunhada na Virgínia, assim
como o número de Butch Wiggins na cidade, que os locais chamam de “a
TR”, como em “Eu e mamãe ficamos cansados de Bethel e movemos nosso
trailer para a TR”. Havia também outros números — o bombeiro, o
eletricista, Brenda Meserve e até mesmo o cara da TV em Harrison, que
reposicionara a parabólica para o máximo de recepção. Bill não queria
correr riscos. Virei o bilhete, imaginando um P.S. final: Digamos, Mike, se a
guerra nuclear estourar antes que eu e Yvette voltemos da Virgínia...
Algo se moveu atrás de mim.
Girei, o bilhete caiu de minha mão. Ele deslizou para as tábuas do
alpendre dos fundos como uma versão maior e mais branca das mariposas
atirando-se contra o bulbo da lâmpada lá em cima. Naquele instante, tive
certeza de que seria a coisa amortalhada, um espectro louco no corpo em
decomposição de minha esposa. Me dá meu pega-poeira, me dá, como ousa
vir para cá e perturbar meu descanso, como ousa vir a Manderley de novo,
e agora que está aqui, como poderá ir embora? Para dentro do mistério
com você, homenzinho tolo. Para dentro do mistério com você.
Não havia nada lá. Tinha sido só a brisa movendo um pouco os
arbustos... só que eu não senti brisa alguma contra minha pele suada, não
daquela vez.
— Bem, deve ter sido a brisa, não há nada ali — disse.
O som de nossa própria voz quando se está só pode ser assustador
ou tranquilizador. Naquela vez tranquilizou-me. Curvei-me, peguei o bilhete
de Bill e enfiei-o no bolso de trás. Então vasculhei à procura do molho de
chaves, sob a lâmpada do alpendre e as grandes sombras que se
precipitavam das mariposas atingidas pela luz, percorrendo as chaves até
encontrar a que eu queria. Ela mostrava um aspecto engraçado de falta de
uso, e enquanto eu passava o polegar por sua borda serrilhada, me
perguntei novamente por que não viera para cá — exceto por umas duas
viagens rápidas e à luz do dia — por todos aqueles meses e anos desde que
Jo morrera. Se ela estivesse viva, certamente teria insistido...
Mas então uma percepção peculiar ocorreu-me: não era apenas uma
questão de desde que Jo morrera. Seria fácil pensar naquilo desse modo —
nunca, nem uma só vez durante minhas seis semanas em Key Largo, eu
tinha pensado nisso de qualquer outro modo —, mas, agora, em pé sob as
sombras das mariposas dançantes (era como ficar sob alguma esquisita
bola de espelhos orgânica) e escutando os mergulhões-do-norte no lago,
lembrei que embora Johanna tivesse morrido em agosto de 1994, morrera
em Derry. Fazia um calor terrível na cidade... então por que estávamos lá?
Por que não instalados em nosso sombreado deck no lado da casa dando
para o lago, tomando chá gelado em nossas roupas de banho, vendo os
barcos indo e voltando e comentando sobre a forma dos vários esquiadores
aquáticos? Para início de conversa, o que estava ela fazendo naquele
desgraçado daquele estacionamento do Rite Aid, quando em qualquer outro
agosto teríamos estado a quilômetros dali?
E isso não era tudo. Geralmente ficávamos em Sara até o final de
setembro — era uma época tranquila, bonita, tão quente quanto o verão.
Mas em 1993 havíamos partido depois de passarmos ali apenas uma
semana de agosto. Eu sabia, porque lembrava de Johanna indo a Nova York
comigo depois naquele mesmo mês, algum negócio editorial e a habitual e
concomitante besteira de publicidade. Em Manhattan estava um calor
sufocante, os hidrantes jorrando no East Village e as ruas da parte alta da
cidade crepitando de tão quentes. Numa noite daquela viagem víramos O
Fantasma da Ópera. Perto do final, Jo inclinara-se para mim e sussurrara:
“Que merda, o Fantasma está choramingando de novo!” Eu passara o resto
do espetáculo tentando me impedir de ter um acesso louco de riso. Jo podia
ser má dessa maneira.
Por que teria vindo comigo naquele agosto? Ela não gostava de Nova
York mesmo em abril ou outubro, quando a cidade fica bastante bonita. Eu
não sabia. Não conseguia lembrar. Só tinha certeza de que ela jamais
voltara a Sara Laughs depois do início de agosto de 1993... e antes de muito tempo eu não estava certo nem daquilo.

Fiz a chave deslizar na fechadura e girei-a. Eu entraria, passaria a mão
rapidamente nas prateleiras superiores da cozinha, pegaria uma lanterna e
voltaria ao carro. Se não o fizesse, algum bêbado com um chalé na
extremidade sul da estrada chegaria rápido demais, bateria na traseira de
meu Chevy e me processaria por um bilhão de dólares.
A casa tinha sido arejada e não cheirava nem um pouco a mofo; em
vez de um ar parado e bolorento, havia um tênue e agradável aroma de
pinho. Estiquei a mão para a luz do lado de dentro e então, em algum ponto
na escuridão da casa, uma criança começou a chorar. Minha mão
imobilizou-se onde estava e minha carne gelou. Não entrei exatamente em
pânico, mas todo pensamento racional abandonou minha mente. Era um
choro, um choro de criança, mas eu não tinha uma pista sequer de onde
estaria vindo.
Então o choro começou a desaparecer. Não a ficar mais fraco e sim
a desaparecer gradualmente, como se alguém tivesse pegado a criança e a
fosse carregando para longe, por um comprido corredor... não que um
corredor semelhante existisse em Sara Laughs. Mesmo o que percorria o
meio da casa, ligando a seção central às duas alas, não é realmente longo.
Desaparecendo... desaparecendo... quase sumindo.
Permaneci ali no escuro com minha pele fria arrepiada e minha mão
no interruptor de luz. Parte de mim queria se mandar, simplesmente voar
para fora tão depressa quanto minhas pequenas pernas pudessem me
carregar, correndo como o homem-biscoito. Outra parte, porém — a parte
racional —, já estava se recuperando.
Acionei o interruptor, a parte que queria fugir dizendo que eu podia
esquecer, não ia funcionar, é o sonho, idiota, é seu sonho tornando-se
realidade. Mas funcionou. A luz do saguão chegou num clarão, dissipando as
sombras, revelando a pequena e encaroçada coleção de cerâmica de Jo à
esquerda e a estante à direita, coisas que eu não olhava havia quatro anos
ou mais, porém, ainda ali, e as mesmas. Em uma prateleira no meio da
estante vi os três primeiros romances de Elmore Leonard — Swag,
Desafiando o assassino e O golpe —, que eu tinha guardado para uma
temporada chuvosa; você tem que estar preparado para a chuva quando
está no campo. Sem um bom livro, mesmo dois dias de chuva nos bosques
podem ser suficientes para deixá-lo pirado.
Houve um murmúrio final de choro e depois o silêncio. Nele, eu podia
ouvir o tique-taque da cozinha. O relógio sobre o fogão, um dos raros
lapsos de mau gosto de Jo, é o Gato Félix com grandes olhos que se
movem de um lado para outro enquanto a cauda-pêndulo balança para a
frente e para trás. Acho que está presente em todos os filmes de horror
baratos já feitos algum dia.
— Quem está aí? — gritei. Dei um passo para a cozinha, apenas um
espaço obscuro flutuando além do saguão, e então parei. Na escuridão, a
casa era uma caverna. O som do choro poderia ter vindo de qualquer lugar.
Inclusive de minha própria imaginação. — Tem alguém aí?
Nenhuma resposta... mas eu não achava que o som ocorrera na
minha cabeça. Se tivesse ocorrido, o bloqueio de escritor seria o menor dos
meus problemas.
Na estante à esquerda dos Elmore Leonard, estava uma lanterna de
cabo longo, o tipo que tem oito pilhas grandes e que o cegará
temporariamente se alguém apontá-la diretamente para seus olhos. Pegueia,
e até que tivesse quase escorregado da minha mão eu não havia
percebido o quanto estava transpirando, ou o quanto estava assustado.
Balancei-a, com o coração batendo forte, meio esperando que aquele
sinistro soluçar começasse de novo, ou que a coisa amortalhada viesse
flutuando da sala de estar escura com seus braços sem forma erguidos;
algum velho político picareta de volta do túmulo e pronto para fazer outra
tentativa. Votem na chapa Ressurreição direta, irmãos, e serão salvos.
Controlei a luz e liguei-a. Ela se projetou num facho reto e brilhante
na sala, acertando a cabeça do alce americano sobre a pedra da lareira; ela
brilhou nos olhos de vidro da cabeça como duas luzes ardendo sob a água.
Vi as velhas cadeiras de bambu; o velho sofá; a escoriada mesa da sala de
jantar que era preciso equilibrar calçando uma das pernas com uma carta
de jogar dobrada ou um par de descansos de copo; não vi fantasma
nenhum; cheguei à conclusão de que era um carnaval totalmente estragado
mesmo assim. Nas palavras do imortal Cole Porter, Let’s call the whole
thing off [vamos cancelar a coisa toda]. Se eu rumasse para leste assim
que voltasse ao carro, poderia estar em Derry por volta da meia-noite.
Dormindo na minha própria cama.
Desliguei a luz do saguão e permaneci com a lanterna desenhando
seu contorno na escuridão. Escutei o tique-taque daquele estúpido relógiogato,
que Bill devia ter posto para funcionar, e o ciclo de som abrupto do
motor da geladeira. Enquanto os ouvia, percebia que jamais tinha esperado
ouvir os dois sons de novo. Quanto ao choro...
Houve um choro? Houve mesmo?
Sim. Choro ou alguma coisa. Exatamente o que agora parecia
discutível. O que parecia nítido era que vir para cá tinha sido uma ideia
perigosa e uma atitude idiota para um homem que ensinara sua mente a se
comportar mal. Enquanto eu ficava no saguão sem luz nenhuma a não ser a
lanterna e o fulgor entrando pelas janelas e vindo da lâmpada do alpendre
de trás, percebi que a linha entre o que eu sabia que era real e o que eu
sabia que era apenas minha imaginação havia desaparecido.
Deixei a casa, examinei a porta para certificar-me de que estava
trancada e caminhei de volta pela entrada de carros, balançando o facho da
lanterna de um lado para outro como um pêndulo — como a cauda do velho
Félix, o Gato Maluco na cozinha. Enquanto rumava na direção norte ao longo
da estrada, ocorreu-me que teria de inventar alguma história para Bill Dean.
Não adiantaria dizer: “Bem, Bill, desci lá e ouvi uma criança berrando em
minha casa trancada, e isso me assustou tanto que me transformei no
homem-biscoito e voltei correndo para Derry. Vou lhe mandar a lanterna
que peguei; coloque-a de volta na prateleira junto aos livros, está bem?”
Isso não adiantava nada porque a história se espalharia e as pessoas
diriam: “Não é surpresa. Provavelmente escreveu livros demais. Um
trabalho assim tem que amolecer a cabeça de um homem. Agora está com
medo da própria sombra. Risco ocupacional.”
Mesmo que eu jamais viesse para cá novamente, não queria deixar
as pessoas na TR com aquela opinião a meu respeito, aquela atitude de
certo desprezo de está-vendo-o-que-se-ganha-por-pensar-demais. É uma
postura que muita gente tem a respeito de quem vive da imaginação.
Vou dizer a Bill que fiquei doente. De certo modo era verdade. Ou
não... melhor dizer a ele que outra pessoa ficou doente... um amigo...
alguém em Derry com quem eu estava saindo... uma amiga, talvez. “Bill,
essa minha amiga, essa senhora minha amiga ficou doente, sabe, então...”
Parei subitamente, a luz brilhando na frente do carro. Eu tinha andado
um quilômetro e meio na escuridão sem notar muitos sons no bosque, e
descartando até o maior deles, como um alce instalando-se para passar a
noite. Não tinha me virado para ver se a coisa amortalhada (ou talvez
alguma espectral criança chorando) estava me seguindo. Havia ficado
envolvido na invenção de uma história e depois em embelezá-la, fazendo-o
na minha cabeça em vez de fazê-lo no papel desta vez, mas descendo os
mesmos caminhos bem conhecidos. Tão envolvido que negligenciara sentir
medo. As batidas do coração haviam voltado ao normal, o suor secava na
pele e os mosquitos haviam parado de zumbir em meu ouvido. E enquanto
eu estava ali, ocorreu-me um pensamento. Era como se minha mente
tivesse esperado pacientemente que eu me acalmasse o bastante para que
pudesse me lembrar de algum fato essencial.
Os canos. Bill obtivera meu sinal verde para substituir a maioria dos
velhos canos, e o bombeiro o fizera. Ele o fizera muito recentemente.
— Ar nos canos — disse, passando o facho da lanterna de oito pilhas
sobre a grade de meu Chevrolet. — Foi isso que eu ouvi.
Esperei para ver se a parte mais profunda de minha mente chamaria
isso de uma mentira idiota e racionalizante. Não chamou... acho que foi
porque percebi que podia ser verdade. Canos com ar podem parecer gente
falando, cachorros latindo ou crianças chorando. Talvez o bombeiro tenha
juntado os canos e o som fosse algo diferente... mas talvez não tenha. A
questão era se eu ia ou não entrar no carro, recuar 300 metros até à
rodovia e depois voltar a Derry, tudo baseado num som que ouvi por dez
segundos (talvez apenas cinco), e num estado de espírito excitado e
estressado.
Decidi que a resposta era não. Poderia ser necessário apenas algo
mais peculiar para me fazer dar meia-volta — provavelmente uma
algaravia, como a de um personagem de Contos da cripta —, mas o som
que tinha ouvido no saguão não era suficiente. Não quando a ida para Sara
Laughs poderia significar tanto.
Escuto vozes na cabeça e as venho escutando desde que me entendo
por gente. Não sei se é parte do equipamento necessário do escritor ou
não; nunca perguntei a outra pessoa. Nunca senti a necessidade de fazê-lo,
porque sei que todas as vozes que ouço são versões de mim mesmo. Ainda
assim, elas frequentemente me pareciam como versões muito reais de
outras pessoas, e nenhuma é mais real para mim — ou mais familiar — do
que a voz de Jo. Agora aquela voz apareceu, parecendo interessada, divertida de um modo irônico, mas gentil... e aprovadora.
Vai lutar, Mike?
— É — eu disse, em pé na escuridão e captando vislumbres de
cromo com minha lanterna. — Acho que sim, querida.
Bom, então isso está bem, não é?
Sim. Estava. Entrei no carro, liguei-o e desci lentamente a estrada. E quando cheguei à entrada de carros, enveredei por ela.

Não houve nenhum choramingo na segunda vez em que entrei na casa.
Andei lentamente pelo andar de baixo, mantendo a lanterna na mão até
acender todas as lâmpadas que pude encontrar; se ainda houvesse pessoas
passeando de barco na extremidade norte do lago, a velha Sara
provavelmente daria a impressão de um esquisito disco voador
spielbergiano pairando sobre elas.
Acho que as casas vivem suas próprias vidas ao longo de um fluxo
de tempo diferente daqueles em que flutuam seus proprietários, um fluxo
mais lento. Numa casa, especialmente uma casa antiga, o passado está
mais perto. Na minha vida, Johanna estava morta havia quase quatro anos,
mas para Sara Laughs ela estava muito mais próxima que isso. Só quando
estava realmente no interior da casa, com todas as luzes acesas e a
lanterna tendo voltado a seu lugar na estante, percebi o quanto tinha sido
apavorante a minha chegada. Por ter minha grande dor reavivada devido a
sinais da vida interrompida de Johanna. Um livro com uma borda dobrada na
mesa junto a um dos cantos do sofá, onde Jo gostava de se reclinar de
camisola, lendo e comendo ameixas; a caixa de papelão de Aveia Quaker,
que era só o que ela sempre queria de café da manhã, numa prateleira da
despensa; seu velho robe verde pendurado na parte de trás da porta do
banheiro na ala sul, que Bill Dean ainda chamava de “ala nova”, embora
tivesse sido construída antes que chegássemos a ver Sara Laughs.
Brenda Meserve tinha feito um bom trabalho — um trabalho humano
— ao remover tais sinais, mas não pôde remover todos eles. A coleção em
capa dura dos romances de Peter Wimsey, de Sayers, ainda mantinha o
lugar de honra no centro da estante da sala de estar. Jo sempre chamou de
Bunter a cabeça de alce americano sobre a lareira, lembrando do mordomo
criado por Dorothy Sayers. Um dia, sem nenhuma razão que eu pudesse
lembrar (certamente parecia um acessório muito pouco Bunter), pendurou
um sino em torno de seu pescoço peludo. Ainda está lá, numa fita de
veludo vermelho. A sra. Meserve pode ter ficado intrigada com o sino, se
perguntando se devia deixá-lo ou retirá-lo, sem saber que Jo e eu fazíamos
amor no sofá da sala (e, sim, com muita frequência a gente quase explodia
ali) e nos referíamos ao ato como “tocar o sino de Bunter”. Brenda Meserve
tinha feito o máximo que pôde, mas qualquer bom casamento é um
território secreto, um necessário espaço em branco no mapa da sociedade.
O que os outros não sabem sobre ele é o que o faz seu.
Andei por ali, tocando as coisas, olhando-as, vendo-as como novas.
Jo parecia estar em toda parte para mim; depois de algum tempo me
deixei cair numa das velhas cadeiras de bambu em frente à TV. A almofada
chiou debaixo de mim, e pude ouvir Jo dizendo: “Trate de se desculpar,
Michael!”
Pus o rosto entre as mãos e chorei. Acho que o último choro de meu
luto, mas isso não o tornou mais fácil de suportar. Chorei até pensar que
algo dentro de mim se romperia se eu não parasse. Quando o choro
finalmente me soltou, meu rosto estava ensopado, eu estava com soluços e
achei que jamais tinha me sentido tão cansado na vida. Sentia todo o meu
corpo torcido — parcialmente pela caminhada que tinha feito, acho, mas
principalmente pela tensão de chegar ali... e decidir ficar. Lutar. Aquele
esquisito fantasma chorando que eu tinha ouvido assim que entrei no lugar, embora parecesse muito distante agora, não havia ajudado.
Lavei o rosto na pia da cozinha, retirando as lágrimas com as
palmas das mãos e limpando o nariz entupido. Então levei minhas valises
para o quarto de hóspedes na ala norte. Não tinha intenção de dormir na ala
sul, no quarto principal; a última vez em que tinha dormido ali foi com Jo.
Era uma escolha que Brenda Meserve tinha previsto. Havia um buquê
de flores frescas na escrivaninha, e um cartão: BEM-VINDO, SR. NOONAN.
Se eu não estivesse emocionalmente exausto, acho que olhar para aquela
mensagem, na caligrafia pontiaguda e elegante da sra. Meserve, teria
provocado outro acesso de choro. Pus meu rosto junto às flores e respirei
fundo. Cheiravam bem, como a luz do sol. Então tirei as roupas, deixandoas
onde caíram, e puxei a colcha da cama. Lençóis limpos, fronhas limpas;
o mesmo velho Noonan deslizando por entre aqueles e deixando a cabeça
cair nestas.
Fiquei ali deitado com a lâmpada do criado-mudo acesa, olhando para
as sombras no teto, quase incapaz de acreditar que estava naquele lugar e
naquela cama. Não tinha havido nenhuma coisa amortalhada para me
saudar, é claro... mas eu cogitava que ela podia muito bem me descobrir
em meus sonhos.
Às vezes — pelo menos para mim — há um choque de transição
entre acordar e dormir. Não naquela noite. Perdi a consciência sem saber
que o fazia, e acordei na manhã seguinte com a luz do sol brilhando através
da janela e o abajur da cabeceira ainda aceso. Não tinha havido sonho
nenhum de que me lembrasse, só uma vaga sensação de que havia
despertado brevemente durante a noite e ouvido um sino tocando, muito débil e a distância.

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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