quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Capítulo Cinco


Certa vez, quando eu tinha 16 anos, um avião rompeu a barreira do som bem acima da minha cabeça. Eu estava caminhando pelo bosque quando
aconteceu aquilo, pensando em alguma história que ia escrever, talvez, ou
como seria fantástico se Doreen Fournier fraquejasse alguma sexta-feira à
noite e me deixasse tirar suas calcinhas quando estivéssemos estacionados
no final da estrada Cushman.
De qualquer modo, eu estava viajando por estradas mais distantes
em minha mente e, quando o estrondo ocorreu, fui pego totalmente de
surpresa. Caí no chão frondoso com as mãos sobre a cabeça e o coração
batendo loucamente, certo de que chegara ao fim de minha vida (e
enquanto ainda era virgem). Em meus 40 anos, aquela fora a única coisa
que se igualava ao sonho final da “série Manderley” em terror absoluto.
Fiquei no chão, esperando o céu cair sobre minha cabeça, e quando
trinta segundos ou mais se passaram e ele não caiu, comecei a perceber
que tinha sido apenas um piloto de caça da base de aviação naval de
Brunswick ansioso demais para ter de esperar até sobrevoar o Atlântico
para ultrapassar a velocidade do som. Mas, puta merda, quem poderia ter
imaginado que seria tão alto?
Levantei-me lentamente e, enquanto estava ali com as batidas de
meu coração finalmente diminuindo de intensidade, percebi que não tinha
sido o único a ficar apavorado pelo súbito estrondo no céu claro. Pela
primeira vez na minha lembrança, o pequeno bosque atrás de nossa casa
em Prout’s Neck estava completamente silencioso. Fiquei ali sob uma faixa
empoeirada de sol, folhas caídas salpicando minha camiseta e meus jeans,
prendendo a respiração, escutando. Jamais percebi um silêncio como aquele.
Mesmo num dia gelado de janeiro, o bosque estaria cheio de conversa.
Enfim, um pintassilgo cantou. Houve dois ou três segundos de
silêncio, e em seguida um gaio respondeu. Outros dois ou três segundos se
passaram, e então um corvo acrescentou seu dedo de prosa. Um pica-pau
começou a martelar em busca de larvas de inseto. Um esquilo zumbiu pela
vegetação rasteira à minha esquerda. Um minuto depois de eu ter
levantado, o bosque estava completamente vivo de pequenos ruídos
novamente; voltara a seus negócios, como habitualmente, e eu continuei
com os meus. No entanto, jamais esqueci aquele estrondo inesperado, ou o
silêncio mortal que se seguiu.
Pensei muitas vezes naquele dia de junho ao despertar do pesadelo, e
não havia nada de extraordinário nisso. De certo modo, as coisas tinham
mudado, ou poderiam mudar... mas primeiro vem o silêncio, enquanto nos
asseguramos de que não estamos feridos e que o perigo — se havia perigo
— desapareceu.
Derry esteve fechada pela maior parte da semana seguinte, de
qualquer forma. Gelo e ventos fortes causaram uma grande quantidade de
danos durante a tempestade, e uma repentina queda de 7 graus na
temperatura posteriormente tornou o ato de cavar difícil e a limpeza lenta.
Acrescente-se a isso o fato de que a atmosfera depois de uma tempestade
de março é sempre melancólica e pessimista; somos atingidos por
tempestades assim todos os anos (e em boa parte, por duas ou três em
abril, se não tivermos sorte), mas nunca parecemos esperá-las. Cada vez
que levamos essa pancada, nós a encaramos como uma ofensa pessoal.
Certo dia, perto do fim da semana, o tempo afinal começou a
melhorar. Aproveitei a chance, saindo para tomar uma xícara de café e
comer um doce, no meio da manhã, num pequeno restaurante três portas
depois do Rite Aid, onde Johanna tinha feito sua última compra. Estava
bebendo, mastigando e fazendo as palavras cruzadas do jornal quando
alguém perguntou: “Posso sentar na sua mesa, sr. Noonan? Isso aqui está
muito cheio hoje.”
Ergui os olhos e vi um velho que eu conhecia, mas que não conseguia
identificar.
— Ralph Roberts — disse ele. — Sou voluntário na Cruz Vermelha. Eu
e minha esposa, Lois.
— Ah, claro, é isso — eu disse. Doo sangue para a Cruz Vermelha a
cada seis semanas, mais ou menos. Ralph Roberts era um dos velhos
camaradas que passavam o suco e os biscoitos depois, dizendo-lhe para
não levantar ou fazer qualquer movimento súbito se você se sentisse tonto.
— Sente-se, por favor.
Olhou para o meu jornal, dobrado no lugar das palavras cruzadas e
estendido numa faixa de sol, enquanto deslizava para a mesa.
— Não acha que fazer palavras cruzadas no Derry News é como
cancelar o lançador num jogo de beisebol? — perguntou ele.
Eu ri e concordei com a cabeça.
— Faço isso pela mesma razão que as pessoas escalam o Everest,
sr. Roberts... porque está lá. Só que com as palavras cruzadas do News,
ninguém cai.
— Pode me chamar de Ralph. Por favor.
— Ok. E eu sou Mike.
— Ótimo. — Ele riu, revelando dentes que eram tortos e um pouco
amarelados, mas todos seus. — Gosto de passar aos prenomes. É como
poder tirar a gravata. Tivemos uma ventaniazinha e tanto, hein?
— É — eu disse —, mas está esquentando de modo bem agradável
agora. — O termômetro havia dado um de seus ágeis saltos de março,
subindo dos 4 graus negativos da noite anterior para 10 graus naquela
manhã. Melhor do que a subida da temperatura era o sol banhando
novamente nossos rostos. Foi aquele calor que me impeliu para fora de
casa.
— A primavera vai chegar aqui, acho. Em alguns anos ela se perde
um pouco, mas sempre parece achar o caminho de volta para casa. — Ele
bebeu seu café, depois colocou a xícara na mesa. — Não tenho visto você
ultimamente na Cruz Vermelha.
— Estou reciclando — eu disse, mas era mentira; eu me tornei
qualificado para doar mais meio litro duas semanas antes. O cartão de
lembrete estava em cima da geladeira. Simplesmente tinha esquecido. —
Na semana que vem, com certeza.
— Só estou dizendo isso porque sei que você é um A, e sempre
podemos usá-lo.
— Reserve uma cadeira para mim.
— Pode contar com isso. Está tudo bem? Estou perguntando porque
você parece cansado. Se é insônia, tem a minha solidariedade, acredite.
Acho que ele tinha de fato o olhar do insone — olhos esbugalhados,
de certo modo. Mas era também um homem de seus 70 e tantos anos, e
não acho que alguém chegue a essa idade sem os sinais dela. Fique um
pouco por aí, e a vida talvez bata em suas maçãs do rosto e olhos. Fique
muito tempo e acabará se parecendo com o boxeador Jake La Motta depois
de 15 rounds difíceis.
Abri a boca para dizer o que sempre digo quando alguém me
pergunta se estou bem, depois pensei por que teria sempre que desfiar
aquela cansativa merda de caubói, afinal de contas a quem eu estava
tentando enganar? O que aconteceria se eu contasse ao cara que me dava
cookies com pingos de chocolate na Cruz Vermelha, depois de a enfermeira
retirar a agulha de meu braço, que não estava me sentindo cem por cento?
Terremotos? Incêndios e enchentes? Merda.
— Não — eu disse. — Na realidade, não tenho me sentido tão bem, Ralph.
— Resfriado? Tem andado por aí.
— Não. O resfriado me pulou desta vez. E tenho dormido bem. — O
que era verdade, não tinha havido nenhuma recorrência dos sonhos de Sara
Laughs em sua versão normal ou de alta octanagem. — Acho que estou
melancólico.
— Bem, você devia tirar umas férias — disse ele, depois bebeu o
café. Quando olhou novamente para mim, franziu as sobrancelhas e abaixou
a xícara. — O que é? Algo está errado?
Não, pensei em dizer. Você foi apenas o primeiro pássaro a cantar
dentro do silêncio, Ralph, isso é tudo.
— Não, nada errado — eu disse, e então, porque quis ver o sabor que
teriam as palavras saindo de minha própria boca, eu as repeti. — Umas férias.
— É — disse ele, rindo. — As pessoas fazem isso o tempo todo

As pessoas fazem isso o tempo todo. Ele tinha razão; até gente que, a rigor, não podia arcar com umas férias. Quando ficavam cansados. Quando
ficavam embaralhados em sua própria merda. Quando o mundo era demais
para eles, ganhando e gastando.
Eu certamente podia arcar com umas férias, e certamente podia
tirar tempo de trabalho — que trabalho, ha-ha? — e precisei que o homembiscoito
da Cruz Vermelha apontasse o que deveria ter sido evidente a um
cara formado numa faculdade como eu: que não tirava umas férias
verdadeiras desde que Jo e eu tínhamos ido às Bermudas, no inverno antes
de ela morrer. Meu moinho particular não moía mais, mas ainda assim
mantive o nariz virado para ele. Foi somente naquele verão, quando li o
obituário de Ralph Roberts no News (ele foi atropelado por um carro), que
percebi totalmente o quanto lhe devia. Posso dizer que seu conselho foi
melhor do que qualquer copo de suco de laranja que já tomei após doar sangue.

Quando deixei o restaurante não fui para casa, mas perambulei por metade
da maldita cidade, a parte do jornal com as palavras cruzadas parcialmente
feitas debaixo do braço. Andei até ficar gelado, apesar da temperatura que
subia. Não pensava em nada, e mesmo assim pensava em tudo. Era um
tipo especial de pensamento, o tipo que sempre me ocorria quando chegava
perto de começar um livro e, embora não pensasse assim havia anos,
entrei nele de modo fácil e natural, como se jamais tivesse havido distância
entre nós.
É como se uns sujeitos num grande caminhão tivessem parado em
sua entrada de carros e carregassem coisas para o seu porão. Não consigo
explicar melhor a situação. Não se pode ver o que são essas coisas porque
estão todas embrulhadas em mantas acolchoadas, mas não é necessário
vê-las. É mobília, tudo que você precisa para transformar sua casa num lar,
arrumá-la direito, exatamente do modo como queria.
Depois que os camaradas entram de novo no caminhão e se
afastam, você desce ao porão e anda por ali (como andei por Derry no final
daquela manhã, subindo a colina e descendo o vale com minhas velhas
galochas), tocando uma curva acolchoada aqui, um ângulo acolchoado ali.
Isto é um sofá? Isto é uma cômoda? Não importa. Está tudo aqui, os
homens da mudança não esqueceram nada, e apesar de você mesmo ter
que levar tudo para o andar de cima (forçando frequentemente sua velha
coluna no processo), está tudo bem. O importante é que a entrega foi
totalmente feita.
Dessa vez pensei — esperei — que o caminhão tivesse trazido as
coisas de que eu precisava para os quarenta anos restantes; os anos que
eu poderia ter de passar na Zona sem Escrever. Vieram à porta do porão,
bateram educadamente e, não sendo atendidos depois de vários meses,
finalmente pegaram um aríete. EI, COMPANHEIRO, ESPERO QUE O
BARULHO NÃO O ASSUSTE DEMAIS, DESCULPE PELA PORTA!
Não me importava com a porta; importava-me com a mobília. Algum
pedaço quebrado ou faltando? Acho que não. Achei que só tinha que levá-la
para cima, tirar os acolchoados e colocá-la no lugar.
Na minha volta para casa, passei por The Shade, o encantador
cineminha de Derry que passa filmes antigos e que prosperou apesar (ou
talvez por causa) da revolução do vídeo. Naquele mês, exibia clássicos de
ficção científica dos anos 1950, mas abril era dedicado a Humphrey Bogart,
o eterno favorito de Jo. Fiquei sob a marquise do cinema por algum tempo,
examinando um dos cartazes dos próximos filmes. Então fui para casa,
escolhi um agente de viagens ao acaso na lista telefônica e disse ao cara
que queria ir para Key Largo. O senhor quer dizer Key West, disse ele. Não,
repeti, quero dizer Key Largo, exatamente como no filme de Bogie e Bacall.
Três semanas. Então pensei melhor. Eu era rico, estava sozinho e
aposentado. Que merda era aquela de “três semanas”? São seis semanas,
eu disse. Encontre um chalé ou coisa parecida para mim. Vai ser caro, disse ele. Respondi que não tinha importância. Quando eu voltasse a Derry, seria primavera.
Enquanto isso, tinha mobília para desembrulhar.

Fiquei encantado com Key Largo durante o primeiro mês, e completamente
entediado nas duas últimas semanas. No entanto, continuei lá porque o
tédio é bom. As pessoas com alta tolerância ao tédio podem fazer um
monte de coisas. Comi um bilhão de camarões, bebi cerca de mil
margaritas e li 23 romances de John D. MacDonald, contando um a um. Eu me queimei, descasquei e finalmente me bronzeei. Comprei um boné de aba
longa com PARROTHEAD bordado nele com uma linha verde brilhante. Andei
pela mesma faixa de praia até conhecer todos pelo primeiro nome. E
desembrulhei a mobília. Não gostava de boa parte dela, mas não havia
dúvida de que combinava com a casa.
Pensei em Jo e em nossa vida juntos. Eu me lembrei de quando disse
a ela que ninguém jamais confundiria Sendo dois com Look homeward,
angel.[ Primeiro romance do escritor americano Thomas Wolfe, de 1929. ] “Você não vai vir agora com essa besteira de artista frustrado, vai,
Noonan?”, respondeu ela... e durante o meu tempo em Key Largo tais
palavras continuaram voltando, sempre na voz de Jo: besteira, besteira de
artista frustrado, toda a porra dessa besteira de estudante de artista
frustrado.
Pensei em Jo em seu longo avental, vindo em minha direção com um
chapéu cheio de cogumelos trombeta negra, rindo e triunfante. “Ninguém na
TR come melhor dos que os Noonan esta noite!”, gritou. Pensei nela
pintando as unhas dos pés, curvada entre as próprias coxas do modo que só
as mulheres executando esse tipo de coisa conseguem fazer. Pensei nela
me jogando um livro porque eu ri de seu novo corte de cabelo. Pensei nela
tentando aprender a tocar um breakdown em seu banjo e em sua aparência
sem sutiã num suéter fino. Pensei nela chorando, rindo e zangada. Pensei
nela me dizendo que aquilo era besteira, tudo besteira de artista frustrado.
E pensei nos sonhos, especialmente no sonho culminante. Poderia
fazer aquilo facilmente, pois ele jamais se dissipava como os sonhos
comuns. O sonho final de Sara Laughs e minha primeira polução noturna
(por causa de uma moça deitada numa rede e comendo uma ameixa) são
os únicos que continuam perfeitamente claros para mim, ano após ano; o
resto são fragmentos enevoados ou completamente esquecidos.
Havia muitos detalhes nítidos nos sonhos de Sara — os mergulhõesdo-norte,
os grilos, a estrela da noite e meu pedido a ela, para citar só
alguns —, mas eu achava que a maioria dessas coisas eram verossímeis. O
cenário, se desejar. Como tal, podiam ser descartados de minhas
considerações. Sobravam então três elementos importantes, três grandes
peças de mobília a serem desembrulhadas.
Enquanto eu estava na praia observando o sol se pôr entre meus
dedos dos pés sujos de areia, não achei que era preciso ser analista para
ver como essas coisas se combinavam.
Nos sonhos de Sara, os elementos importantes eram o bosque atrás
de mim, a casa abaixo de mim e o próprio Michael Noonan, imobilizado no
meio. Está ficando escuro e há perigo no bosque. Será assustador ir para a
casa lá embaixo, talvez porque tenha ficado vazia por tanto tempo, mas
jamais duvidei de que preciso ir até lá; amedrontador ou não, é o único
abrigo que tenho. Só que não posso fazê-lo. Não consigo me mexer. Estou
no caminho do escritor.
No pesadelo, finalmente sou capaz de ir em direção ao abrigo, só que
este se revela falso. Revela-se mais perigoso do que eu esperei algum dia
em meu... bem, sim, em meus sonhos mais alucinados. Minha mulher
morta corre para fora, gritando e ainda emaranhada em sua mortalha, para
me atacar. Mesmo cinco semanas depois e a quase cinco mil quilômetros
de Derry, lembrar daquela veloz coisa branca com seus braços flácidos me
fazia tremer e olhar para trás por cima de meu ombro.
Mas era Johanna? Eu realmente não sabia, sabia? A coisa estava
toda embrulhada. O caixão parecia com aquele em que tinha sido enterrada,
mas podia ser apenas uma pista falsa.
Caminho do escritor, bloqueio de escritor.
Não consigo escrever, dissera à voz no sonho. A voz diz que consigo.
Diz que o bloqueio de escritor sumiu, e acredito nela porque o caminho do
escritor sumiu; eu finalmente me dirigi para a entrada de carros, para o
abrigo. Mas tenho medo. Mesmo antes que a coisa branca e sem forma
aparecesse, estava aterrorizado. Digo que tenho medo da sra. Danvers, mas
isso é apenas minha mente no sonho misturando Sara Laughs com
Manderley. Tenho medo de...
— Tenho medo de escrever — ouvi-me dizendo alto. — Tenho medo
até de tentar.
Foi na noite antes de voar de volta para o Maine, e eu não estava
muito sóbrio, e continuava a beber. No final de minhas férias, eu bebia
muito de noite.
— Não é o bloqueio que me assusta, é desfazer o bloqueio. Estou realmente fodido, pessoal. Fodido em grande estilo.
Fodido ou não, pensei que finalmente chegaria ao centro da questão.
Tinha medo de desfazer o bloqueio, medo talvez de pegar as pontas soltas
de minha vida e prosseguir sem Jo. Contudo uma parte profunda da minha
mente acreditava que eu precisava fazer isso; os ruídos ameaçadores atrás
de mim no bosque se referiam a isso. E a crença explica muito. Demais
talvez, especialmente se você é imaginativo. Quando uma pessoa
imaginativa entra em dificuldades mentais, a linha entre ser e parecer dá
um jeito de sumir.
Coisas no bosque, sim, senhor. Eu tinha uma delas bem aqui na mão,
enquanto pensava isso. Ergui minha bebida, segurando o copo contra o céu
do oeste para que o sol do poente parecesse queimar o vidro. Estava
bebendo muito, e talvez aquilo fosse tranquilo em Key Largo — que droga,
espera-se que as pessoas bebam muito nas férias, é quase lei —, mas eu
andava bebendo demais, mesmo antes de ir para lá. Uma quantidade que
poderia sair do controle de repente. Uma quantidade que podia causar
problemas para a pessoa.
Coisas no bosque, e no lugar potencialmente seguro guardado por um
bicho-papão que não era minha mulher, mas talvez a lembrança da minha
mulher. Fazia sentido, porque Sara Laughs sempre fora o local preferido de
Jo no planeta Terra. Esse pensamento levou a outro, a um que me fez
mover as pernas para as laterais da espreguiçadeira na qual estava
reclinado e me sentar com agitação. Sara Laughs foi também o lugar onde
o ritual começou... champanhe, última linha e a bênção totalmente
importante: Bom, então isso está bem, não é?
Eu queria que as coisas ficassem bem de novo? Queria mesmo? Há
um mês ou um ano atrás eu poderia não ter certeza, mas agora tinha. A
resposta era sim. Queria prosseguir — soltar-me de minha mulher morta,
reabilitar meu coração, andar para a frente. Mas, para fazer isso, eu teria
que voltar.
Voltar à casa de troncos. Voltar a Sara Laughs.
— É — eu disse, e minha pele se arrepiou. — É, é isso.
Então, por que não?
A pergunta me fez sentir tão estúpido quanto a observação de Ralph
Roberts de que eu precisava de umas férias. Se eu precisava voltar a Sara
Laughs agora que as férias terminaram, na verdade por que não? A primeira
e a segunda noite poderiam ser um pouco assustadoras, uma ressaca de
meu sonho final, mas só o fato de estar lá poderia dissolver o sonho mais
rapidamente.
E (só permiti que esse último pensamento entrasse num canto
humilde de minha mente consciente) algo podia acontecer com minha
escrita. Não era provável... mas também não era impossível. A não ser por
um milagre, não fora meu pensamento no Dia do Ano-novo enquanto me
sentava na beira da banheira, segurando um chumaço úmido contra o corte
na testa? Sim. A não ser por um milagre. Às vezes cegos caem, batem
com a cabeça e recuperam a visão. Às vezes até deficientes físicos
conseguem jogar fora as muletas quando chegam ao alto dos degraus da igreja.
Eu tinha oito ou nove meses antes que Harold e Debra começassem
realmente a me amolar sobre o romance seguinte. Resolvi passar aquele
tempo em Sara Laughs. Precisaria de certo prazo para amarrar as coisas
em Derry, e certo prazo para que Bill Dean aprontasse a casa no lago para
uma permanência de um ano, mas eu poderia estar lá no 4 de Julho,
facilmente. Decidi que era uma boa data para ir, não só porque era
aniversário dos Estados Unidos como também porque era o fim da estação
de insetos no oeste do Maine.
No dia em que arrumei minha bagagem de férias (deixei as edições
populares de John D. MacDonald para o próximo habitante da cabana), raspei
a barba de uma semana de um rosto tão bronzeado que não parecia mais o
meu e voei de volta para o Maine, eu estava decidido: voltaria para o lugar
que meu subconsciente identificou como abrigo contra a escuridão que
aumentava; voltaria ainda que minha mente tivesse também sugerido que
fazer aquilo teria seus riscos. Eu não voltaria esperando que Sara fosse
Lourdes... mas me permitiria ter esperanças e, quando visse a estrela
vespertina espreitando sobre o lago pela primeira vez, eu me permitiria
desejar isso.

Só uma coisa não se ajustava em minha desconstrução dos sonhos de Sara
e, como não consegui explicá-la, tentei ignorá-la. Entretanto, não tive muita
sorte; eu ainda era parcialmente um escritor, acho, e um escritor é um
homem que ensinou a mente a se comportar mal.
Era o corte no dorso da minha mão. Esse corte tinha estado em
todos os meus sonhos, eu juraria... e então ele realmente apareceu. Você
não descobre esse tipo de merda nas obras do dr. Freud; uma coisa assim
era só para a linha de emergência dos Amigos Paranormais.
Era uma coincidência, apenas isso, pensei enquanto meu avião
começou a descer. Eu estava na poltrona A-2 (o simpático em viajar de
avião na frente é que, se ele cair, você é o primeiro a chegar ao lugar do
acidente) e olhando para as florestas de pinheiros enquanto planávamos em
direção ao Aeroporto Internacional de Bangor. A neve tinha desaparecido por
mais um ano; eu tirei férias até matá-la. Só coincidência. Quantas vezes
você cortou as mãos na sua vida? Quero dizer, elas estão sempre na
frente, não é? Gesticulando por aí. Praticamente implorando por um corte.
Tudo aquilo devia parecer verdade, e mesmo assim não parecia
muito. Devia mas... bem...
Eram os garotos no porão. Eram eles que não engoliam aquilo. Os
garotos no porão não engoliam aquilo de modo nenhum.
Naquele momento houve um baque quando o 737 aterrissou, e eu empurrei toda aquela linha de pensamento para fora da cabeça.

Uma tarde, pouco depois de ter voltado para casa, remexi nos armários até
descobrir as caixas de sapato contendo antigas fotos de Jo. Peguei-as e
depois examinei as de Dark Score Lake. Havia um número surpreendente
delas, mas como Johanna era aficionada por fotografia, não havia muitas
com ela. Encontrei uma, no entanto, que me lembrei de ter tirado em 1990
ou 1991.
Às vezes, até um fotógrafo sem talento pode tirar uma boa foto —
se setecentos macacos passarem setecentos anos batucando em
setecentas máquinas de escrever e tudo o mais —, e isso era bom. Nela, Jo
estava em pé na plataforma flutuante, tendo por trás o sol vermelhodourado.
Tinha acabado de sair da água, ainda pingando, e usava um traje
de banho de duas peças cinza com debrum vermelho. Eu a surpreendi rindo
e afastando o cabelo ensopado da testa e das têmporas. Seus mamilos
estavam salientes. Ela parecia uma atriz num cartaz de cinema de um
daqueles filmes B de prazer proibido sobre monstros em Party Beach, ou de
um serial killer espreitando o campus.
Fui atingido violentamente por um súbito e poderoso acesso de
lascívia por ela. Eu a queria no andar de cima exatamente como na
fotografia, com mechas do cabelo grudadas no rosto e naquele traje de
banho bem justo. Queria sugar seus seios pela parte de cima da roupa de
banho, provar o gosto do tecido e sentir a dureza deles. Queria sugar a
água do algodão como leite, depois arrancar a parte de baixo da roupa de
banho e fodê-la até explodirmos.
Com as mãos um pouco trêmulas, deixei a foto de lado, juntamente
com algumas outras de que eu gostava (embora não gostasse de nenhuma
do mesmo modo). Tive uma enorme ereção, daquelas que parecem pedra
recoberta de pele. Tenha uma dessas e você não serve para nada até que
ela vá embora.
O modo mais rápido de resolver um problema desses quando não há
mulher por perto querendo ajudar é se masturbar; naquela época, porém, a
ideia jamais passou pela minha cabeça. Em vez disso, caminhei inquieto
pelos cômodos do andar de cima da casa, abrindo e fechando os punhos e
com o que parecia um enfeite encapuzado enchendo a frente do jeans.
A raiva pode ser um estágio normal do processo de sofrimento — eu
li que é —, mas nunca fiquei com raiva de Johanna depois de sua morte até
o dia em que encontrei aquele retrato. Então, minha nossa, lá estava eu,
com um tesão que simplesmente não passava, furioso com ela. Aquela
vaca idiota, por que saiu correndo num dos dias mais quentes do ano? Vaca
idiota e sem consideração, me deixar sozinho assim, sem poder nem
sequer trabalhar.
Sentei na escada e pensei no que deveria fazer. O que deveria fazer
era um drinque, resolvi, e depois talvez outro drinque, para fazer descer o
primeiro. Na verdade, levantei dali antes de decidir que não era uma ideia
muito boa, afinal de contas.
Em vez disso fui ao escritório, liguei o computador e fiz um jogo de
palavras cruzadas. Naquela noite, quando fui para a cama, pensei em olhar
a foto de Jo de roupa de banho novamente. Cheguei à conclusão que era
uma ideia quase tão ruim quanto tomar alguns drinques quando eu estava
me sentindo com raiva e deprimido. Mas vou ter o sonho esta noite, pensei ao apagar a luz. É claro que vou ter aquele sonho.
Mas não tive. Meus sonhos de Sara Laughs pareciam terminados.


Depois de uma semana, a ideia de pelo menos passar o verão no lago
tornou-se melhor do que nunca. Assim, numa tarde de sábado no início de
maio, quando calculei que qualquer caseiro de respeito do Maine estaria em
casa assistindo a um jogo de beisebol do Red Sox, liguei para Bill Dean e
lhe disse que estaria em minha casa do lago a partir de 4 de Julho mais ou
menos... e se as coisas corressem como eu esperava, passaria o outono e
o inverno lá também.
— Bem, é ótimo — disse ele. — É realmente uma boa notícia. Um
monte de gente por aqui sentiu falta de você, Mike. Muitos querem lhe dar
os pêsames por sua esposa, sabe?
Havia um levíssimo toque de censura em sua voz ou era apenas
minha imaginação? Certamente Jo e eu tínhamos existido para a região;
havíamos dado contribuições significativas para a pequena biblioteca que
servia a área de Motton-Kashwakamak-Castle View, e Jo dirigiu a bemsucedida
campanha de fundos para conseguir um veículo dotado de uma
biblioteca móvel para a localidade. Além disso, ela havia sido membro de
um círculo de costura de senhoras (mantas de tricô eram sua
especialidade) e membro de boa reputação da Cooperativa de Artesanato do
Condado de Castle. Visitas a doentes... ajudando com a campanha anual de
doação de sangue do corpo de bombeiros... recepcionando em um quiosque
durante a Summerfest em Castle Rock... e coisas assim eram apenas um
começo para ela. Jo também não o fazia com qualquer ostentação, mas de
modo discreto e humilde, com a cabeça baixa (frequentemente para
esconder um sorriso irônico, devo acrescentar — minha Jo tinha um senso
de humor tipo Ambrose Bierce). Jesus, pensei, talvez o velho Bill tenha
direito de mostrar censura.
— As pessoas sentem falta dela — eu disse.
— É, sentem sim.
— Eu ainda sinto muito a falta dela. Acho que é por isso que tenho
ficado longe do lago. Passamos muitas épocas boas aí.
— Acho que sim. Mas seria ótimo ver você por aqui de novo. Vou ter
muito o que fazer. O lugar está bem, você poderia se mudar esta tarde, se
quisesse, mas quando uma casa permanece vazia o tempo que Sara está,
fica mofada.
— Eu sei.
— Vou chamar Brenda Meserve para limpar todo aquele negócio de
alto a baixo. A mesma moça de sempre, você sabe.
— Brenda é um pouco velha para uma grande limpeza de primavera,
não é? — A senhora em questão tinha cerca de 65 anos, era robusta e
alegremente grosseira. Gostava especialmente de piadas sobre o caixeiroviajante
que passava a noite como um coelho, pulando de buraco em
buraco. Nada de sra. Danvers com ela.
— Senhoras como Brenda Meserve nunca ficam velhas demais para
supervisionar as festividades — disse Bill. — Ela leva duas ou três moças
para o aspirador e para levantar as coisas pesadas. Vão te custar talvez
trezentos dólares. O que acha?
— Uma pechincha.
— O poço precisa ser testado, e o gerador também, mesmo que eu
tenha a certeza que estejam ok. Vi um ninho de vespas junto ao velho
estúdio de Jo que quero fumigar antes que as madeiras sequem. Ah, e o
telhado da casa velha... você sabe, a peça do meio... precisa ser refeito. Eu
devia ter te falado sobre ele no ano passado, mas sem você usar a casa,
deixei de lado. Isso também pode ser feito?
— Pode, até 10 mil. Se passar disso, ligue para mim.
— Quero ser mico de circo se vai passar disso.
— Procure aprontar tudo antes que eu chegue, tudo bem?
— Tá, claro. Você vai querer sua privacidade, eu sei... mas é bom
que saiba que não vai ter isso logo, logo. Ficamos chocados quando ela se
foi tão jovem; todos nós aqui. Chocados e tristes. Ela era querida.
— Obrigado, Bill. — Senti lágrimas ardendo nos olhos. A dor é como
um hóspede bêbado, sempre voltando para mais um abraço de despedida. —
Obrigado por suas palavras.
— Você vai ter sua porção de bolos de cenoura, companheiro. — Ele
riu, mas um pouco em dúvida, temendo estar cometendo uma
impropriedade.
— Consigo comer um monte de bolo de cenoura — eu disse —, e se
o pessoal exagerar, bem, Kenny Auster ainda tem aquele grande galgo
irlandês?
— Tem, aquela coisa comeria bolo até explodir! — exclamou Bill
muito bem-humorado. Riu até tossir. Esperei, sorrindo um pouco para mim
mesmo. — Kenny chama o cachorro de Mirtilo, sabe-se lá por quê. Ele não
é a coisa mais destrambelhada?! — Imaginei que estivesse se referindo ao
cachorro e não a seu dono. Com não muito mais do que um metro e meio
de altura e todo arrumadinho, Kenny Auster era o oposto do
destrambelhado, este peculiar adjetivo do Maine que significa desajeitado,
estabanado e propenso a levar tombos.
De repente percebi que sentia falta daquela gente — Bill, Brenda,
Buddy Jellison, Kenny Auster e todos os outros que moravam o ano todo
junto ao lago. Sentia falta até mesmo de Mirtilo, o galgo que trotava por
toda parte com a cabeça erguida como se tivesse meio cérebro nela e
longos fios de saliva pendendo das mandíbulas.
— Também tenho que descer lá e limpar as árvores caídas na
nevasca — disse Bill. Parecia constrangido. — Até que não foi tão ruim
esse ano, aquela última grande tempestade deixou neve por toda parte,
graças a Deus, mas há uma boa quantidade de lixo que ainda tenho que
tirar. Não vou demorar a fazer isso, agora. O fato de você não usar a casa
não é uma desculpa. Venho descontando seus cheques. — Havia algo
divertido em ouvir o velho babaca grisalho fazendo mea-culpa; Jo teria
batido com os pés no chão e rido, tenho certeza.
— Se tudo estiver direito e funcionando no 4 de Julho, Bill, eu fico
satisfeito.
— Então vai ficar satisfeito como um porco na lama. Isso é uma
promessa. — O próprio Bill parecia satisfeito como um porco na lama, e
fiquei contente. — Vai vir para cá e escrever um livro à beira d’água? Como
nos velhos tempos? Não que os dois últimos livros não sejam ótimos, minha mulher não conseguiu largar aquele último por um segundo, mas...
— Não sei — eu disse, o que era verdade. E então a ideia me
ocorreu. — Bill, pode me fazer um favor antes de limpar a entrada de
carros e acionar Brenda Meserve?
— Se eu puder, com o maior prazer — respondeu. Então eu lhe disse
o que queria.
Quatro dias depois, recebi um pequeno pacote com seu lacônico endereço
para resposta: DEAN/ENT GERAL/TR-90 (DARK SCORE). Eu o abri e puxei
vinte fotos tiradas com uma daquelas pequenas câmeras que são usadas
uma vez e depois jogadas fora.
Bill encheu o filme com fotos de vários ângulos da casa, a maioria
transmitindo aquele ar sutil de negligência de quando um lugar não é
suficientemente utilizado... até mesmo um que é acaseirado (para usar as
palavras de Bill) dá aquela impressão depois de algum tempo.
Mal olhei para as fotos. As primeiras quatro eram as que eu queria;
enfileirei-as na mesa da cozinha, onde a forte luz do sol incidia diretamente
sobre elas. Bill as tirara do alto da entrada de carros, apontando a câmera
descartável para baixo, onde se esparramava Sara Laughs. Podia ver o
musgo que tinha crescido não apenas nos troncos da casa principal, mas
também nos das alas norte e sul. Podia ver a confusão de ramos caídos e
os destroços das agulhas de pinheiro a esmo na entrada de carros. Bill deve
ter ficado tentado a limpar tudo aquilo antes de tirar os instantâneos, mas
não o fizera. Eu lhe tinha dito exatamente o que queria — “verrugas e tudo”
foi a frase que usei —, e Bill me deu o que pedi.
Os arbustos dos dois lados da entrada de carros tinham crescido
bastante desde que Jo e eu havíamos passado uma temporada significativa
no lago; não estavam exatamente selvagens, mas alguns dos ramos mais
compridos pareciam se estender avidamente uns para os outros através do
asfalto, como amantes separados.
Contudo, meus olhos voltavam repetidamente para o alpendre ao lado
da entrada de carros. As outras semelhanças entre as fotos e meus sonhos
de Sara Laughs podiam ser apenas uma coincidência (ou a imaginação
geralmente surpreendentemente prática do escritor em ação), mas eu
conseguia explicar os girassóis crescendo através das tábuas do alpendre
tanto quanto conseguia explicar o corte no dorso da minha mão.
Virei uma das fotos. Na parte de trás, num garrancho, Bill tinha
escrito: Esses camaradas estão bastante adiantados... e invadindo!
Desvirei o retrato. Três girassóis, crescendo através das tábuas do
alpendre. Não dois, nem quatro, mas três grandes girassóis com rostos
como lanternas.
Exatamente como os do meu sonho


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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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