eles, na realidade; todos os irmãos e as respectivas famílias estariam lá.
Abri a boca para dizer não — a última coisa que eu desejava no
mundo era um louco Natal irlandês com todos bebendo uísque e se tornando
cada vez mais sentimentais em relação a Jo, enquanto umas duas dúzias
de fedelhos de nariz escorrendo se arrastavam pelo chão — e me escutei
dizendo que iria sim.
Frank pareceu tão surpreso quanto eu, mas sinceramente encantado.
— Fantástico! — exclamou. — Quando é que pode vir?
Eu estava no vestíbulo, minhas galochas pingando no ladrilho, e de
onde estava podia olhar pelo arco da porta para dentro da sala de estar.
Não havia árvore de Natal; eu não me dei a esse trabalho desde que Jo
morreu. A sala parecia ao mesmo tempo medonha e grande demais para
mim... um rinque de patinação mobiliado em estilo colonial americano.
— Eu estava fora fazendo algumas coisas — falei. — Que tal eu
jogar umas roupas de baixo na valise, voltar para o carro e rumar para o
sul enquanto o aquecedor de ar ainda está soprando ar quente?
— Maravilhoso — disse Frank sem um momento de hesitação. —
Podemos nos conceder uma saudável noite de solteiros antes que os Filhos e Filhas da Malden do leste comecem a chegar. Vou te servir um drinque
assim que largar o telefone.
— Então acho que é melhor eu me mandar — respondi.
Aquele foi, de longe, o melhor feriado desde que Johanna morreu. O único
feriado bom, acho eu. Por quatro dias fui um Arlen honorário. Bebi demais,
brindei demais à memória de Johanna... e sabia, de algum modo, que ela
estaria contente de saber que eu o fazia. Dois bebês cuspiram em mim, um
cachorro entrou na cama comigo no meio da noite e a cunhada de Nicky
Arlen me deu uma cantada um tanto indiscreta na noite depois do Natal,
quando me pegou sozinho na cozinha fazendo um sanduíche de peru. Eu a
beijei porque ela nitidamente queria ser beijada, e uma mão aventureira (ou
talvez “maliciosa” fosse a palavra certa) agarrou-me por um momento num
lugar onde só minha própria mão esteve em quase três anos e meio. Foi
um choque, mas não um choque inteiramente desagradável.
A coisa não foi além — numa casa cheia de Arlen e com Susy
Donahue ainda não divorciada de modo oficial, dificilmente poderia ter ido
—, mas decidi que era hora de partir... isto é, a não ser que eu quisesse
dirigir em alta velocidade numa rua estreita que muito provavelmente
terminava num muro de tijolos. Fui embora no dia 27, muito contente por
ter ido lá, e dei a Frank um abraço feroz quando nos despedimos diante de
meu carro. Por quatro dias, não pensei nenhuma vez no fato de agora só
haver poeira no meu cofre no Fidelity Union, e por quatro noites dormi
direto até às oito da manhã, às vezes acordando com o estômago azedo e
uma dor de cabeça de ressaca, mas nunca, nem uma vez, no meio da noite
com Manderley, sonhei novamente com Manderley passando pela cabeça.
Voltei a Derry sentindo-me refrescado e renovado.
O primeiro dia de 1998 nasceu claro, frio, imóvel e belo. Levantei,
tomei uma chuveirada e então cheguei à janela do quarto bebendo café.
Ocorreu-me subitamente — com toda a simples e poderosa realidade das
ideias que nos percorrem da cabeça aos pés — que eu já poderia escrever.
Era um novo ano, algo tinha mudado e eu poderia escrever agora, se
quisesse. A rocha tinha rolado para longe.
Entrei no escritório, sentei-me ao computador e liguei-o. Meu coração
batia normalmente, nem a testa nem a nuca transpiravam, e minhas mãos
estavam quentes. Chamei o menu principal, aquele que se obtém ao se
clicar a maçã, e lá estava o meu velho camarada Word. Cliquei. O logotipo
pena-e-pergaminho apareceu logo e, quando isso ocorreu, subitamente não
consegui mais respirar. Era como se uma fita de ferro envolvesse meu
peito.
Eu me afastei da mesa, nauseado e agarrando o colarinho redondo da
malha de algodão que usava. As rodas de minha cadeira de escritório se
prenderam num pequeno tapete — uma das descobertas de Jo no último
ano de sua vida —, e caí direto para trás. Minha cabeça bateu no chão e vi
um chuveiro de fagulhas brilhantes percorrerem meu campo de visão. Penso
que tive sorte de não desmaiar, mas acho que minha verdadeira sorte na
manhã do ano-novo de 1998 foi ter caído do jeito que caí. Se eu não tivesse
empurrado a cadeira para longe da mesa e ainda estivesse fitando o
logotipo — e a medonha tela vazia que o seguiu —, acho que poderia ter
sufocado até a morte.
Quando me levantei cambaleando, pelo menos conseguia respirar.
Minha garganta parecia estreita como um canudo, e cada inspiração emitia
um estranho som de grito, mas eu estava respirando. Entrei repentinamente
no banheiro e vomitei na pia com tanta força que o vômito borrifou o
espelho. Fiquei pálido e meus joelhos dobraram. Dessa vez bati com a
testa, fazendo-a chocar-se com a beira da pia e, embora minha nuca não
tenha sangrado (apesar de ao meio-dia ter aparecido ali um respeitável
caroço), minha testa sangrou um pouco. Essa última batida deixou uma
marca roxa sobre a qual eu menti, naturalmente, dizendo às pessoas que
me perguntaram que bati com a testa na porta do banheiro no meio da
noite, idiota que sou; isso ensina o sujeito a não levantar às duas da manhã
sem acender a luz.
Quando recobrei a completa consciência (se é que existe tal estado),
estava enroscado no chão. Levantei, desinfetei o corte da testa e sentei na
beira da banheira com a cabeça abaixada até os joelhos, reunindo confiança
suficiente para me erguer. Fiquei ali por 15 minutos, acho, e naquele espaço
de tempo decidi que, a não ser que acontecesse um milagre, minha carreira
tinha terminado. Harold gritaria de dor e Debra gemeria descrente, mas o
que poderiam fazer? Enviar-me para a Polícia de Publicações? Ameaçar-me
com a Gestapo do Clube do Livro do Mês? Mesmo que pudessem, que
diferença faria? Não se consegue tirar seiva de um tijolo ou sangue de uma
pedra. A não ser que ocorresse uma recuperação milagrosa, minha vida
como escritor tinha acabado.
E se tiver acabado?, eu me perguntei. E nos próximos quarenta anos,
Mike? Vai poder jogar muito Scrabble em quarenta anos, fazer muitas
palavras cruzadas, tomar muito uísque. Mas isso é o bastante? O que mais
você vai fazer nos próximos quarenta anos?
Eu não queria pensar naquilo, não naquele momento. Os próximos
quarenta anos que cuidassem de si mesmos; eu ficaria feliz apenas de
atravessar o Dia de Ano-novo de 1998.
Quando senti que estava sob controle, voltei a meu escritório, andei
vagarosamente para o computador com os olhos resolutamente abaixados,
tateei em busca do botão certo e desliguei a máquina. Pode-se danificar o
programa desligando-o assim sem fechá-lo antes, mas naquelas
circunstâncias dificilmente pensei que tivesse importância.
Naquela noite sonhei mais uma vez que estava caminhando ao
crepúsculo na estrada 42, que levava a Sara Laughs; mais uma vez
transmiti um desejo à estrela da noite enquanto os mergulhões-do-norte
gritavam no lago, e mais uma vez senti algo nos bosques atrás de mim, aproximando-se cada vez mais. Parecia que meu feriado de Natal havia terminado.
Foi um inverno áspero e frio, com montanhas de neve e uma epidemia de
gripe em fevereiro que liquidou uma terrível quantidade de velhos em Derry.
Pegou-os do modo duro com que um vento atinge velhas árvores depois de
uma tempestade de gelo. Nem chegou a me tocar. Não tive nem um
resfriado naquele inverno.
Em março, parti de avião para Providence e participei do Desafio de
Palavras Cruzadas da Nova Inglaterra, de Will Weng. Tirei o quarto lugar e
ganhei cinquenta pratas. Emoldurei o cheque não descontado e pendurei-o na
sala. No passado, a maioria dos meus Certificados de Triunfo (frase de Jo;
todas as boas frases pareciam ser frases de Jo) ia para as paredes do meu
escritório, mas por volta de março de 1998 eu não estava indo muito lá.
Quando queria jogar Scrabble contra o computador, ou fazer palavras
cruzadas em nível de torneio, usava o PowerBook e sentava à mesa da
cozinha.
Lembro-me de sentar lá um dia, abrir o menu principal do
PowerBook, descer às palavras cruzadas... depois fazer o cursor descer dois
ou três itens adiante até iluminar meu velho amigo Word.
O que me devastou não foi frustração ou fúria impotente e
empacada (senti muito as duas desde que tinha terminado De cima a
baixo), e sim tristeza e simples anseio. Olhar para o Word foi subitamente
como olhar as fotos de Jo que eu conservava na carteira. Estudando-as,
pensava às vezes que venderia minha alma imortal a fim de tê-la de volta...
e naquele dia de março achei que venderia minha alma para poder escrever
uma história de novo.
Vá em frente e tente, então, sussurrou uma voz. Talvez as coisas
tenham mudado.
Só que as coisas não tinham mudado, e eu sabia disso. Assim, em
vez de abrir o Word, movi o ícone para a lixeira no canto direito inferior e
deixei-o cair ali. Adeus, velho.
Debra Weinstock telefonou muito naquele inverno, na maior parte das
vezes com boas notícias. No início de março, relatou que A promessa de
Helen foi escolhido para a seleção principal do Literary Guild para agosto,
junto com um romance de suspense de Steve Martini sobre tribunais
(Martini era outro veterano do segmento oito-a-quinze da lista de bestsellers
do Times). E meu editor britânico, disse Debra, adorou Helen, e tinha
certeza de que seria meu livro de “estouro”. (Minhas vendas britânicas
sempre andavam devagar.)
— A Promessa é um tipo de nova direção para você — disse ela. —
Não acha?
— Eu meio que pensei isso — confessei, cogitando como Debbie
reagiria se eu lhe contasse que o livro que era uma nova direção para mim
tinha sido escrito havia quase 12 anos.
— Ele tem... não sei... um tipo de maturidade.
— Obrigado.
— Mike? Acho que a ligação está caindo. Sua voz parece abafada.
Claro que parecia. Eu estava mordendo a parte lateral de minha mão
para me impedir de uivar de rir. Então, cautelosamente, tirei a mão da boca
e examinei as marcas da mordida.
— Está melhor?
— Muito melhor. Então, o livro novo é sobre o quê? Me dá uma pista.
— Você conhece a resposta para isso, garota.
Debra riu.
— “Você vai ter que ler o livro para descobrir, Josephine” — disse. —
É isso?
— É, sim senhora.
— Bem, continue escrevendo. Seus camaradas na Putnam estão
malucos com o modo como você está passando para um nível superior.
Eu me despedi, desliguei o telefone e então ri loucamente por uns
dez minutos. Ri até chorar. Era bem parecido comigo, porém. Sempre passar para um nível superior.
Durante esse período, também concordei em dar uma entrevista por
telefone a um jornalista da Newsweek para um artigo sobre O Novo Gótico
Americano (o que quer que isso fosse além de uma frase para vender
algumas revistas) e outra para a Publishers Weekly, que apareceria
exatamente antes da publicação de A promessa de Helen. Concordei porque
as duas pareciam suaves, o tipo de entrevista que você dá ao telefone
enquanto lê a correspondência. E Debra estava encantada, pois normalmente
digo não a toda publicidade. Detesto essa parte do trabalho e sempre
detestei, principalmente o inferno dos programas de bate-papo na TV, ao
vivo, onde ninguém jamais leu a droga do seu livro e a primeira pergunta
sempre é: “Onde é que você arranja essas ideias incríveis?” O processo de
publicidade é como ir a um sushi bar onde você é o sushi, e era
maravilhoso passar por isso dessa vez com a sensação de que eu consegui
dar a Debra uma boa notícia que ela pudesse levar aos chefes. “Sim”, diria
ela, “ele ainda é um problema com a publicidade, mas consegui que fizesse
umas duas coisas.”
Durante tudo isso meus sonhos com Sara Laughs continuavam — não
todas as noites, mas a cada duas ou três noites, sem que eu jamais
pensasse neles durante o dia. Fazia minhas palavras cruzadas, comprei um
violão acústico e comecei a aprender a tocá-lo (contudo jamais seria
convidado para fazer uma turnê com Patty Loveless ou Alan Jackson),
esquadrinhava a cada dia os inchados obituários no Derry News à procura
de nomes que conhecia. Em outras palavras, eu estava praticamente à toa.
O que fez tudo isso terminar foi um telefonema de Harold Oblowski
apenas três dias depois da ligação sobre o clube do livro de Debra. A
tempestade se propagava lá fora — um episódio de neve-ruim-mudandopara-granizo
que se revelou a última e a maior explosão do inverno. Durante
o anoitecer a energia estaria cortada por toda Derry, mas quando Harold
ligou, às cinco da tarde, as coisas começavam a piorar.
— Acabo de ter uma conversa muito boa com sua editora — disse
Harold. — Uma conversa muito esclarecedora, muito energizante. Na
verdade, acabei de sair do telefone.
— É?
— É sim. Há uma sensação na Putnam, Michael, que seu último livro
pode ter um efeito positivo em sua posição de vendas no mercado. É muito
forte.
— É — eu disse. — Eu o estou levando para o próximo nível.
— Ahn?
— É só tagarelice de minha parte, Harold. Continue.
— Bem... Helen Nearing é uma grande protagonista e Skate é o seu
melhor vilão até hoje.
Eu não disse nada.
— Debra levantou a possibilidade de transformar A promessa de
Helen no primeiro passo para um contrato de três livros. Um contrato de
três livros muito lucrativo. Tudo sem nenhuma sugestão da minha parte.
Nenhuma editora quis se comprometer com mais de dois até agora.
Mencionei nove milhões de dólares, três milhões por livro, enfim, esperando
que ela risse... mas um agente tem que começar de algum ponto, e eu
sempre escolho o ponto mais alto que consigo encontrar. Acho que devo ter
oficiais romanos em algum ponto de minha árvore genealógica.
É mais provável que sejam mercadores de tapetes etíopes, pensei,
mas sem dizê-lo. Eu me senti como quando o dentista pega um pouco
pesado na Novocaína e inunda os lábios e a língua da gente, assim como o
dente que está ruim e a parte da gengiva que o rodeia. Se eu tentasse falar,
provavelmente só agitaria a boca de modo incoerente e cuspiria saliva.
Harold estava quase ronronando. Um contrato de três livros para o novo e
maduro Michael Noonan. Altas jogadas, baby.
Desta vez não tive vontade de rir. Desta vez senti vontade de gritar.
Harold continuava, feliz e desatento. Harold não sabia que a árvore que dava
livros tinha morrido. Harold não sabia que o novo Mike Noonan tinha uma
falta de ar cataclísmica e acesso de vômito tipo jato a cada vez que
tentava escrever.
— Você quer saber como ela respondeu, Michael?
— Manda brasa.
— Ela disse: “Bem, nove é obviamente alto, mas é um lugar tão bom
para se começar como qualquer outro. Sentimos que esse novo livro é um
grande passo à frente para ele.” Isso é extraordinário. Extraordinário. Veja,
eu não disse nem sim nem não, queria falar com você primeiro, claro, mas
acho que estamos olhando para sete-ponto-cinco, no mínimo. Na verdade...
— Não.
Ele fez uma pausa. Longa o bastante para eu perceber que eu
apertava tanto o telefone que machuquei a mão. Tive que fazer um esforço
consciente para relaxar a mão.
— Mike, se você pelo menos me ouvir...
— Não preciso ouvir você. Não quero falar sobre um novo contrato.
— Desculpe discordar, mas jamais haverá época melhor. Pense nisso,
pelo amor de Deus. Estamos falando aqui de uma quantia alta. Se você
esperar até depois que A promessa de Helen seja publicada, não posso
garantir que a mesma oferta...
— Sei que não pode — eu disse. — Não quero garantias, não quero
ofertas, não quero falar em contratos.
— Não precisa gritar, Mike, posso ouvi-lo...
Eu estava gritando? Sim, acho que estava.
— Você está insatisfeito com a Putnam? Acho que Debra ficaria
muito aflita de saber disso. Acho também que Phyllis Grann faria
praticamente qualquer coisa para resolver qualquer preocupação que você
possa ter.
Está dormindo com Debra, Harold?, pensei, e imediatamente isso
pareceu a ideia mais lógica do mundo — que aquele pequeno Harold
Oblowski, cinquentão, atarracado e começando a ficar calvo, estivesse
fazendo isso com minha loura e aristocrática editora educada na Smith.
Você está dormindo com ela, conversa sobre o meu futuro enquanto estão
na cama num quarto do Plaza? Estão tentando descobrir quantos ovos de
ouro podem tirar dessa velha galinha antes de finalmente torcerem seu
pescoço e transformá-la em canja? É disso que estão atrás?
— Harold, não posso falar sobre isso agora e não vou falar sobre
isso agora.
— O que há de errado? Por que está tão perturbado? Achei que
ficaria contente. Que droga, pensei que ia se sentir nas alturas, porra!
— Não há nada errado. É apenas um momento ruim para mim, para conversar sobre um contrato de longo prazo. Você vai ter que me perdoar,
Harold. Tenho que tirar uma coisa do forno.
— Podemos pelo menos discutir esse próximo...
— Não — eu disse, e desliguei. Penso ter sido a primeira vez em
minha vida adulta que desliguei o telefone na cara de alguém que não fosse um vendedor.
Eu não tinha que tirar nada do forno, é claro, e estava perturbado demais até para pensar em pôr algo lá. Em vez disso, entrei na sala, servime
de uma pequena dose de uísque e me sentei em frente à TV. Fiquei ali
sentado por quase quatro horas, olhando tudo sem ver nada. Do lado de
fora, a tempestade continuava a desabar. Amanhã haveria árvores
derrubadas por toda Derry e o mundo pareceria uma escultura de gelo.
Às 9h15, a energia foi cortada, voltou por cerca de trinta segundos,
depois sumiu de novo e permaneceu assim. Recebi isso como uma
sugestão para parar de pensar no inútil contrato de Harold e em como Jo
teria dado uma risadinha de contentamento ante a ideia de nove milhões de
dólares. Levantei, puxei da parede a tomada da TV apagada para que ela
não voltasse aos berros às duas da manhã (não precisaria ter me
preocupado com isso; Derry ficou sem energia por quase dois dias) e subi.
Deixei cair minhas roupas junto da cama, arrastei-me para ela sem nem
mesmo me preocupar em escovar os dentes e adormeci em menos de
cinco minutos. Não sei quanto tempo depois disso foi que o pesadelo surgiu.
Foi o último sonho que tive no que agora penso como minha “série
Manderley”, o sonho culminante. Tornou-se ainda pior, suponho, pela
escuridão inquietante na qual despertei.
Ele começou como os outros. Estou caminhando pela estrada,
ouvindo os grilos e os mergulhões-do-norte, olhando principalmente para a
fenda do céu escurecendo lá em cima. Chego à entrada de carros e ali
alguma coisa mudou; alguém colocou um pequeno adesivo na tabuleta de
SARA LAUGHS. Eu me aproximo e vejo que é um adesivo de uma estação
de rádio. O adesivo diz WBLM. 102.9, DIRIGÍVEL DE ROCK AND ROLL DE
PORTLAND.
Do adesivo, volto a olhar para o céu, e lá está Vênus. Penso num
desejo como sempre faço e peço Johanna, com o cheiro úmido e vagamente
formidável do lago no nariz.
Algo se move pesadamente no bosque, fazendo estalar as folhas
secas e quebrando um ramo. Parece grande.
É melhor descer até lá, diz uma voz na minha cabeça. Alguma coisa
fez um contrato por você, Michael. Um contrato de três livros, e esse é o
pior tipo.
Não posso me mover, nunca mais vou conseguir, só posso ficar aqui.
Estou com bloqueio para caminhar.
Mas é só conversa. Eu posso andar. Desta vez eu posso andar. Estou
encantado. Dei um importante passo adiante. No sonho, eu penso: Isso
muda tudo! Isso muda tudo!
Desço andando pela entrada de carros, penetrando cada vez mais
profundamente no cheiro limpo mas ardido de pinheiro, pisando em alguns
galhos caídos, chutando outros para fora do caminho. Ergo a mão para tirar
o cabelo úmido da testa e vejo o pequeno arranhão que a percorre. Paro a
fim de olhar para ele, curioso.
Não há tempo para isso, diz a voz-sonho. Vá até lá. Você tem um
livro para escrever.
Não consigo escrever, respondo. Essa parte está terminada.
Não, diz a voz. Há algo perturbador naquilo, que me assusta. Você
teve o caminho de escritor e não o bloqueio de escritor e, como pode ver,
ele sumiu. Agora se apresse e desça lá.
Estou com medo, digo à voz.
Medo de quê?
Bem... e se a sra. Danvers estiver lá?
A voz não responde. Sabe que não estou com medo da governanta de
Rebecca de Winter, ela é apenas um personagem num velho livro, nada
senão um saco de ossos. Portanto, recomeço o caminho. Não tenho escolha,
parece, mas a cada passo meu terror aumenta, e quando estou a meio
caminho da massa espalhada e sombria da casa de troncos, o medo já
penetrou em meus ossos como febre. Algo está errado aqui, algo está
completamente incorreto.
Vou fugir, penso. Vou correr de volta pelo caminho por onde vim, vou
fugir como um Homem-Biscoito, vou correr por todo o caminho até Derry,
se for preciso, e jamais voltarei aqui.
O problema é que posso ouvir algo ofegante e salivando e passos
abafados atrás de mim na crescente escuridão. A coisa no bosque agora
está na entrada de carros. Bem atrás de mim. Se eu vislumbrar sua figura,
isso vai tirar a sanidade da minha cabeça num único golpe. Algo de olhos
vermelhos, algo curvado e faminto.
A casa é minha única esperança de segurança.
Continuo andando. Os arbustos se amontoavam entrelaçados como
mãos. À luz da lua crescente (a lua nunca tinha surgido nesse sonho, mas
nunca permaneci tanto tempo nele anteriormente), as folhas ruidosas
parecem rostos irônicos. Vejo olhos piscando e bocas sorrindo. Abaixo de
mim estão as janelas negras da casa e sei que não haverá luz quando eu
entrar, a tempestade cortou a energia, vou mover o interruptor para cima e
para baixo, para cima e para baixo, até que algo me alcance, pegue meu
pulso e me puxe cada vez mais para dentro da escuridão.
Agora percorri três quartos da entrada de carros. Posso ver os
degraus da conexão com a estrada descendo ao lago, e também a
plataforma flutuante lá na água, um quadrado preto num rastro de luar. Bill
Dean a pusera ali. Posso ver também algo comprido no lugar onde a entrada
de carros termina, junto ao alpendre. Nunca houve tal objeto ali antes. O
que pode ser?
Outros dois ou três degraus e já sei. É um caixão, aquele pelo qual
Frank Arlen barganhou... porque, disse ele, o agente funerário estava
tentando me passar a perna. É o caixão de Jo, e está ali de lado, com a
parte de cima parcialmente aberta, mas o suficiente para que eu veja que
está vazio.
Acho que quero gritar, acho que pretendo dar meia-volta e correr
pela entrada de carros — vou arriscar, com essa coisa atrás de mim. Mas
antes que eu possa fazê-lo, a porta de trás de Sara Laughs se abre e uma
figura terrível sai correndo para a escuridão crescente. A figura é humana e
ao mesmo tempo não é. É uma coisa branca enrugada, com braços flácidos
erguidos. Não há rosto onde deveria haver, e mesmo assim está guinchando
numa voz nasalada parecida com a dos mergulhões-do-norte. Então percebo
que é Johanna. Ela conseguiu escapar do caixão, mas não de sua mortalha
desenrolada. Está toda emaranhada nela.
Q ue velocidade medonha tem a criatura! Não desliza como se
imagina que os fantasmas façam, mas dispara pelo alpendre na direção da
entrada de carros. Esteve esperando ali durante o sonho todo enquanto eu
estava imobilizado, e agora que finalmente pude caminhar, pretende me
pegar. Eu gritarei quando a coisa me envolver com seus braços de seda,
claro, gritarei quando sentir o cheiro da carne apodrecendo, apinhada de
vermes, e ver seus olhos escuros me encarando através do tecido fino.
Gritarei até que a sanidade abandone minha mente para sempre. Gritarei...
mas não há ninguém ali que possa me ouvir. Só os mergulhões-do-norte me
ouvirão. Voltei novamente a Manderley, e dessa vez não sairei nunca mais.
A estridente coisa branca estendeu os braços para me pegar e acordei no
chão do quarto, gritando numa voz aguda e horrorizada, e batendo a cabeça
repetidamente em alguma coisa. Quanto tempo se passou até eu
finalmente perceber que não estava dormindo, que não estava em Sara
Laughs? Quanto tempo se passou antes de eu perceber que tinha caído da
cama em algum momento e tinha me arrastado pelo quarto durante o sono,
que eu estava de quatro num canto, batendo a cabeça na junção das
paredes, repetindo o gesto como um lunático num hospício?
Não sabia, não poderia saber, sem luz e com o relógio de cabeceira
apagado. Sei que no início não conseguia sair do canto porque me sentia
mais seguro ali do que na sala mais ampla, e sei que por um longo tempo a
força do sonho me dominou, até mesmo depois que acordei (sobretudo,
imagino, porque não podia acender a luz e dissipar seu poder). Tinha medo
de que, se me arrastasse para fora de meu canto, a coisa branca
irrompesse do banheiro, dando seu grito mortal, ansiosa para terminar o
que havia começado. Sei que meu corpo inteiro tremia, e que estava gelado
e molhado da cintura para baixo porque minha bexiga tinha se
descontrolado.
Fiquei ali no canto, ofegante e molhado, encarando a escuridão, me
perguntando se poderia haver um pesadelo poderoso o bastante para
enlouquecer alguém. Achei então (e acho agora) que quase descobri isso
naquela noite de março.
Finalmente me senti capaz de deixar o canto. Na metade do trajeto,
tirei a calça molhada do pijama e, quando o fiz, fiquei desorientado. O que
se seguiu foram miseráveis e surreais cinco minutos (ou talvez fossem
apenas dois) nos quais me arrastei para a frente e para trás em meu
quarto, batendo nas coisas e gemendo cada vez que atingia algo com a mão
cega e tateante. Tudo que eu tocava inicialmente parecia com aquela
horrível coisa branca. Nada que eu tocava parecia com coisa alguma que eu
conhecia. Com os reconfortantes números verdes do relógio de cabeceira
tendo desaparecido e com meu sentido de direção temporariamente perdido,
eu poderia estar me arrastando em torno de uma mesquita em Adis Abeba.
Por fim, caí de ombro sobre a cama. Levantei, puxei a fronha do
travesseiro extra e enxuguei com ela a virilha e a parte de cima das
pernas. Depois me arrastei de volta para a cama, me cobri com os
cobertores e fiquei ali, tremendo, escutando o ruído contínuo do granizo nas
janelas.
Não consegui dormir pelo resto da noite, e o sonho não se apagou
como os sonhos geralmente fazem quando despertamos. Fiquei ali, deitado
de lado, a tremedeira lentamente diminuindo, pensando no caixão dela na
entrada de carros, pensando que aquilo fazia uma espécie de louco sentido
— Jo tinha adorado Sara, e se fosse assombrar algum lugar, seria lá
mesmo. Mas por que iria querer me ferir? Por que minha Jo iria querer me
ferir? Não conseguia pensar em nenhum motivo.
De algum modo, o tempo passou, e chegou um momento em que
percebi que o ar tinha se tornado de um tom cinza-escuro; as formas da
mobília pairavam nele como sentinelas no nevoeiro. Aquilo era um pouco
melhor. Um pouco mais satisfatório. Eu ia acender o fogão à lenha da
cozinha, decidi, e fazer um café forte. Começar o trabalho de deixar essa
coisa para trás.
Joguei as pernas para fora da cama e levantei a mão para tirar o
cabelo úmido da testa. Fiquei imobilizado com a mão na frente dos olhos.
Devo tê-la arranhado enquanto me arrastava no escuro, desorientado,
tentando achar o caminho para a cama. Havia um corte raso e coagulado no dorso de minha mão, logo abaixo dos nós dos dedos.
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