embora em mais de uma ocasião eu tivesse ficado tentado a lhe contar. Me
deixe ser seu irmão. Se não por sua causa, pelo menos por Jo, disse ele no
dia em que voltou a seu negócio de impressão e a uma vida quase sempre
solitária na cidade de Sanford, no sul do Maine. Jamais esperei fazê-lo
provar o que dizia, e não o fiz — não da maneira elementar de grito-porsocorro
que ele poderia estar pensando —, mas ligava para ele mais ou
menos de duas em duas semanas. Conversa de homem, sabe como é —
Como vão as coisas, Mais ou menos, um frio de rachar, É, aqui também, Se
eu conseguir as entradas para Bruins, Quer vir até Boston, Talvez no ano
que vem, no momento estou atolado de trabalho, É, eu sei como é isso, Até
logo, Mikey, Tá, Frank, ande pela sombra. Conversa de homem.
Tenho certeza de que uma ou duas vezes ele me perguntou se eu
estava trabalhando num novo livro, e acho que eu disse...
Ah, foda-se — é uma mentira, sim, tudo bem? Fiquei tão embebido
disso que agora estou mentindo até para mim mesmo. Frank perguntava,
claro, e eu sempre respondia que sim, trabalhava num novo livro, e que ele
estava ficando bom, bom mesmo. Por mais de uma vez fiquei tentado a lhe
dizer Não consigo escrever dois parágrafos sem entrar numa crise física e
mental completa — meu coração bate duas vezes mais forte, depois três vezes, fico sem ar e então começo a ofegar, tenho a sensação de que
meus olhos vão pular da cabeça e ficar pendurados do rosto. Estou como
um claustrofóbico num submarino afundando. É assim que as coisas vão,
obrigado por perguntar, mas nunca fiz isso. Não peço ajuda. Não consigo pedir ajuda. Acho que já disse isso.
Do meu ponto de vista reconhecidamente preconceituoso, os romancistas
de sucesso — até mesmo os romancistas de sucesso modesto —
receberam a melhor porção das artes criativas. É verdade que as pessoas
compram mais CDs do que livros, vão mais ao cinema e assistem muito
mais à TV. Mas o arco de produtividade dos romancistas é mais longo,
talvez porque os leitores sejam um pouco mais inteligentes do que os fãs
das artes não escritas, e assim têm lembranças mais duradouras. David
Soul, de Starsky and Hutch, está sabe Deus onde, o mesmo acontecendo
com aquele peculiar rapper branco, Vanilla Ice, mas em 1994 Herman Wouk,
James Michener e Norman Mailer ainda estavam todos por aí; e por falar
em quando os dinossauros andavam pela Terra...
Arthur Hailey estava escrevendo um novo livro (seja como for, o
boato era esse, e se revelou verdadeiro), Thomas Harris podia levar sete
anos entre seus livros e ainda produzir best-sellers e, apesar de não se
saber dele por quase quarenta anos, J. D. Salinger ainda era um assunto
quente nas aulas de inglês e grupos literários informais de cafés. Os
leitores têm uma lealdade sem paralelo em qualquer outra arte criativa, o
que explica por que tantos escritores que ficaram sem gasolina ainda
continuem a rodar de qualquer maneira, impelidos para as listas de bestsellers
pelas palavras mágicas AUTOR DE nas capas de seus livros.
O que o editor quer em retorno, especialmente de um autor com que
se pode contar para a venda de uns 500 mil exemplares de cada romance
em capa dura e mais um milhão em edições populares, é perfeitamente
simples: um livro por ano. Isso, determinaram os sujeitos em Nova York, é
o ótimo. Trezentas e oitenta páginas encadernadas com cordão e cola a
cada 12 meses, com começo, meio e fim; um personagem principal
contínuo, como Kinsey Millhone ou Kay Scarpetta, é opcional, mas
preferível. Os leitores adoram esses personagens; é como voltar à família.
Menos de um livro por ano e o autor está estragando o investimento
de seu editor, dificultando a capacidade de seu administrador de negócios
de continuar a fazer flutuar todos os seus cartões de crédito e pondo em
risco a capacidade de seu agente de pagar o analista dele pontualmente.
Além disso, há sempre um pouco de atrito com os fãs se você leva tempo
demais. Não pode ser evitado. Da mesma forma que, se você publica
demais, há leitores que vão dizer: “Ah, não, já tive uma dose suficiente
desse cara por algum tempo, está tudo começando a ter gosto de feijão.”
Digo isso para que você entenda como pude passar quatro anos
usando meu computador como o mais caro tabuleiro de Scrabble do mundo
e ninguém jamais suspeitou. Bloqueio de escritor? Que bloqueio de escritor?
Não tive porcaria de bloqueio de escritor nenhum. Como poderiam pensar
tal coisa quando havia um novo romance de suspense de Michael Noonan
aparecendo a cada outono, pontual como um relógio, perfeito para sua
leitura de final de verão, pessoal... e, por falar nisso, não esqueçam que os
feriados estão chegando e que todos os seus parentes provavelmente
também gostariam do novo Noonan, que pode ser comprado no Borders
com um desconto de trinta por cento, uau!, um negócio da China.
O segredo é simples, e não sou o único romancista popular dos
Estados Unidos que sabe disso — se o boato é correto, Danielle Steel (para
mencionar apenas um) vem usando a Fórmula Noonan por décadas. Você
vê, embora eu tenha publicado um livro por ano, começando com Sendo dois
em 1984, escrevi dois livros por ano em quatro daqueles dez anos,
publicando um e guardando o outro na toca.
Não me lembro de jamais ter conversado sobre isso com Jo, e, já
que ela nunca perguntou, sempre imaginei que entendia o que eu estava
fazendo: guardando as nozes. Mas eu não pensava em bloqueio de escritor.
Porra, eu estava apenas me divertindo.
Em fevereiro de 1995, depois de quebrar a cabeça com pelo menos
duas boas ideias (aquela função particular — a tal de Eureka! — jamais
para, o que cria sua própria versão especial do inferno), não pude mais
negar o óbvio: eu estava com o pior problema que um escritor pode ter,
sem contar o mal de Alzheimer ou um derrame cataclísmico. Mesmo
assim, tinha quatro caixas de papelão com manuscritos no grande cofre que
mantinha no Fidelity Union, com as palavras Promessa, Ameaça, Darcy e
Alto inscritas nelas. Por volta do Dia dos Namorados, meu agente ligou,
moderadamente nervoso — eu geralmente lhe entregava minha última obraprima
em janeiro, e já estávamos com metade de fevereiro terminada.
Teriam que pôr a produção a todo vapor a fim de que o Mike Noon daquele
ano saísse a tempo para a anual orgia de compras de Natal. Estava tudo
bem?
Aquela foi a minha primeira chance de dizer que tudo estava a
léguas de ir bem, mas o sr. Harold Oblowski de Park Avenue, 225 não era o
tipo de homem para quem se dissessem tais coisas. Era um bom agente,
tanto estimado quanto odiado em círculos editoriais (às vezes pelas
mesmas pessoas, ao mesmo tempo), mas não se adaptava bem a notícias
ruins dos níveis escuros e sujos de óleo onde as mercadorias eram na
verdade produzidas. Teria endoidado e entrado no próximo avião para Derry,
pronto para me fazer uma respiração boca a boca criativa, inflexível em
sua resolução de não partir até ter me arrancado de minha fuga. Não, eu
gostava de Harold bem ali onde ele estava, no 38º andar de seu escritório
com aquela vista do East Side de tirar o fôlego.
Então eu disse, que coincidência, Harold, você ligar no mesmo dia em
que terminei o novo livro, puxa vida, que tal isso, vou mandá-lo pelo FedEx,
chegará amanhã. Harold assegurou-me solenemente de que não havia
coincidência nenhuma nisso, que era telepático no que dizia respeito a seus
escritores. Então me parabenizou e desligou. Duas horas depois recebi seu
buquê de flores — tão exagerado e brilhoso quanto suas gravatas-plastrão
Jimmy Hollywood.
Após colocar as flores na sala de jantar, onde raramente ia desde
que Jo tinha morrido, fui ao Fidelity Union. Usei minha chave, o gerente do
banco a dele, e logo eu estava a caminho do FedEx com o manuscrito de De
cima a baixo. Peguei o livro mais recente porque era o mais perto da frente
do cofre, só isso. Foi publicado em novembro, exatamente a tempo da
corrida de Natal. Dediquei-o à memória de minha falecida e amada esposa
Johanna. Cheguei ao 11º lugar na lista dos best-sellers do Times e todos
foram para casa felizes. Até eu. Porque as coisas iam melhorar, não iam?
Ninguém tinha bloqueio de escritor terminal, tinha (bem, com a possível
exceção de Harper Lee)? Tudo que eu precisava fazer era relaxar, como a
moça do coral dizia ao arcebispo. E graças a Deus fui um bom esquilo e
poupei minhas nozes.
Ainda estava otimista no ano seguinte ao ir até a agência do FedEx
com Comportamento ameaçador, escrito no outono de 1991 e um dos
favoritos de Jo. O otimismo diminuiu um pouquinho por volta de março de
1997, quando dirigi por uma tempestade de neve com O admirador de
Darcy, mas quando as pessoas me perguntavam como iam as coisas
(“Escrevendo algum bom livro ultimamente?” é o modo existencial como a
maioria parece expressar a questão), eu ainda respondia tudo ótimo,
maravilhoso, pois é, escrevendo um monte de bons livros ultimamente,
estão jorrando de mim como merda do rabo de uma vaca.
Depois que Harold leu Darcy e o declarou como meu melhor livro, um
best-seller que era também sério, de modo hesitante falei sobre a ideia de
tirar um ano de férias. Ele respondeu imediatamente com a pergunta que
mais detesto: você está bem? Claro, respondi, ótimo, só pensando em
relaxar um pouco.
Seguiu-se então um daqueles silêncios patenteados por Harold
Oblowski, cujo significado era transmitir que você estava sendo um
tremendo idiota, mas como Harold gosta muito de você, tentava pensar no
jeito mais gentil de lhe dizer isso. É um truque maravilhoso, mas que eu
percebi seis anos atrás. Na verdade, foi Jo quem o percebeu.
— Ele só está fingindo compaixão — disse ela. — Na verdade ele é
como um tira daqueles velhos filmes noir, ficando em silêncio para que
você se esborrache mais adiante e acabe confessando tudo.
Desta vez conservei minha boca fechada — apenas passei o telefone
da orelha direita para a esquerda e me balancei um pouco para a frente na
cadeira do escritório. Quando o fiz, minha visão caiu sobre a foto
emoldurada em cima do computador — Sarah Laughs, nossa casa em Dark
Score Lake. Havia séculos que eu não ia lá, e por um momento cogitei
conscientemente por que seria.
Então a voz de Harold — cautelosa, reconfortante, a voz de um
homem sensato tentando tirar um lunático do que ele espera ser apenas
um delírio passageiro — estava de volta ao meu ouvido.
— Pode não ser uma boa ideia, Mike... não nesse estágio de sua
carreira.
— Não é um estágio — eu disse. — Cheguei ao cume em 1991 e,
desde então, minhas vendas na verdade não subiram nem desceram. É um
platô, Harold.
— É — disse ele —, e os escritores que chegam a esse estado
realmente só têm duas escolhas em termos de vendas: podem continuar como estão ou podem descer.
Então eu desço, pensei em dizer... mas não o fiz. Não queria que
Harold soubesse a que profundidade aquilo chegava, ou como o solo sob
meus pés estava abalado. Não queria que soubesse de minhas atuais
palpitações cardíacas — sim, quero dizer literalmente — quase toda vez em
que abria o Word no meu computador e olhava a tela branca e o cursor que
pulsava.
— É — eu disse. — Tudo bem. Mensagem recebida.
— Tem certeza que está bem?
— Quem lê o livro acha que estou mal, Harold?
— Droga, não, é uma tremenda história. A melhor que já fez, eu te
disse. Uma leitura ótima, mas também é séria pra cacete. Se Saul Bellow
escrevesse ficção romântica de suspense, é isso que escreveria. Mas...
você não está tendo nenhum problema com o próximo livro, está? Eu sei
que ainda sente falta de Jo, que droga, todos nós sentimos...
— Não — eu disse. — Problema nenhum.
Seguiu-se outro daqueles longos silêncios. Eu o suportei. Por fim ele
disse:
— Grisham podia arcar com a parada de um ano. Clancy também.
Com Thomas Harris, os longos silêncios são parte de sua mística. Mas
onde você está a vida é ainda mais dura do que no próprio topo, Mike. Há
cinco escritores para cada um dos lugares lista abaixo, e você sabe quem
são. Que droga, são seus vizinhos três meses por ano. Alguns estão
subindo, como Patricia Cornwell com seus últimos dois livros, alguns estão
descendo, e alguns continuam firmes, como você. Se Tom Clancy partisse
para um hiato de cinco anos e então trouxesse Jack Ryan de volta, voltaria
forte, nem se discute. Se você partisse para um hiato de cinco anos, talvez nem chegasse a voltar. Meu conselho é...
— Faça feno enquanto o sol brilha.
— Tirou as palavras da minha boca.
Conversamos um pouco mais, então nos despedimos. Eu me inclinei
mais para trás na minha cadeira — não completamente, mas perto disso —
e olhei a foto de nosso refúgio no Maine ocidental. Sara Laughs, como o
título daquela venerável balada de Hall e Oates. Jo gostava mais dela, é
verdade, mas só um pouquinho; então, por que eu me mantive tão longe da
casa? Bill Dean, o caseiro, retirava as persianas de tempestade a cada
primavera e as colocava novamente a cada outono, drenava o bueiro no
outono e certificava-se de que a bomba estava funcionando na primavera,
checava o gerador e cuidava para que todas as etiquetas de manutenção
estivessem atualizadas, e ancorava nossa plataforma flutuante a uns 50
metros de distância de nossa língua de praia depois de cada Memorial Day.
Bill limpou a chaminé no início do verão de 1996, embora não tivesse
havido fogo na lareira por dois anos ou mais. Eu o pagava trimestralmente,
como era costume com os caseiros naquela parte do mundo; Bill Dean, um
velho ianque de uma longa linhagem deles, descontava meus cheques e não
perguntava por que eu nunca mais usei o lugar. Estive lá apenas umas duas
ou três vezes desde que Jo morreu, e não passei nem uma noite. Era bom
que Bill não perguntasse, porque não sei que resposta teria lhe dado. Na
realidade, nem sequer tinha pensado em Sara Laughs até minha conversa
com Harold.
Pensando em Harold, desviei o olhar da foto e o voltei para o
telefone. Imaginei-me dizendo a ele: Então eu desço, e daí? O mundo vai
acabar? Por favor. Não é como se eu tivesse uma esposa e uma família
para sustentar — a mulher morreu no estacionamento de uma farmácia,
faça-me o favor (ou mesmo sem favor), e a criança que tanto queríamos e
tentamos por tanto tempo foi-se com ela. Também não sou sedento de
fama — se é que os escritores que preenchem os lugares mais baixos na
lista de best-sellers do Times podem ser chamados de famosos — e não
adormeço sonhando com as vendas do clube do livro. Então por quê? Por que isso ainda me incomoda?
Mas essa última eu podia responder. Porque sentia como se
estivesse desistindo. Porque sem minha mulher e meu trabalho, eu era um
homem supérfluo morando sozinho numa grande casa totalmente paga, não fazendo nada a não ser as palavras cruzadas dos jornais durante o almoço.
Eu tocava adiante o que aparentemente era minha vida. Esqueci Sara Laughs (ou a parte de mim que não queria ir lá enterrou a ideia) e passei outro
verão miserável e de calor sufocante em Derry. Coloquei um programa para
criação de palavras cruzadas no meu PowerBook e comecei a fazê-las.
Aceitei uma indicação provisória para o conselho de diretores da Associação
Cristã de Moços local e julguei o Concurso de Artes de Verão em
Waterville. Fiz uma série de anúncios de TV para o abrigo local dos semteto,
que seguia rumo à falência, depois servi naquele conselho por algum
tempo. (Numa reunião pública desse último conselho, uma mulher me
chamou de amigo dos degenerados, ao que eu repliquei: “Obrigado! Eu
estava precisando disso.” O que provocou uma grande salva de palmas que
ainda não entendo.) Tentei terapia individual, mas desisti depois de cinco
consultas, chegando à conclusão de que os problemas do terapeuta eram
muito piores do que os meus. Patrocinei uma criança asiática e joguei em
times de boliche.
Às vezes tentava escrever, e a cada vez que o fazia, eu me
trancava. Certa vez, quando tentei forçar uma frase ou duas (qualquer uma
ou duas frases, do tamanho que saíssem, ainda frescas da minha cabeça),
tive que agarrar a cesta de papel e vomitar nela. Vomitei até achar que ia
morrer daquilo... e tive literalmente que me arrastar para longe da mesa e
do computador, impelindo-me pelo tapete macio com as mãos e com os
joelhos. Quando cheguei ao outro lado da sala, estava melhor. Podia até
olhar para trás, por cima do ombro, a tela do computador. Simplesmente
não podia me aproximar. Mais tarde naquele mesmo dia, eu me aproximei
dele com os olhos fechados e o desliguei.
Cada vez com mais frequência naqueles dias de final de verão, eu
pensava em Dennison Carville, o professor de criação literária que me
ajudou a me conectar com Harold e que amaldiçoou Sendo dois com um
elogio tão fraco. Certa vez, Carville disse algo que eu jamais esqueci, atribuindo-o a Thomas Hardy, o romancista e poeta vitoriano. Talvez Hardy
tivesse dito aquilo, mas nunca o vi repetido, nem em Bartlett’s nem na
biografia de Hardy que li entre as publicações de De cima a baixo e
Comportamento ameaçador. Acho que o próprio Carville pode ter inventado
aquilo, posteriormente atribuindo-o a Hardy a fim de lhe dar maior peso. É
um truque que eu mesmo venho usando de vez em quando — me
envergonho em dizer.
De qualquer modo, pensava cada vez mais sobre essa citação
enquanto lutava com o pânico no corpo e com a sensação gélida na cabeça,
aquela medonha sensação de algo trancado. Parecia resumir meu desespero
e minha certeza crescente de que jamais seria capaz de escrever de novo
(que tragédia, V. C. Andrews com um pau derrubado por bloqueio de
escritor). A citação sugeria que qualquer esforço que eu fizesse para
melhorar minha situação poderia ser sem sentido, mesmo que obtivesse êxito.
Segundo o velho sombrio Dennison Carville, o romancista aspirante
devia entender desde o início que os objetivos da ficção estão sempre além
de seu alcance, que o trabalho é um exercício de futilidade. “Comparado ao
mais monótono ser humano andando pela face da Terra e deitando nela sua
sombra”, teria supostamente dito Hardy, “o personagem mais
brilhantemente desenhado num romance é apenas um saco de ossos”. Eu
entendi, porque era assim que me sentia naqueles dias dissimulados e intermináveis: um saco de ossos.
Last night I dreamt I went to Manderley again.
[ Em português, “na noite passada sonhei que fui a Manderley de novo”]
Se existe uma primeira frase mais bonita e fascinante na ficção de
língua inglesa, jamais a li. E era uma frase na qual tive motivos para pensar
muito durante o outono de 1997 e o inverno de 1998. Eu não sonhava com
Manderley, claro, e sim com Sara Laughs, que Jo às vezes chamava “o
esconderijo”. Uma descrição bastante justa, acho, para um lugar tão
enfurnado nos bosques do Maine ocidental que, na realidade, não é nem
mesmo uma cidade, mas uma área não incorporada denominada TR-90 nos
mapas do estado.
O último desses sonhos foi um pesadelo, mas, até este último,
todos tinham uma espécie de simplicidade surrealista. Eu acordava
querendo ligar a luz do quarto para poder reconfirmar meu lugar na
realidade antes de voltar ao sono. Sabe como o ar fica antes de uma
tempestade, como tudo permanece parado e as cores dão a impressão de
se destacar com o brilho que se vê durante a febre alta? Meus sonhos de
inverno com Sara Laughs eram assim, cada qual me deixando uma
sensação que não era bem doença. Sonhei de novo com Manderley, eu
pensava ocasionalmente, às vezes deitado na cama com a luz acesa,
escutando o vento do lado de fora, observando os cantos do quarto
mergulhados na sombra e achando que Rebecca de Winter não havia se
afogado numa baía e sim no lago Dark Score. Que ela afundara,
gorgolejando e bracejando, os estranhos olhos negros cheios de água,
enquanto os mergulhões-do-norte gritavam indiferentes no crepúsculo. Às
vezes eu levantava e bebia um copo d’água. Às vezes apenas apagava a luz
depois de ter me certificado mais uma vez de onde estava, rolava para o
meu lado novamente e voltava a dormir.
Durante o dia, raramente chegava a pensar em Sara Laughs, e só
bem depois percebi que algo está muito fora dos eixos quando existe tal
dicotomia entre a vida da pessoa acordada e dormindo.
Acho que foi o telefonema de Harold Oblowski em outubro de 1997
que desencadeou os sonhos. O motivo aparente do telefonema de Harold foi
me dar os parabéns pelo lançamento iminente de O admirador de Darcy,
que era muito envolvente e que também fazia pensar pra cacete. Suspeitei
de que havia pelo menos outro item em sua agenda — ele geralmente tem
—, e eu estava certo. Ele tinha almoçado com Debra Weinstock, minha
editora, no dia anterior, e conversaram sobre o outono de 1998.
— Parece lotada — disse ele, referindo-se às listas de outono e
especificamente à metade ficção das listas. — E há umas adições-surpresa.
Dean Koontz...
— Pensei que ele publicasse normalmente em janeiro — disse.
— Publica, mas Debra soube que o de janeiro pode ser adiado. Ele
quer acrescentar uma parte ou coisa semelhante. Além disso há um Harold
Robbins, Os predadores...
— Impressionante.
— Robbins ainda tem seus fãs, Mike, ainda tem seus fãs. Como você
enfatizou mais de uma vez, escritores de ficção têm uma atividade de
longo espectro.
— Ahn, ahn. — Passei o receptor para a outra orelha e me encostei
na cadeira. Vislumbrei de relance a foto emoldurada de Sara Laughs em
minha mesa quando o fiz. Eu a visitaria em meus sonhos por mais tempo e
proximidade naquela noite, embora ainda não soubesse; só sabia então que
o que desejava mais do que tudo era que Harold Oblowski se apressasse e
fosse direto ao ponto.
— Sinto impaciência em você, meu caro Michael — disse Harold. —
Interrompi você? Está escrevendo?
— Já acabei por hoje — disse. — Mas estou pensando em almoçar.
— Vou ser rápido — prometeu ele —, preste atenção, isso é
importante. Pode haver até cinco outros escritores que não esperávamos
que publicassem no próximo outono: Ken Follett... acredita-se que talvez
este seja seu melhor livro desde O buraco da agulha... Belva Plain... John
Jakes...
— Nenhum desses caras joga tênis na minha quadra — disse,
embora soubesse que isso não era exatamente a questão de Harold. Sua
questão é que havia apenas 15 lugares na lista do Times.
— E que tal Jean Auel, finalmente publicando seu próximo épico de
sexo-entre-os-homens-das-cavernas?
Estiquei-me na cadeira.
— Jean Auel? Mesmo?
— Bem... não cem por cento, mas parece certo. E por último, mas
não menos importante, está o novo Mary Higgins Clark. Sei em que quadra
de tênis ela joga, e você também.
Se eu tivesse recebido aquelas notícias há seis ou sete anos, quando
sentia que tinha muito mais a proteger, teria espumado; Mary Higgins Clark
jogava na mesma quadra que eu, partilhava exatamente o mesmo público e
até então nossas épocas de publicação tinham sido organizadas para nos
deixar fora do caminho um do outro... o que era mais para meu benefício do
que para o dela, é preciso que se diga. Taco a taco, ela me ganharia. Como
o falecido Jim Croce observava muito sabiamente, não se puxa a capa do
Super-homem, não se cospe no vento, não se arranca a máscara do Zorro e
não se brinca com Mary Higgins Clark. De qualquer modo, não se você for
Michael Noonan.
— Como é que isso aconteceu? — perguntei.
Não acho que meu tom fosse especialmente agourento, mas Harold
respondeu ao modo tropeçando-nas-próprias-palavras de um homem que
suspeita poder ser despedido ou mesmo decapitado por trazer notícias
ruins.
— Não sei. Ela simplesmente teve uma ideia extra este ano, acho.
Me disseram que isso acontece.
Como um sujeito que tinha recebido sua parte de inspiração dupla, eu
sabia que acontecia; portanto simplesmente perguntei a Harold o que
queria, já que este parecia o modo mais rápido e fácil para fazê-lo largar o
telefone. A resposta não foi nenhuma surpresa; o que tanto ele quanto
Debra queriam — sem mencionar todo o resto dos meus companheiros da
Putnam — era um livro que pudessem publicar no final do verão de 1998,
chegando assim na frente do da srta. Clark e do resto da competição uns
dois meses. Então, em novembro, os representantes de vendas da Putnam
dariam ao romance um saudável segundo empurrão, tendo em vista o Natal.
— Dizem que sim — repliquei. Como a maioria dos romancistas (e a
esse respeito os bem-sucedidos não são diferentes dos que não se saíram
bem, indicando que pode haver algum mérito na ideia assim como a
habitual paranoia comendo solta), nunca confiei em promessas de editores.
— Acho que pode acreditar neles quanto a isso, Mike. O admirador
de Darcy foi o último livro de seu contrato, lembre-se. — Harold parecia
quase jovial ante o pensamento das próximas negociações contratuais com
Debra Weinstock e Phyllis Grann na Putnam. — O importante é que eles
ainda gostam de você. Gostariam mais ainda, acho eu, se vissem páginas
com o seu nome antes do Dia de Ação de Graças.
— Eles querem que eu entregue o próximo livro em novembro? No
mês que vem? — Introduzi em minha frase o que eu pensava ser a nota
certa de incredulidade na voz, exatamente como se eu não tivesse A
promessa de Helen num cofre-forte por quase 11 anos. Fora a primeira noz
que eu guardara; agora era a única que me sobrava.
— Não, não, você ainda tem até 15 de janeiro, pelo menos — disse
ele, tentando parecer magnânimo. Descobri-me cogitando onde ele e Debra
teriam almoçado. Algum lugar aceitável, eu apostaria minha vida. Talvez o
Four Seasons. Johanna costumava chamar aquele lugar de Frankie Valli e as
Four Seasons.
— O que significa que terão que pôr a produção a todo vapor, a todo
vapor mesmo, mas farão isso de bom grado. A verdadeira questão é se
você pode ou não pôr a produção a todo vapor.
— Acho que posso, mas vai custar alguma coisa a eles — disse. —
Diga para pensarem nisso como um serviço de lavagem a seco para o
mesmo dia.
— Ah, que vergonha para eles! — Harold dava a impressão de talvez
estar se masturbando e ter chegado ao ponto em que o velho gêiser
explode e todos disparam suas máquinas fotográficas.
— Quanto você acha...
— Uma taxa adicional sobre o adiantamento provavelmente é o que
se pode fazer — disse. — Eles vão ficar mal-humorados, claro, vão afirmar
que a coisa é do seu interesse também, Mike. Primordialmente até do seu
interesse. Mas baseado no argumento do trabalho extra... o óleo noturno que
você vai ter que queimar...
— A agonia mental da criação... a dor aguda do nascimento
prematuro...
— Certo... certo... Acho que uma taxa adicional de dez por cento
parece o certo. — Ele falava judiciosamente, como um homem tentando ser
simplesmente tão justo quanto possível. Eu próprio estava cogitando
quantas mulheres induziriam o parto um mês ou mais se lhes pagassem
dois ou três mil dólares para isso. Provavelmente é melhor não se fazer
tais perguntas.
E no meu caso, que diferença fazia? A maldita coisa estava escrita,
não estava?
— Bem, veja se você pode fazer o negócio — disse.
— Sim, mas não acho que queremos falar apenas de um único livro
aqui, não é? Acho...
— Harold, o que eu quero neste momento é almoçar.
— Você parece um pouco tenso, Michael. Está tudo...
— Está tudo ótimo. Fale com eles apenas sobre um livro, com um
adoçante para que eu apresse a produção pelo meu lado. Ok?
— Tudo bem — disse ele depois de uma de suas significativas
pausas. — Mas espero que isso não signifique que você não vá alimentar
um contrato de três ou quatro livros mais tarde. Faça feno enquanto o sol brilha, lembre-se. É o lema dos campeões.
— O lema dos campeões é “Atravesse cada ponte quando chegar a ela” — disse, e naquela noite sonhei que ia a Sara Laughs de novo.
Naquele sonho — em todos os sonhos que tive naquele outono e inverno —
estou subindo a pequena estrada para a casa de campo. A estrada é uma
curva de 3 quilômetros pelos bosques com entradas para a rota 68. Há um
número em cada extremidade (estrada 42, se isso interessa) para o caso
de se chamar os bombeiros, mas nenhum nome. Nem Johanna nem eu lhe
demos um, nem mesmo só para ser usado entre nós. É estreita, realmente
apenas uma vala dupla com capim-rabo-de-gato e grama silvestre
crescendo no alto. Quando você dirige por ali, escuta a relva sussurrando
como vozes baixas contra o chassi de seu carro ou caminhão.
Mas eu não dirijo no sonho. Nunca dirigi. Nesses sonhos eu ando.
As árvores se amontoam próximas dos dois lados da pista. O céu
escurecendo por cima é pouco mais que uma fenda. Logo eu poderia ver as
primeiras estrelas espreitando. O pôr do sol já passou. Grilos cricrilam.
Mergulhões-do-norte gritam no lago. Pequenos animais — tâmias,
provavelmente, ou um esquilo ocasional — fazem o bosque farfalhar.
Agora chego a uma entrada de carros de terra que se inclina colina
abaixo à minha direita. É a nossa, identificada por uma pequena tabuleta de
madeira que diz SARA LAUGHS. Permaneço no alto dela, mas não desço.
Abaixo está a casa de campo. É toda de toras e alas acrescentadas, com
um deck destacando-se atrás. No todo, 14 aposentos, um número ridículo
de quartos. Deveria ter uma aparência feia e desajeitada, mas de algum
modo não tem. Há uma qualidade de viúva corajosa em Sara, a aparência de
uma senhora vencendo resolutamente seu centésimo ano, ainda dando
longas passadas apesar de seus quadris artríticos e dos vigorosos joelhos
velhos.
A parte central é a mais velha, datando de 1900 ou coisa assim.
Outras porções foram acrescentadas nos anos 1930, 1940 e 1960. Em certa
época foi um pavilhão de caça; por um breve período no início dos anos
1970, foi o lar de uma pequena comunidade de hippies transcendentais. Tais
ocupações eram decorrentes de arrendamentos ou aluguéis; os proprietários
do final dos anos 1940 até 1984, foram os Hingerman, Darren e Marie...
depois Marie sozinha, quando Darren morreu, em 1971. A única adição
visível de nosso período de propriedade é a minúscula antena parabólica
montada no alto do telhado central. Foi ideia de Johanna, que na verdade
nunca teve a chance de usufruí-la.
Além da casa, o lago cintila no esplendor após o pôr do sol. Vejo que
a entrada de carros está atapetada de agulhas marrons de pinheiro e uma
confusão de ramos caídos. Os arbustos que crescem de seus dois lados
perderam o controle, estendendo-se uns para os outros como amantes pela
estreita brecha que os separa. Se você entrasse ali com um carro, os
galhos arranhariam e guinchariam desagradavelmente nas laterais do
veículo. Abaixo, vejo que há musgo crescendo nas toras da casa principal, e
três grandes girassóis com faces como faróis cresceram através das
tábuas do pequeno alpendre ao lado da entrada de carros. A sensação geral
não é exatamente de negligência, mas de esquecimento.
Há um sopro de brisa, e sua frieza em minha pele me faz perceber
que estou transpirando. Posso sentir o cheiro de pinheiros — um cheiro que
é ao mesmo tempo amargo e limpo — e o débil mas de certo modo terrível
cheiro do lago. O Dark Score é um dos mais limpos e profundos lagos do
Maine. Era maior até o final dos anos 1930, contou-nos Marie Hingerman;
foi nessa época que a Western Maine Electric, trabalhando de mãos dadas
com as fábricas e negócios de papel em torno de Rumford, obteve a
aprovação do estado para represar o rio Gessa. Marie também nos mostrou
umas fotos encantadoras de senhoras com vestidos brancos e cavalheiros
paramentados em canoas — tais instantâneos eram da época da Primeira
Guerra Mundial, disse, e apontou uma das moças, imobilizada para sempre
à beira da Era do Jazz com um remo soerguido e pingando. “É minha mãe”,
disse, “e o homem que ela está ameaçando com o remo é meu pai”.
Mergulhões-do-norte gritavam como se anunciassem privação. Agora
posso enxergar Vênus no céu que escurece. Estrelinha, estrelinha, eu
queria... nesses sonhos sempre peço por Johanna.
Com meu desejo anunciado, tento descer a entrada de carros. Claro
que o faço. É minha casa, não é? Para onde mais iria senão para minha
casa, agora que está ficando escuro e agora que o furtivo farfalhar nos
bosques parece tanto mais próximo quanto mais deliberado? Para que outro
lugar posso ir? Está anoitecendo, e ficará assustador entrar naquele local
escuro sozinho (suponhamos que Sara se ressinta por ter sido deixada
sozinha por tanto tempo, suponhamos que esteja com raiva), mas tenho
que fazê-lo. Se a eletricidade está desligada, acenderei uma das lâmpadas
de furacão que guardamos num armário da cozinha.
Só que não consigo descer. Minhas pernas não se movem. É como se
meu corpo soubesse algo da casa que meu cérebro desconhece. A brisa se
levanta de novo, me arrepiando de frio, e cogito sobre o que andei fazendo
para ficar todo suado assim. Terei corrido? E, nesse caso, corrido para
onde? Ou de onde?
Meu cabelo também está úmido de suor, caído na testa numa massa
desagradavelmente pesada. Levanto a mão para empurrá-lo e vejo que há
um corte raso, bastante recente, percorrendo as costas da mão pouco além
dos nós. Às vezes esse corte está na mão direita, às vezes na esquerda.
Penso: Se isso é um sonho, os detalhes são bons. Sempre aquele mesmo
pensamento: Se isso é um sonho, os detalhes são bons. É a absoluta
verdade. São detalhes de um romancista... mas, nos sonhos, talvez todos
sejam romancistas. Como se vai saber?
Agora Sara Laughs é apenas um volume escuro lá embaixo, e
percebo que de qualquer forma não quero ir até lá. Sou um homem com a
mente treinada para se comportar mal, e posso imaginar coisas demais
esperando por mim do lado de dentro. Um guaxinim raivoso agachado num
canto da cozinha. Morcegos no banheiro — se perturbados, encherão o ar
em volta de meu rosto contraído, guinchando e estapeando minhas
bochechas com suas asas empoeiradas. Até mesmo uma das famosas
Criaturas de Além do Universo de William Denbrough, agora escondida sob o
alpendre e observando minha aproximação com os olhos cintilantes
ladeados de pus.
“Bem, não posso ficar aqui em cima”, digo, mas minhas pernas não
se movem, e parece que ficarei aqui em cima, onde a entrada de carros se
encontra com a estrada; ficarei aqui, goste ou não.
Agora o farfalhar nos bosques atrás de mim já não soa mais como
pequenos animais (a maioria deles já estaria aninhada ou na toca para a
noite, de qualquer modo) e sim como passos que se aproximam. Tento me
virar para olhar, mas não consigo sequer fazer isso...
... e é então que eu geralmente acordava. A primeira coisa que
sempre fazia era me virar, estabelecendo a volta à realidade ao demonstrar
a mim mesmo que meu corpo mais uma vez obedecia à minha mente. Às
vezes — na maioria das vezes, na verdade — eu me descobria pensando:
Manderley, sonhei novamente com Manderley . Havia algo sinistro nisso (há
algo sinistro em qualquer sonho que se repete, acho, em saber que o
subconsciente está cavando obsessivamente algum objeto que não será
desalojado), mas eu estaria mentindo se não acrescentasse que uma parte
de mim usufruía a calma arquejante do verão na qual o sonho sempre me
envolvia, e tal parte usufruía também a tristeza e o presságio que eu sentia
ao acordar. Havia uma estranheza exótica no sonho que faltava à minha
vida desperta, agora que a estrada conduzindo à minha imaginação estava tão eficazmente bloqueada.
A única vez que me lembro de ficar realmente assustado (e preciso
dizer que não confio totalmente em nenhuma dessas lembranças, já que por
tanto tempo elas pareciam não existir) foi quando despertei uma noite
falando claramente na escuridão do meu quarto: “Algo está atrás de mim,
não deixe que ele me pegue, algo nos bosques, por favor, não deixe que ele
me pegue.” O que me assustou não foram tanto as palavras em si, mas o
tom em que foram pronunciadas. Era a voz de um homem à beira do pânico, e quase não parecia minha própria voz.
Dois dias antes do Natal de 1997, mais uma vez fui de carro até o Fidelity
Union, onde mais uma vez o gerente me escoltou até meu cofre nas
catacumbas sob as luzes fluorescentes. Enquanto descíamos a escada, ele
me assegurou (pela décima vez, pelo menos) que sua mulher era uma
grande fã de meu trabalho, que leu todos os meus livros, que nunca eram
demais para ela. Pela décima vez (pelo menos) respondi que agora eu
precisava fisgá-lo. Ele reagiu com sua risadinha habitual. Eu pensava nessa
troca frequentemente repetida como a Comunhão do Bancário.
O sr. Quinlan introduziu sua chave na Fenda A e virou-a. Depois, tão
discretamente como um cafetão que levou um cliente a um prostíbulo, foi
embora. Inseri minha própria chave na Fenda B, virei-a e abri a gaveta. Ela
parecia muito ampla agora. A única caixa de manuscrito remanescente
parecia quase acovardada no canto oposto, como um filhote abandonado que
de algum modo sabe que seus irmãos foram retirados para a câmara de
gás. Promessa, estava rabiscado no alto em grossas letras pretas. Mal
podia lembrar como era a maldita história.
Arrebatei o viajante do tempo dos anos 1980 e bati a porta do cofre,
fechando-o. Nada fora deixado ali agora a não ser poeira. Me dá isso, Jo
silvou no meu sonho — era a primeira vez que eu pensava naquilo em anos.
Me dá isso, é o meu pega-poeira.
— Sr. Quinlan, já acabei — chamei. Minha voz soou áspera e pouco
firme aos meus próprios ouvidos, mas Quinlan não pareceu notar nada de
errado... ou talvez estivesse sendo discreto. Afinal, não posso ter sido o
único cliente a achar emocionalmente aflitivas as visitas a essa versão
financeira de cemitério.
— Eu de fato vou ler um de seus livros — disse ele, dando uma
olhada involuntária para a caixa que eu segurava (acho que poderia ter
trazido uma pasta para guardá-la, mas eu jamais o fazia naquelas
expedições). — Na verdade, acho que vou colocar isso na minha lista de
resoluções do ano-novo.
— Faça isso — disse. — Faça isso, sr. Quinlan.
— Mark — ele disse. — Por favor. — Ele já disse isso antes,
também.
Eu escrevi duas cartas, que enfiei dentro da caixa do manuscrito
antes de sair para o FedEx. Ambas haviam sido escritas no meu
computador, que meu corpo permitia que eu usasse se eu escolhesse a
função Bloco de Notas. Era apenas abrindo o Word que iniciava as
tempestades. Nunca tentei escrever um romance usando a função Bloco de
Notas, compreendendo que, se o fizesse, provavelmente perderia essa
opção também... sem mencionar minha capacidade de jogar e fazer
palavras cruzadas na máquina. Havia tentado escrever à mão umas duas
vezes, com uma falta de sucesso espetacular. O problema não era o que
tinha ouvido certa vez ser descrito como “timidez da tela”; eu provei isso a
mim mesmo.
Um dos bilhetes era para Harold, outro para Debra Weinstock, e
ambos diziam praticamente a mesma coisa: aqui está o novo livro, A
promessa de Helen, espero que gostem dele tanto quanto eu; se ele parece
um tanto irregular é porque tive que trabalhar muitas horas extras para
terminá-lo tão rápido, Feliz Natal, Feliz Hanukkah, Viva a Irlanda, doce ou
travessura, espero que alguém lhe dê um maldito pônei.
Fiquei quase uma hora numa fila de remetentes atrasados, de
olhares amargos e andar vagaroso (o Natal é uma época tão despreocupada
e sem pressões — isso é uma das coisas que adoro nele), com A promessa
de Helen sob o braço esquerdo e uma edição popular de A escola de
charme, de Nelson DeMille, na mão direita. Li quase cinquenta páginas antes de confiar meu recente romance inédito à atendente de ar estressado.
Quando lhe desejei Feliz Natal, ela estremeceu e não disse nada.
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