farmácia Rite Aid, de Derry, para comprar o refil do remédio receitado para
sua sinusite — é uma coisa que se pode comprar no balcão atualmente,
penso eu. Como já tinha parado de escrever naquele dia, eu me ofereci para
buscar o remédio. Ela agradeceu, mas, como também queria comprar peixe
no supermercado ao lado, seriam dois coelhos com uma cajadada só.
Soprou-me um beijo que havia depositado na palma da mão e saiu. Quando
a vi novamente foi na TV. É assim que identificamos os mortos aqui em
Derry — nada de caminhar por um corredor subterrâneo com azulejos
verdes nas paredes e compridas lâmpadas fluorescentes lá em cima, nada
de um corpo nu deslizando sobre rolamentos para fora de uma gaveta fria; simplesmente se entra numa sala com a placa PRIVATIVO, olha-se numa
tela de TV e se diz sim ou não.
A Rite Aid e o Shopwell ficam a menos de 1,5 quilômetro da nossa
casa, num pequeno centro comercial onde há também uma locadora, um
sebo chamado Spread It Around (eles negociam rapidamente velhas edições
em brochura dos meus livros), uma Radio Shack e uma Fast Foto. Fica na
Up-Mile Hill, no cruzamento da Witcham com a Jackson.
Ela estacionou em frente à Blockbuster, entrou na farmácia e foi
atendida por Joe Wyzer, o farmacêutico naquela época; desde então ele se
mudou para a Rite Aid de Bangor. No caixa, ela pegou um daqueles
pequenos chocolates recheados de marshmallow, com o formato de um
ratinho. Encontrei-o depois em sua bolsa. Eu mesmo o desembrulhei e o
comi, sentado à mesa da cozinha, com o conteúdo de sua bolsa vermelha
espalhado na minha frente. Foi como receber a comunhão. Quando a
sensação desapareceu, exceto pelo gosto do chocolate na minha língua e na
minha garganta, irrompi em lágrimas. Fiquei ali ante a confusão de Kleenex,
maquiagem, chaves e uma embalagem meio vazia de Certs, e chorei com
as mãos sobre os olhos, como uma criança.
O inalador para sinusite estava na sacola da Rite Aid. Tinha custado
12,18 dólares. Havia algo mais na sacola — um item que custou 22,50
dólares. Eu o olhei por muito tempo, vendo-o mas sem entendê-lo. Fiquei
surpreso e talvez até atordoado, mas a ideia de que Johanna Arlen Noonan
pudesse estar levando outra vida, uma da qual eu não tinha qualquer
conhecimento, jamais me ocorreu. Não naquela época.
Jo passou pelo caixa e saiu novamente para o sol radiante e escaldante,
trocando os óculos por outros, de sol mas também de grau. Exatamente
quando deixava a proteção da pequena marquise da farmácia (acho que aqui
estou imaginando, invadindo um pouco o campo do romancista, mas não
muito; apenas alguns centímetros, pode acreditar nisso), houve aquele
detestável ruído de carro cantando pneu, significando que aconteceria um
acidente ou algo muito próximo disso.
Dessa vez aconteceu — o tipo de acidente que parecia ocorrer
naquele estúpido cruzamento em forma de X pelo menos uma vez por
semana. Um Toyota 1989 deixava o estacionamento do shopping e virava à
esquerda para a rua Jackson. Ao volante estava a sra. Esther Easterling, de
Barrett’s Orchards, acompanhada por sua amiga, a sra. Irene Deorsey,
também de Barrett’s Orchards, que tinha passado pela videolocadora sem
encontrar nada que quisesse alugar. Violência demais, disse Irene. Ambas
eram viúvas de fumantes.
Dificilmente Esther não teria visto o caminhão basculante de obras
públicas cor de laranja descendo a ladeira; embora o negasse à polícia, ao
jornal e a mim; quando conversamos, uns dois meses depois, achei mais
provável que tenha apenas esquecido de olhar. Como minha própria mãe
(outra viúva de fumante) costumava dizer: “As duas doenças mais comuns
nos idosos são artrite e esquecimento. E eles não podem ser
responsabilizados nem por uma nem por outra.”
Dirigindo o caminhão de obras públicas estava William Fraker, de Old
Cape. O sr. Fraker tinha 38 anos no dia da morte de minha esposa, dirigia
sem camisa e pensava no quanto precisava de uma chuveirada fria e de
uma cerveja gelada, não necessariamente nessa ordem. Ele e outros três
homens passaram oito horas despejando asfalto para emendar a extensão
da avenida Harris, perto do aeroporto. Um trabalho quente num dia quente,
e Bill Fraker disse que sim, podia estar indo um pouco rápido demais —
talvez a 60 quilômetros por hora numa zona de 50. Ansiava por chegar à
garagem, entregar o caminhão e voltar ao volante de sua própria F-150 com
ar-condicionado. Além disso, os freios do caminhão, apesar de bons o
bastante para passar pela inspeção, estavam longe de sua melhor forma.
Fraker pisou neles assim que viu o Toyota atravessar à sua frente (apertou
a buzina também), mas foi tarde demais. Ouviu os pneus guincharem — os
seus e os de Esther, enquanto ela percebia tardiamente o perigo — e viu o
rosto dela por apenas um instante.
— De certo modo aquilo foi o pior — disse-me ele quando estávamos
sentados em sua varanda, tomando cerveja. Era outubro então, e embora o
sol quente se derramasse em nossos rostos, usávamos suéteres. — O
senhor sabe a que altura a gente fica nesses caminhões basculantes?
Assenti com a cabeça.
— Bom, ela estava olhando para cima para me ver — esticando o
pescoço, como se pode dizer — e o sol batia em cheio em seu rosto. Notei
como era velha. Lembro-me de pensar: “Puta que pariu, ela vai se quebrar
como vidro se eu não conseguir parar.” Mas os velhos geralmente são
duros, na maioria dos casos. Podem nos surpreender. Quer dizer, olhe só o
resultado, as duas velhotas ainda estão vivas, e sua esposa...
Então parou de falar, o rosto invadido por um vermelho vivo que o
fazia parecer um garoto de quem as garotas tivessem rido no pátio do
colégio por notarem que sua braguilha estava aberta. Era cômico, mas, se
eu sorrisse, apenas o deixaria confuso.
— Sr. Noonan, desculpe. Minha língua foi mais rápida do que eu.
— Tudo bem — respondi. — O pior já passou, de qualquer modo. —
Era uma mentira, mas nos colocou nos trilhos novamente.
— Seja como for — disse ele —, batemos. Houve um barulho alto e
um som de alguma coisa sendo triturada quando a lateral do carro, do lado
do motorista, afundou. E de vidro quebrado também. Fui jogado contra o
volante com tanta força que não consegui respirar sem dor por uma
semana ou mais, e fiquei com um grande hematoma bem aqui. — Ele
desenhou um arco no peito logo abaixo das clavículas. — Bati a cabeça no
para-brisa com força suficiente para quebrar o vidro, mas só arranjei um
pequeno calombo roxo... nenhum sangramento nem dor de cabeça. Minha
esposa diz que tenho uma cabeça dura de verdade. Vi quando a mulher
dirigindo o Toyota, sra. Easterling, foi atirada por sobre o console entre os
bancos da frente. Então, finalmente, paramos, emaranhados no meio da rua,
e saí para ver o quanto tinham se machucado. Vou te dizer, achei que ia
encontrá-las mortas.
Nenhuma das duas estava morta, nenhuma das duas estava sequer
inconsciente, embora a sra. Easterling tivesse quebrado três costelas e
deslocado o quadril. A sra. Deorsey, que estava a um banco de distância do
impacto, sofreu uma concussão ao bater a cabeça na janela. Isso foi tudo;
ela foi “atendida no Home Hospital e liberada logo em seguida”, como o
Derry News sempre dizia nesses casos.
Minha esposa, quando solteira Johanna Arlen de Malden, de
Massachusetts, viu tudo aquilo de onde estava, do lado de fora da farmácia,
com a bolsa pendurada no ombro e a sacola com o remédio numa das
mãos. Como Bill Fraker, deve ter pensado que as ocupantes do Toyota
estavam mortas ou seriamente feridas. O som da colisão, um estrondo oco
e categórico, rolou pelo ar quente da tarde como uma bola de boliche pela
raia. O ruído de vidro quebrando o acompanhou como se fossem gumes
irregulares se chocando. Os dois veículos ficaram violentamente
entrelaçados no meio da rua Jackson, o caminhão cor de laranja, sujo,
pairava sobre o carro importado azul-claro como um pai intimidador sobre
uma criança encolhida.
Johanna disparou pelo estacionamento em direção à rua. À sua volta,
outros faziam o mesmo. Uma delas, a srta. Jill Dunbarry, olhava a vitrine
na Radio Shack quando o acidente ocorreu. Disse que acreditava lembrar-se
de passar correndo por Johanna — pelo menos estava bastante segura de
se lembrar de alguém com calças largas amarelas —, mas não podia ter
certeza. Naquele momento, a sra. Easterling gritava que estava ferida, as
duas estavam feridas, ninguém a ajudaria e a sua amiga Irene?
A meio caminho do estacionamento, perto do pequeno quiosque de
jornais, minha mulher caiu. A bolsa permanecia em seu ombro, mas a
sacola de remédio tinha escorregado de sua mão e o inalador ficou um
pouco para fora. O outro artigo ficou no lugar.
Ninguém a notou deitada ali, junto ao quiosque de jornais; todos
focalizavam os veículos emaranhados, as mulheres gritando, a poça de água
e anticongelante do radiador quebrado do caminhão de obras públicas que se
espalhava. (“É gasolina!”, gritou o balconista da Fast Foto para quem
quisesse ouvir. “É gasolina, cuidado para ela não explodir, pessoal!”)
Imagino que um ou dois dos supostos salvadores possam ter pulado por
cima dela, talvez achando que tivesse desmaiado. Tal raciocínio num dia
em que a temperatura chegava a 35 graus não seria de espantar.
Mais ou menos duas dúzias de pessoas do shopping se aglomeraram
em torno do acidente; outras cinquenta ou mais saíram correndo do
Strawford Park, onde acontecia um jogo de beisebol. Imagino que muitas
coisas que se espera ouvir em tais situações foram ditas, algumas mais de
uma vez. Numa confusão. Alguém estendendo a mão pelo buraco disforme
que tinha sido a janela do lado do motorista para dar um tapinha
tranquilizador na velha mão trêmula de Esther. Pessoas imediatamente
abrindo caminho para Joe Wyzer; em tais momentos, qualquer um que use
um jaleco branco automaticamente se torna a bela do baile. A distância, o
som de uma sirene de ambulância erguendo-se como ar rarefeito sobre um
incinerador.
Durante todo esse tempo, minha mulher estava no estacionamento,
caída e despercebida, com a bolsa ainda pendurada no ombro (dentro dela,
ainda embrulhado no papel laminado, o ratinho de chocolate recheado com
marshmallow que não foi comido) e a sacola branca de remédio perto da
mão estendida. Foi Joe Wyzer, ao voltar correndo à farmácia a fim de pegar
uma compressa para a cabeça de Irene Deorsey, que a enxergou.
Reconheceu-a, embora ela estivesse com o rosto para baixo. Reconheceu-a
pelo cabelo ruivo, a blusa branca e a calça larga amarela. Reconheceu-a
porque a atendera havia menos de 15 minutos.
— Sra. Noonan? — disse ele, esquecendo-se completamente da
compressa para a desnorteada, mas aparentemente não muito machucada,
Irene Deorsey. — Sra. Noonan, a senhora está bem? — Já sabendo que não
estava (ou assim suspeito; talvez eu esteja errado).
Então ele a virou. Teve que usar as duas mãos para fazê-lo, e
mesmo assim foi obrigado a se esforçar, ajoelhando-se, empurrando-a e
erguendo-a ali no estacionamento, com o calor impiedoso vindo de cima e
emanando também do asfalto. Os mortos engordam, me parece; tanto na
carne quanto na mente, ficam mais pesados.
Havia marcas vermelhas no rosto de Jo. Quando a identifiquei, pude
vê-las nitidamente mesmo no monitor do vídeo. Comecei a perguntar ao
médico-legista assistente o que eram, mas soube logo. Final de julho, chão
quente — elementar, meu caro Watson. Minha mulher morreu pegando um
bronzeado.
Wyzer se levantou, viu que a ambulância tinha chegado e correu em
sua direção. Abriu caminho pela multidão e agarrou um dos atendentes
quando este deixou o volante.
— Tem uma mulher ali — disse Wyzer, apontando para o
estacionamento.
— Cara, temos duas mulheres lá e um homem também — disse o
atendente. Ele tentou se soltar e ir embora, mas Wyzer insistiu.
— Eles não importam agora — disse. — De modo geral estão bem.
Aquela mulher ali não está.
A mulher ali estava morta, e tenho quase certeza de que Joe Wyzer
sabia disso... mas tinha que obedecer às suas prioridades. Vamos lhe
conceder o mérito. E foi convincente o bastante para que dois paramédicos
se afastassem da confusão do caminhão com o Toyota, apesar dos gritos
de dor de Esther Easterling e do coro de rumores de protesto.
Quando chegou até minha esposa, um dos paramédicos confirmou
rapidamente o que Joe Wyzer já suspeitava.
— Puta que pariu — disse o outro. — O que aconteceu com ela?
— Provavelmente coração — disse o primeiro. — Ficou agitada e ele
simplesmente explodiu.
Mas não foi o coração. A autópsia revelou um aneurisma cerebral
com o qual poderia estar vivendo sem saber havia cinco anos. Quando
disparou pelo estacionamento em direção ao acidente, aquele vaso frágil em
seu córtex cerebral estourou como um pneu, afogando de sangue seus
centros de controle e matando-a. A morte provavelmente não foi
instantânea, disse-me o legista assistente, mas mesmo assim ocorreu de
forma bastante rápida... e ela não teria sofrido. Apenas uma névoa grande e
negra, e toda sensação e todo pensamento desapareceram antes de ela
atingir o chão.
— Posso ajudá-lo de alguma forma, sr. Noonan? — perguntou o
legista assistente, afastando-me suavemente do rosto imóvel e dos olhos
fechados no monitor de vídeo.
— O senhor quer fazer perguntas? Eu responderei se puder.
— Só uma — disse. E lhe contei o que ela tinha comprado na
farmácia pouco antes de morrer. Então fiz minha pergunta.
Os dias que levaram ao funeral e o próprio funeral são como um sonho em
minha memória — a lembrança mais clara que tenho é de comer o ratinho
de chocolate de Jo e chorar... chorar principalmente, eu acho, porque sabia
que o sabor dele logo desapareceria. Tive outra crise de choro alguns dias
depois que a enterramos, e vou falar resumidamente sobre isso.
Eu estava contente com a chegada da família de Jo, especialmente
com a de seu irmão mais velho, Frank. Foi Frank Arlen — de 50 anos,
bochechas vermelhas, corpulento e com um viçoso cabelo escuro — quem
tomou as providências... quem, na realidade, acabou pechinchando com o
agente funerário.
— Não posso acreditar que tenha feito isso — eu disse depois,
enquanto sentávamos num reservado do Jack’s Pub, tomando cerveja.
— Ele estava tentando tirar vantagem de você, Mikey — disse ele. —
Detesto sujeitos assim. — Colocou a mão no bolso de trás, puxou um lenço
e, distraído, enxugou o rosto. Ele não desmoronou — nenhum dos Arlen
desmoronou, pelo menos não quando eu estava com eles —, mas chorou o
dia inteiro; parecia alguém com uma forte conjuntivite.
No total eram seis irmãos Arlen; Jo era a mais nova e a única
mulher, a queridinha dos irmãos mais velhos. Suspeito que se eu tivesse
tido algo a ver com a morte dela os cinco teriam me dilacerado com as
próprias mãos. Naquela situação, em vez disso, formaram um escudo
protetor à minha volta, e foi bom. Acho que eu poderia ter me virado com
tudo aquilo sem eles, mas não sei como. Eu tinha 36 anos, lembre-se. Não
se espera ter que enterrar a esposa quando se tem 36 anos e ela é apenas
dois anos mais nova. Morte é a última coisa que passa pela nossa cabeça.
— Se um cara é flagrado tirando o rádio do seu carro, chamam isso
de roubo e o põem na cadeia — disse Frank. Os Arlen tinham vindo de
Massachusetts, e eu ainda podia ouvir o sotaque de Malden na voz de
Frank: carro era caárr, chamam era chaáma. — Se o mesmo cara está
tentando vender um caixão de 3 mil dólares por 4.500 para um marido
sofrendo, chamam isso de negócio e pedem ao cara para falar no almoço
do Rotary Club. Babaca ganancioso, dei a ele o que merecia, não é?
— É. Deu, sim.
— Você está bem, Mikey?
— Estou.
— Bem mesmo?
— Que merda, como é que vou saber? — eu disse, num tom alto o
suficiente para que algumas cabeças do reservado ao lado se virassem para
nós. — Ela estava grávida.
Seu rosto ficou imóvel.
— O quê?
Lutei para manter minha voz baixa.
— Grávida. Seis ou sete semanas, segundo o... você sabe, a autópsia.
Você sabia? Ela te contou?
— Não! Deus do céu, não! — Mas havia uma expressão engraçada
em seu rosto, como se Jo lhe tivesse contado algo. — Sabia que estavam
tentando, claro... ela me disse que sua contagem de espermatozoide era
baixa e que poderia levar algum tempo, mas o médico achava que vocês
provavelmente... mais cedo ou mais tarde provavelmente... — Diminuiu de
intensidade, olhando para as mãos. — Eles podem saber isso, hein? Checam
isso?
— Podem saber. Quanto a checar, não sei se fazem isso
automaticamente. Eu pedi.
— Por quê?
— Ela não comprou apenas remédio de nariz antes de morrer.
Comprou também um daqueles kits para teste de gravidez em casa.
— Você não tinha nenhuma ideia? Nenhuma pista?
Balancei a cabeça.
Ele estendeu a mão por cima da mesa e apertou meu ombro.
— Ela queria ter certeza, só isso. Você sabe, não é?
Comprar o refil do remédio para sinusite e peixe, disse ela. Com a
aparência de sempre. Uma mulher que sai para fazer duas coisas.
Tentávamos ter um filho havia oito anos, mas ela estava com a aparência
de sempre.
— Claro — disse, dando um tapinha na mão de Frank. — Claro,
rapaz. Eu sei.
Foram os Arlen — liderados por Frank — que organizaram o velório de
Johanna. Como escritor da família, eu estava encarregado do obituário. Meu
irmão veio da Virgínia com minha mãe e minha tia, e permitiram que
tomasse conta do livro de convidados no velório. Quase completamente
gagá aos 66 anos, embora os médicos se recusassem a admitir que ela
estava com Alzheimer, minha mãe morava em Memphis com a irmã dois
anos mais jovem que ela e apenas ligeiramente menos vacilante. Foram
encarregadas de cortar o bolo e as tortas na recepção do funeral.
Todo o resto foi organizado pelos Arlen, das horas de velório aos
componentes da cerimônia do funeral. Frank e Victor, o segundo irmão mais
novo, fizeram uma breve homenagem. O pai de Jo ofereceu uma prece pela
alma da filha. E, no final, Pete Breedlove, o garoto que cortava nossa grama
no verão e varria o pátio no outono, levou todos às lágrimas cantando
“Blessed Assurance”, que Frank disse ter sido o hino favorito de Jo quando
menina. Como Frank encontrou Pete e o persuadiu a cantar no funeral é
algo que jamais descobri.
Atravessamos aquilo tudo — o velório da tarde e da noite de terça, o
funeral da manhã de quarta, depois a oração no cemitério de Fairlawn.
Lembro-me de pensar, sobretudo, em como estava quente, como me sentia
perdido sem ter Jo para conversar, e em como gostaria de ter comprado
um novo par de sapatos. Se estivesse ali, Jo teria me atormentado
mortalmente sobre os que eu estava usando.
Mais tarde, conversei com meu irmão Sid e lhe disse que tínhamos
que fazer algo a respeito de mamãe e de tia Francine antes que as duas
desaparecessem completamente na zona do crepúsculo. Eram jovens
demais para uma casa de repouso. O que é que Sid aconselhava?
Sid recomendou algo, mas não faço ideia do que foi. Lembro que
concordei, mas não sei com o quê. Mais tarde naquele dia, Siddy, minha
mãe e tia Francine entraram novamente no banco de trás do carro que meu
irmão alugou para a viagem até Boston, onde passariam a noite e então
pegariam o trem da Southern Crescent no dia seguinte. Meu irmão fica
bastante feliz de acompanhar as velhinhas, mas não anda de avião, mesmo
que eu pague as passagens. Alega que, se o motor quebrar, não há
acostamentos no céu.
A maioria dos Arlen partiu no dia seguinte. Mais uma vez estava um
calor infernal, o sol ofuscante vindo de um céu branco e opaco acachapava
tudo como bronze derretido. Ficaram de pé em frente à nossa casa — que
se tornara apenas minha então —, com três táxis alinhados junto ao meiofio
por trás deles, grandes e desajeitados, abraçando-se entre si em meio à
confusão de sacolas e despedindo-se naquele nebuloso sotaque de
Massachusetts.
Frank ficou mais um dia. Colhemos um grande ramo de flores atrás
da casa — não aquelas coisas de estufa de cheiro medonho cujo perfume
sempre associo à morte e música de órgão, e sim flores verdadeiras, do
tipo que Jo mais gostava — e as colocamos em duas latas vazias de café
que encontrei na despensa dos fundos. Fomos para Fairlawn e as colocamos
no túmulo novo. Depois simplesmente ficamos ali por um tempo, sob o sol
escaldante.
— Jo sempre foi a coisa mais doce da minha vida — disse Frank
finalmente, numa estranha voz abafada. — Nós tomávamos conta dela
quando éramos garotos. Nós, rapazes. Ninguém se metia com ela, posso te
dizer. Qualquer um que tentasse tinha o que merecia.
— Ela me contou várias histórias.
— Boas?
— É, boas mesmo.
— Vou sentir demais a falta dela.
— Eu também — falei. — Frank... escute... sei que você era seu
irmão favorito. Ela nunca ligou para você, talvez para dizer que não ficou
menstruada naquele mês, ou que se sentia enjoada pela manhã? Pode dizer.
Não vou ficar chateado.
— Mas ela não ligou. Palavra de honra. Ela estava enjoada de manhã?
— Não que eu tivesse notado. — E era isso mesmo. Eu não notei
nada. Claro que eu estava escrevendo, e quando escrevo praticamente entro
em transe. Mas ela sabia quando eu estava num desses transes. Poderia ter ido ao meu encontro e me sacudido até eu acordar.
Por que não o fez? Por
que esconderia a boa notícia? Não querer me contar até ter certeza era
plausível... mas, de certo modo, não parecia com Jo.
— Era menino ou menina? — perguntou ele.
— Menina.
Havíamos escolhido os nomes e esperado durante a maior parte de
nosso casamento. Um menino seria Andrew. Nossa filha seria Kia. Kia Jane
Noonan.
Frank, divorciado havia seis anos e sozinho, ficou comigo. Ao voltarmos
para casa, ele disse:
— Eu me preocupo com você, Mikey. Você não tem uma família em
que se apoiar numa hora dessas, e a que tem está distante.
— Vou ficar bem.
Ele concordou com a cabeça.
— É isso que nós dizemos, de qualquer modo, não é?
— Nós?
— Homens. “Vou ficar bem.” E quando não ficamos, tentamos fazer
com que ninguém saiba. — Ele olhou para mim, os olhos ainda marejados, o
lenço na mão grande e bronzeada. — Se você não ficar bem, Mikey, e não
quiser chamar seu irmão, vi a maneira como você olhou para ele, me deixe
ser seu irmão. Se não por sua causa, pelo menos por Jo.
— Tudo bem — eu disse, respeitando o oferecimento e grato por ele,
sabendo também que não faria tal coisa. Não peço ajuda às pessoas. Não é
pelo modo como fui criado, pelo menos acho que não; é pelo modo como
fui feito. Johanna disse certa vez que se eu estivesse me afogando em
Dark Score Lake, onde temos uma casa de veraneio, eu ia preferir morrer
silenciosamente a 15 metros da praia pública do que gritar por socorro. Não
é uma questão de amor ou afeição. Consigo dar os dois e também recebêlos.
Sinto dor, como qualquer outra pessoa. Preciso tocar e ser tocado. Mas,
se alguém me pergunta “Você está bem?”, não consigo dizer não. Não
consigo dizer “ajude-me”.
Umas duas horas depois Frank partiu para o extremo sul do estado.
Quando abriu a porta do carro, fiquei comovido de ver que a gravação que
ouvia era de um dos meus livros. Ele me abraçou, depois me surpreendeu
com um beijo na boca, um duro beijo estalado.
— Se precisar conversar, ligue — disse ele. — E se precisar estar
com alguém, simplesmente venha.
Concordei com a cabeça.
— E tenha cuidado.
Aquilo me espantou. A combinação de calor e dor tinha me feito
sentir como se estivesse vivendo num sonho nos últimos dias, mas aquilo
conseguiu penetrar.
— Cuidado com quê?
— Não sei — disse ele. — Não sei, Mikey. — Então entrou no carro,
ele era tão grande e o carro tão pequeno que parecia vesti-lo, e foi embora.
O sol estava se pondo. Sabe quando o sol fica no final de um dia quente de
agosto, todo laranja e de algum modo achatado, como se uma mão invisível
o apertasse de cima para baixo e a qualquer momento ele pudesse estourar
como um mosquito superalimentado e se espalhar por todo o horizonte?
Estava assim. No leste, já escuro, trovões ribombavam. Mas não houve
chuva naquela noite, apenas uma escuridão que desceu tão espessa e
sufocante como um cobertor. Mesmo assim, me instalei em frente ao
processador de texto e escrevi por mais ou menos uma hora. Estava tudo
muito bem, eu me lembro. E mesmo quando não está bem, você sabe,
ajuda a passar o tempo.
Minha segunda crise de choro surgiu três ou quatro dias depois do funeral.
Aquela sensação de estar num sonho continuava — eu andava, falava,
atendia ao telefone, trabalhava em meu livro, que estava cerca de oitenta
por cento concluído quando Jo morreu —, mas durante todo o tempo tinha a
clara sensação de desconexão, uma sensação de que tudo estava ocorrendo
a uma distância do meu verdadeiro eu, que eu estava mais ou menos me
comunicando com ele por telefone.
Denise Breedlove, mãe de Peter, ligou e perguntou se eu não gostaria
que ela trouxesse duas amigas num dia da semana seguinte e que fizesse
com elas uma boa faxina na grande e velha construção eduardiana, onde
agora eu morava sozinho — rolando nela como a última ervilha numa lata
gigante. Elas o fariam até por cem dólares divididos entre as três, disse, e
principalmente porque não era bom para mim ficar sem a faxina. Depois de
uma morte tem que haver uma limpeza, disse, mesmo que a morte não
tenha acontecido na casa.
Respondi que era uma ótima ideia, mas que pagaria cem dólares
para cada uma por seis horas de trabalho. No final de seis horas, queria o
trabalho feito. E se não estivesse, eu disse, de qualquer maneira estaria
feito.
— Sr. Noonan, é dinheiro demais — disse ela.
— Talvez sim, talvez não, mas é o que estou pagando. A senhora faz
o trabalho?
Ela disse que sim, é claro que faria.
Talvez previsivelmente, eu me vi percorrendo a casa na noite antes
de elas chegarem, fazendo uma inspeção pré-faxina. Acho que não queria as
mulheres (duas das quais totalmente desconhecidas para mim) encontrando
algo que me deixasse constrangido, ou a elas: talvez calcinhas de seda de
Johanna atrás das almofadas do sofá (“Nós geralmente acabamos no sofá,
Michael”, disse ela uma vez, “já reparou?”.), ou latas de cerveja sob a
poltrona para duas pessoas no solário, talvez até um vaso sanitário sem a
descarga apertada. Na verdade, não posso lhe dizer exatamente o que
estava procurando; a sensação de funcionar num sonho ainda mantinha um
firme controle de minha mente. Os pensamentos mais claros que tive
naqueles dias eram sobre o final do romance que estava escrevendo (o
assassino psicótico tinha atraído a heroína para um edifício alto e pretendia
empurrá-la do telhado) ou sobre o teste de gravidez que Jo tinha comprado
no dia em que morreu. Receita para remédio de nariz, disse ela. Peixe para
o jantar. E seus olhos não haviam mostrado nenhuma outra coisa que eu precisasse olhar duas vezes.
Perto do fim de minha “pré-faxina”, olhei debaixo de nossa cama e vi um
livro aberto no lado de Jo. Não fazia muito tempo que ela tinha morrido,
mas poucos territórios domésticos são tão empoeirados quanto o Reino
Debaixo da Cama, e a leve cobertura cinzenta que vi no livro quando o puxei
me fez pensar no rosto e nas mãos de Johanna no caixão — Jo no Reino
Subterrâneo. Ela foi parar dentro de um caixão empoeirado? Certamente não, mas...
Expulsei o pensamento. Ele fingiu sumir, mas durante o dia inteiro
continuou rastejando de volta, como o urso branco de Tolstoi.
Johanna e eu nos especializamos em inglês na Universidade do Maine
e, como muitos outros, suponho, nos apaixonamos ao som de Shakespeare
e do cinismo de Tilbury Town, de Edwin Arlington Robinson. Entretanto, o
escritor que mais nos uniu não foi um poeta ou ensaísta benquisto pelas
faculdades, e sim W. Somerset Maugham, o idoso romancista-dramaturgoviajante
com rosto de réptil (aparentemente sempre obscurecido pela
fumaça do cigarro nas fotos) e coração de romântico. Portanto, não me
surpreendeu muito descobrir que o livro sob a cama fosse Um gosto e seis
vinténs. Eu o li duas vezes no final da adolescência, identificando-me
apaixonadamente com o personagem Charles Strickland. (O que eu queria
fazer nos Mares do Sul era escrever, claro, não pintar.)
Jo vinha utilizando uma carta de algum baralho fora de uso como
marcador e, ao abrir o livro, pensei em algo que ela disse quando ainda nos
conhecíamos pouco. Foi em Literatura Britânica do século XX,
provavelmente em 1980. Johanna Arlen, uma impetuosa estudante de
seguno ano, e eu, um veterano na universidade, escolhendo os britânicos do
século XX simplesmente porque tínhamos tempo sobrando naquele
semestre. “Daqui a cem anos”, disse ela, “a vergonha dos críticos literários
de meados do século XX será a de terem abraçado Lawrence e ignorado
Maugham”. Isso foi saudado com risos desdenhosamente joviais (todos
sabiam que Mulheres apaixonadas, droga, tinha sido um dos maiores livros
já escritos), mas eu não ri. Eu me apaixonei.
A carta do baralho marcava as páginas 102 e 103 — Dirk Stroeve
tinha acabado de descobrir que a esposa o abandonou por Strickland, a
versão de Maugham para Paul Gauguin. O narrador tenta encorajar Stroeve.
Meu caro rapaz, não fique infeliz. Ela vai voltar...
— Para você, é fácil dizer isso — murmurei para o quarto que agora
só pertencia a mim.
Virei a página e li: A calma injuriosa de Strickland despojou Stroeve
de seu autocontrole. Uma fúria cega o dominou e, sem saber o que fazia,
atirou-se sobre Strickland. Tomado de surpresa, Strickland cambaleou, mas
era muito forte, mesmo depois de sua doença, e num instante, sem saber
exatamente como, Stroeve se viu no chão.
— Homenzinho engraçado — disse Strickland.
Ocorreu-me que Jo nunca viraria a página e ouviria Strickland chamar
o patético Stroeve de homenzinho engraçado. Num momento de brilhante
epifania que jamais esqueci — como poderia?, foi um dos piores momentos
de minha vida —, compreendi que aquilo não era um equívoco a ser
corrigido, ou um sonho do qual eu acordaria. Johanna tinha morrido.
Minha força foi engolida pela dor. Se a cama não estivesse ali, eu
teria caído no chão. Choramos pelos olhos, é tudo que podemos fazer, mas
naquela noite senti como se cada poro de meu corpo estivesse chorando,
cada fresta e cada fenda. Fiquei ali no lado dela da cama, com seu
empoeirado Um gosto e seis vinténs na mão, e gritei de dor. Acho que era
tanto de dor quanto de surpresa; apesar do cadáver que vi e identifiquei
num monitor de vídeo de alta resolução, apesar do velório e de Pete
Breedlove cantando “Blessed Assurance” com a voz aguda e doce de tenor,
apesar do funeral com cinzas às cinzas e pó ao pó, eu na realidade não
tinha acreditado naquilo. O livro de bolso da Penguin fez por mim o que o
grande caixão cinza não tinha feito: insistiu que ela estava morta.
— Homenzinho engraçado — disse Strickland.
Deitado de costas em nossa cama, cruzei os braços sobre o rosto e
chorei até dormir, do jeito que as crianças fazem quando estão infelizes.
Tive um sonho horrível. Nele eu acordava, via o livro ainda sobre a colcha e
decidia colocá-lo de volta debaixo da cama, onde o encontrei. Sabemos
como sonhos são confusos — lógicos como os relógios de Dalí, tão macios
que se estendem sobre os ramos de árvores como pequenos tapetes.
Eu colocava a carta de baralho novamente entre as páginas 102 e
103 — a um movimento do dedo indicador de Homenzinho engraçado, disse
Strickland agora e sempre — e rolava para o meu lado, inclinando a cabeça
sobre a beira da cama, pretendendo colocar o livro exatamente onde o tinha
encontrado.
Jo estava deitada lá entre as bolinhas de poeira. Um fiapo de teia de
aranha pendia do fundo do estrado de mola e acariciava seu rosto como
uma pluma. Seu cabelo vermelho parecia opaco, mas seus olhos estavam
escuros, alertas e sinistros no rosto branco. E quando ela falou, vi que a
morte a tinha enlouquecido.
— Me dá isso — chiou. — É o meu pega-poeira. — Ela o arrancou de
minha mão antes que eu pudesse entregá-lo. Por um momento nossos
dedos se tocaram, os dela tão gelados quanto gravetos depois de uma
geada. Ela abriu o livro no lugar que havia marcado, a carta sendo expelida
para fora, e colocou Somerset Maugham sobre o rosto — uma mortalha de
palavras. Enquanto cruzava as mãos no peito e ficava imóvel, percebi que
usava o vestido azul com que a enterrei. Saiu do túmulo para se esconder
debaixo de nossa cama.
Acordei com um grito abafado e um sobressalto doloroso que quase
me fez cair da cama. Não tinha dormido por muito tempo — as lágrimas
ainda estavam úmidas em meu rosto, e sentia nas pálpebras aquela
estranha sensação de distensão, que ocorre depois de um acesso de choro.
O sonho foi tão vívido que tive que rolar para o meu lado, abaixar a cabeça
e espiar debaixo da cama, certo de que Jo estaria ali com o livro sobre o
rosto, e que estenderia os dedos gelados para me tocar.
Não havia nada lá, é claro — sonhos são apenas sonhos. Mesmo
assim, passei o resto da noite no sofá do escritório. Acho que foi a escolha
certa, porque não sonhei mais naquela noite. Houve apenas o nada de uma
boa noite de sono.
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