em portas de geladeira, e na manhã de terça-feira tive um insight
maravilhoso. Ele ocorreu enquanto eu me barbeava pensando apenas em não
esquecer a cerveja da festa. E como as melhores inspirações, saiu de lugar
nenhum.
Entrei rapidamente na sala de estar, mas sem correr, enxugando o
creme de barbear do rosto com uma toalha enquanto andava. Dei uma
olhada rápida na coletânea de palavras cruzadas Nível difícil em cima do
manuscrito do meu livro. Foi a ela que eu me dirigi primeiro num esforço
para decifrar “vá a 19” e “vá a 92”. Um ponto de partida racional, mas o
que é que Nível difícil tinha a ver com a TR-90? Eu comprei a coletânea na
Mr. Paperback, em Derry, e das trinta palavras cruzadas ou mais que
completei, todas, à exceção de meia dúzia, haviam sido terminadas em
Derry. Os fantasmas da TR dificilmente mostrariam algum interesse em
minhas palavras cruzadas de Derry. A lista telefônica, por outro lado...
Eu a peguei da mesa da sala de jantar. Embora ela cobrisse toda a
parte sul do condado de Castle — Motton, Harlow e Kashwakamak além da
TR —, era bastante fina. A primeira coisa que fiz foi checar as páginas em
branco para ver se havia pelo menos 92 delas. Havia. Os Ys e Zs
terminavam na página 97. Aquela era a resposta. Tinha que ser.
— Achei, não é? — perguntei a Bunter. — É isso.
Nada. Nem mesmo uma badalada do sino.
— Foda-se. O que é que uma cabeça empalhada de alce sabe de uma
lista telefônica?
Vá a 19. Procurei a página 19 na lista, onde a letra F figurava em
destaque. Comecei a escorregar o dedo pela primeira coluna abaixo e,
enquanto o fazia, minha animação diminuiu. O nome de número 19 da
página 19 era Harold Failles. Não significava nada para mim. Havia também
Feltons e Fenners, um Filkersham e diversos Finneys, meia dúzia de
Flahertys e mais Fosses do que se podia contar. O último nome da página
19 era Framingham. Também não significava nada para mim, mas...
Framingham, Kenneth P.
Olhei fixamente o nome por um momento. Uma compreensão
começou a surgir. Não tinha nada a ver com as mensagens da geladeira.
Você não está vendo o que pensa que está vendo, pensei. É como
quando você compra um Buick azul...
— Você vê Buicks azuis em toda parte — eu disse. — Praticamente
tem que chutá-los para fora do seu caminho. É, é isso. — Mas minhas
mãos tremiam quando procurei a página 92.
Ali estavam os Ts do sul do condado de Castle, juntamente com
alguns Us, como Alton Ubeck e Catherine Udell só para arredondar as
coisas. Não me dei ao trabalho de checar a entrada de número 92 na
página; a lista telefônica não era a chave para as palavras cruzadas
magnéticas, afinal de contas. Mas de fato sugeria algo de grandes
proporções. Fechei a lista, continuei segurando-a por um momento (gente
feliz segurando um ancinho na capa da frente), depois a abri ao acaso,
desta vez na letra M. E, na medida em que se sabe o que se está
procurando, a coisa pula na sua frente.
Todos aqueles Ks.
Ah, havia Stevens, Johns e Marthas; havia Meserve, G., e Messier, V.,
e Jayhouse, T. E repetidamente vi a inicial K onde as pessoas tinham
exercido seu direito de não listar os primeiros nomes na lista. Havia pelo
menos vinte iniciais K só na página 50, e outras 12 iniciais C. Quanto aos
nomes próprios...
Havia 12 Kenneths nessa página ao acaso na seção M, inclusive três
Kenneth Moores e dois Kenneth Munters. Havia quatro Catherines e duas
Katherines. Havia um Casey, uma Kiana e um Kiefer.
— Deus do céu, é como irradiação atômica — murmurei.
Folheei a lista incapaz de acreditar no que estava vendo, e vendo-o
mesmo assim. Kenneths, Katherines e Keiths estavam por toda parte. Vi
também Kimberly, Kim e Kym. Havia Cammie, Kia (sim, e tínhamos nos
considerado tão originais), Kiah, Kendra, Kaela, Keil e Kyle. Kirby e Kirk.
Havia uma mulher chamada Kissy Bowden e um homem chamado Kito
Rennie — Kito, o mesmo nome mencionado pelo pessoal da geleira de Kyra.
E por toda parte, afogando iniciais geralmente tão comuns como S, T e E,
estavam aqueles Ks. Meus olhos dançaram por eles.
Eu me virei para olhar o relógio — não queria deixar John Storrow
plantado no aeroporto, puxa, não mesmo —, mas não havia nenhum relógio
ali. Claro que não. O Velho Gato Maluco tinha batido as botas durante um
evento psíquico. Dei uma risada alta e áspera que me assustou um pouco
— não era especialmente sã.
— Controle-se, Mike — eu disse. — Respire fundo, filho.
Respirei fundo. Prendi a respiração. Deixei-a sair. Consultei o relógio
do micro-ondas. Oito e quinze. Tempo suficiente para John. Voltei à lista
telefônica e comecei a folheá-la rapidamente. Tive uma segunda inspiração
— não a megaexplosão da primeira, mas que se revelou muito mais
acurada.
O Maine ocidental é uma área relativamente isolada — é um pouco
como a região de colinas da fronteira sul —, mas sempre havia pelo menos
algum influxo de gente de longe (“gente da planície” é o termo dos locais
quando desdenhosos), e no último quarto de século a região passou a ser
uma área popular para cidadãos idosos ativos que querem pescar e esquiar
até se aposentarem. A lista telefônica faz uma grande separação entre os
recém-chegados e os antigos residentes. Babickis, Parettis, O’Quindlans,
Donahues, Smolnacks, Dvoraks, Blindermeyers — todos de fora. Todos da
planície. Jalberts, Meserves, Pillsburys, Spruces, Therriaults, Perraults,
Stanchfields, Starbirds, Dubays — todos do condado de Castle. Entende o
que estou dizendo, não é? Quando se vê toda uma coluna de Bowies na
página 12, sabe-se que esse pessoal tem estado por aqui tempo suficiente
para relaxar e de fato espalhar esses genes Bowie.
Havia algumas iniciais K e nomes com K entre os Parettis e os
Smolnacks. Só poucos. As fortes concentrações estavam ligadas às famílias
que estavam lá tempo suficiente para absorver a atmosfera. Para respirar a
irradiação atômica. Só que não era irradiação exatamente, era...
Subitamente imaginei uma lápide negra mais alta do que a maior
árvore do lago, um monolito que lançava sua sombra sobre metade do
condado de Castle. Esse quadro era tão claro e terrível que cobri meus
olhos, deixando cair a lista telefônica sobre a mesa. Afastei-me dela,
estremecendo. Esconder meus olhos na verdade pareceu realçar ainda mais
a imagem: uma lápide tão enorme que bloqueava o sol; a TR-90 jazia a
seus pés como uma coroa fúnebre. O filho de Sara Tidwell se afogou no
Dark Score... ou ali foi afogado. Mas ela marcou seu falecimento. Tinha
feito um memorial. Eu me perguntei se mais alguém na cidade tinha notado
algum dia o que eu notei. Eu não achava que aquilo fosse provável; quando
abrimos uma lista telefônica, estamos procurando na maioria dos casos um
nome específico, e não lendo páginas inteiras linha por linha. Imaginei se Jo teria notado — se soube que quase toda família antiga nessa parte do
mundo tinha, de algum modo, batizado pelo menos um de seus filhos em homenagem ao filho morto de Sara Tidwell.
Como Jo não era idiota, achei que teria notado isso.
Voltei ao banheiro, tornei a ensaboar meu rosto e comecei novamente do
zero. Quando terminei, voltei ao telefone e o levantei. Apertei três números
e parei, olhando para o lago. Mattie e Ki estavam acordadas e na cozinha,
ambas de avental, ambas numa onda de entusiasmo. Ia ter uma festa! Elas
usariam roupas bonitas e novas de verão, e haveria música saindo do CD
player portátil de Mattie! Ki estava ajudando Mattie a fazer biscoitos para a
totinha de molango, e enquanto os biscoitos estivessem assando, fariam
saladas. Se eu ligasse para Mattie e dissesse Arrume uma valise, você e Ki
vão passar uma semana na Disney World, Mattie ia achar que eu estava
brincando, e depois me diria para me apressar e me vestir logo para estar
no aeroporto quando o avião de John aterrissasse. Se eu insistisse, ela me
lembraria de que Lindy tinha lhe devolvido seu velho emprego, mas a oferta
seria retirada bem rápido se Mattie não aparecesse lá prontamente às duas
da tarde na sexta-feira. Se eu continuasse a insistir, ela simplesmente diria que não.
Porque eu não era o único a estar na zona, era? Não era o único a
realmente senti-la.
Devolvi o telefone ao suporte de recarga e voltei ao quarto da ala
norte. Quando terminei de me vestir, minha camisa limpa já parecia
encolhida debaixo dos braços; estava tão quente naquela manhã como na
última semana, talvez ainda mais quente. Mas eu teria muito tempo para
chegar antes do avião. Jamais me senti com menos vontade de festejar,
mas iria à reunião mesmo assim. Mikey presente ao local, era o meu lema.
Mikey na droga do local.
John não me disse o número de seu voo, mas no aeroporto do condado de
Castle tais amenidades praticamente não eram necessárias. Esse
alvoroçado eixo de transporte consiste em três hangares e um terminal que
havia sido um posto de gasolina Flying A — ainda se pode ver a forma de
asa do A quando a luz está forte no enferrujado lado norte do pequeno
edifício. Há uma pista. A segurança é fornecida por Lassie, a velha collie de
Breck Pellerin, que passa os dias deitada no chão de linóleo e ergue uma
orelha para o teto cada vez que um avião aterrissa ou decola.
Meti a cabeça no escritório de Pellerin e lhe perguntei se o voo das
dez vindo de Boston estava no horário. Ele disse que sim, embora
esperasse que a pessoa que eu estava aguardando planejasse voar de volta
antes do meio da tarde, ou viesse para passar a noite. O mau tempo
estava chegando, minha nossa, sem dúvida alguma. O que Pellerin chamou
de tempo “elétrico”. Eu sabia exatamente o que queria dizer, pois aquela
eletricidade já parecia ter chegado ao meu sistema nervoso.
Eu me dirigi para o lado da pista do terminal e sentei num banco que
anunciava o Cormier’s Market (VOE PARA NOSSA DELICATÉSSEN PARA AS
MELHORES CARNES DO MAINE). O sol era um botão de prata espetado na
encosta leste de um céu branco e quente. Tempo de dor de cabeça, minha
mãe o teria chamado, mas ele estava destinado a mudar. Eu me agarraria à
esperança daquela mudança tanto quanto podia.
Às 10h10 ouvi um zumbido de abelha vindo do sul. Às 10h15, um
bimotor saiu da obscuridade, desceu desajeitadamente na pista e taxiou
para o terminal. Havia só quatro passageiros, e John Storrow foi o primeiro
a sair. Sorri quando o vi. Usava uma camiseta preta com a inscrição
SOMOS OS CAMPEÕES na frente e bermudas cáqui que exibiam um perfeito
par de canelas citadinas: ossudas e brancas. Estava tentando carregar ao
mesmo tempo um isopor e uma pasta. Agarrei o isopor talvez quatro
segundos antes que ele o deixasse cair e enfiei-o debaixo do braço.
— Mike! — gritou, levantando uma palma para cima.
— John! — respondi no mesmo espírito (evoé é a palavra que
imediatamente vem à mente do aficionado de palavras cruzadas), e bati
com a mão espalmada na dele. Seu rosto bonito e doméstico abriu-se num
sorriso, e senti uma pequena punhalada de culpa. Mattie não havia
manifestado nenhuma preferência por John, bem o oposto, na verdade, e ele
realmente não tinha resolvido nenhum dos problemas dela; Devore foi o
culpado disso, acabando com a própria vida antes que John tivesse alguma
chance de fazer algo em benefício de Mattie. Mesmo assim, senti aquela
pontadinha desagradável.
— Venha — disse ele. — Vamos sair desse calor. Você tem arcondicionado
no carro, não tem?
— Claro.
— E um toca-fitas? Porque, se tiver, vou pôr uma fita que vai fazer
você dar uma casquinada.
— Acho que nunca ouvi essa palavra usada numa conversa, John.
O sorriso mostrando os dentes se abriu de novo, e notei seu monte
de sardas.
— Sou advogado. Uso palavras que ainda não foram inventadas. Você
tem um toca-fitas?
— Claro que tenho. — Levantei o isopor. — Filés?
— É. Da Peter Luger’s. São...
— ... os melhores do mundo. Você me disse.
Quando entramos no terminal, alguém falou:
— Michael?
Era Romeo Bissonette, o advogado que me acompanhou em meu
depoimento. Numa das mãos levava uma caixa embrulhada em papel azul e
amarrada com fita branca. Ao lado dele, acabando de se levantar de uma
das cadeiras encalombadas, vi um sujeito alto com uma franja de cabelo
grisalho. Usava um terno marrom, camisa azul e uma gravata de laço com
um taco de golfe no nó. Parecia mais um fazendeiro num dia de leilão do
que o tipo de sujeito que se mostraria impagável depois de um ou dois
drinques, mas não tive dúvidas de que aquele era o detetive particular. Ele
pulou por cima do comatoso collie e apertou minha mão.
— George Kennedy, sr. Noonan. Estou contente de conhecê-lo. Minha
mulher leu cada livro que o senhor escreveu.
— Agradeça a ela por mim.
— Vou agradecer. Tenho um livro no carro... um de capa dura... —
Parecia tímido, como tantas outras pessoas quando estão no momento
exato de pedir. — Será que podia autografá-lo para ela, em algum
momento?
— Com o maior prazer — respondi. — Agora mesmo é melhor,
porque assim não esqueço. — Virei-me para Romeo. — Bom te ver, Romeo.
— Pode me chamar de Rommie — disse ele. — É bom vê-lo
também. — Estendeu a caixa. — George e eu nos juntamos para isso.
Achamos que você merecia algo simpático por ajudar uma moça em
aflição.
Kennedy agora parecia um homem que podia ser engraçado depois de
alguns drinques. O tipo que poderia simplesmente ter o ímpeto de pular na
mesa mais próxima, transformar a toalha de mesa num kilt e dançar. Olhei
para John, que deu de ombros, como se dissesse não me pergunte.
Retirei o laço de cetim, deslizei o dedo sob a fita adesiva segurando
o papel e depois ergui os olhos. Peguei Rommie Bissonette cutucando
Kennedy com o cotovelo. Agora ambos sorriam.
— Não há nada aqui que vá pular em cima de mim e gritar bugabuga,
não é, rapazes? — perguntei.
— De modo nenhum — disse Rommie, mas seu sorriso se alargou.
Bem, posso ter tanto espírito esportivo quanto qualquer outro. Acho.
Desembrulhei o pacote, abri a caixa branca e, dentro dele, descobri
simplesmente um forro quadrado de algodão, levantei-o. Eu vinha sorrindo
enquanto fazia tudo isso, mas senti o sorriso murchar e morrer em minha
boca. Algo se enroscou por minha espinha acima também, e acho que
estive muito perto de deixar cair a caixa.
Era a máscara de oxigênio que Devore trazia no colo quando
encontrou comigo na Rua, aquela em que resfolegava ocasionalmente
enquanto ele e Rogette me mantinham a distância dentro do lago, tentando
fazer com que eu ficasse na área profunda tempo suficiente para que me
afogasse. Rommie Bissonette e George Kennedy tinham me trazido o objeto
como o escalpo de um inimigo morto e eu devia achar aquilo engraçado...
— Mike? — perguntou Rommie ansioso. — Mike, tudo bem? Foi só
uma brincadeira...
Pisquei os olhos e vi que não era de modo algum uma máscara de
oxigênio — Deus do céu, como é que pude ser tão estúpido? Primeiro, era
maior do que a máscara de Devore; segundo, era feita de material opaco e
não de plástico claro. Era...
Dei uma risadinha hesitante. Rommie Bissonette pareceu
tremendamente aliviado. Kennedy também. John apenas se mostrava
intrigado.
— Muito engraçado — eu disse. — Puxei o pequeno microfone de
dentro da máscara e deixei-o pendurado. Ele balançou para a frente e para
trás no fio, me lembrando da cauda oscilante do relógio.
— Que droga é essa? — perguntou John.
— Advogado de Park Avenue — disse Rommie a George,
aprofundando o sotaque para Aadvogaadah de Paa-aak Avenew. — Você
nuncah viu um desses, viu, companheiro? Nãh senhor, claaro que nãh. —
Então passou à fala normal, o que foi um alívio. Vivi no Maine toda a minha
vida, e para mim o fator diversão no burlesco sotaque ianque já está
bastante gasto. — É uma Stenomask. O estenógrafo que registrou o
depoimento de Mike estava usando uma dessas. Mike olhou tanto para ele...
— Ele me assustou — eu disse. — O velho sentado no canto e
murmurando dentro da máscara de Zorro.
— Gerry Bliss assusta um monte de gente — disse Kennedy. Emitia
um ruído surdo e prolongado ao falar. — É o último por aqui a usar esse
aparelho. Guarda dez ou 11 em seu hall de entrada. Eu sei, porque comprei
esse aí dele.
— Espero que ele o tenha pendurado em você.
— Achei que seria uma recordação simpática — disse Rommie —,
mas por um segundo achei que tinha te dado a caixa com uma mão
decepada. Detesto quando alguém troca as caixas dos meus presentes. O
que foi, Mike?
— Julho está sendo longo e quente — eu disse. — Deve ser isso. —
Segurei a correia da Stenomask com um dos dedos, balançando-a.
— Mattie disse para chegar às 11 horas — John falou. — Vamos
tomar uma cerveja e brincar um pouco com o frisbee.
— Posso fazer essas duas coisas muito bem — disse George
Kennedy.
Do lado de fora, no minúsculo estacionamento, George foi até um
empoeirado Altima, remexeu na parte detrás do carro e voltou com um
exemplar surrado de O homem da camisa vermelha.
— Frieda me fez trazer esse. Ela tem os mais recentes, mas este é
o seu preferido. Desculpe a aparência do livro... ela o leu umas seis vezes.
— É o meu preferido também — falei, o que era verdade. — E gosto
de ver um livro com milhagem. — O que também era verdade. — Abri o
livro, olhei de forma aprovadora para uma mancha de chocolate há muito
seco na folha de guarda e escrevi: Para Frieda Kennedy, cujo marido estava
lá para dar uma mão. Obrigada por compartilhá-lo e por ler meus livros,
Mike Noonan.
Para mim, era uma longa dedicatória — geralmente me atenho a
Com os melhores votos ou Boa sorte, mas queria compensar a expressão
azeda que tinham visto em meu rosto quando abri o inocente presente
brincalhão. Enquanto eu fazia a dedicatória, George me perguntou se eu
estava escrevendo um novo romance.
— Não — respondi. — No momento, estou recarregando as baterias.
— Entreguei-lhe o livro.
— Frieda não vai gostar disso.
— Não. Mas sempre há a Camisa vermelha.
— Nós vamos atrás de você — disse Rommie, e um estrondo surdo
veio das bandas do oeste. Não era mais alto do que o trovão que andou
rugindo intermitentemente pela última semana, mas aquele ali não era um
trovão seco. Sabíamos disso, e olhamos naquela direção.
— Acha que vamos ter chance de almoçar antes da tempestade? —
perguntou George.
— Acho. Por um triz.
Eu me dirigi ao portão do estacionamento e dei uma olhada à direita para
checar o tráfego. Quando o fiz, vi John olhando pensativamente para mim.
— O quê?
— Mattie disse que você estava escrevendo, só isso. O livro virou a
cara para você ou coisa assim?
Na verdade, Meu amigo de infância estava vivo como sempre... mas
nunca seria terminado. Naquela manhã, eu sabia disso tão bem quanto sabia
que havia chuva a caminho. Os rapazes do porão, por algum motivo,
decidiram tomá-lo de volta. Perguntando por que talvez não fosse uma ideia
muito boa — as respostas poderiam ser desagradáveis.
— Alguma coisa assim. Não tenho bem certeza por quê. — Entrei na
rodovia, chequei a retaguarda e vi Rommie e George atrás no pequeno
Altima de George. Os Estados Unidos se tornaram um país cheio de
homens grandes em carros pequenos. — O que é que você quer que eu
escute? Se for um karaokê doméstico, eu passo. Ouvir você cantando
“Bubba Shot the Jukebox Last Night” é a última coisa do mundo que quero.
— Ah, é melhor do que isso.
John abriu a pasta, remexeu nela e tirou dali uma caixa com uma
fita cassete. A fita em seu interior tinha a inscrição 20-7-98 — ontem.
— Adoro isso — disse ele. Inclinou-se para a frente, ligou o rádio e
enfiou o cassete no toca-fitas.
Eu esperava já ter tido minha cota de surpresas desagradáveis
naquela manhã, mas estava enganado.
— Desculpe, tive que me livrar de outra ligação — falou John do altofalante
do meu Chevy, com sua voz mais macia e advocatícia. Eu apostaria
um milhão de dólares que suas canelas ossudas não estavam aparecendo
quando a fita tinha sido gravada.
Ouviu-se um riso, ao mesmo tempo enfumaçado e arranhado. Meu
estômago se apertou ante aquele som. Lembrei-me de quando a vi pela
primeira vez em pé do lado de fora do Sunset Bar, de short preto sobre um
maiô preto inteiriço. Em pé e parecendo uma refugiada do inferno de uma
dieta de fome.
— Você quer dizer que teve que ligar seu gravador — disse ela, e
agora eu lembrava como a água parecia ter mudado de cor quando Rogette
me despachou aquela pedrada realmente boa atrás da cabeça. De laranja
vivo para vermelho-escuro. E então eu comecei a engolir a água do lago. —
Tudo bem. Grave tudo que quiser.
John esticou a mão e fez o cassete ser expelido.
— Você não precisa escutar isso — disse ele. — Não é importante.
Achei que ia se divertir com a tagarelice dela, mas... puxa, você está com
uma cara horrível. Quer que eu dirija? Está branco como papel, porra.
— Posso dirigir — eu disse. — Vá em frente, ponha a fita. Depois eu
lhe conto uma pequena aventura que tive na sexta à noite... mas você não
vai contá-la a ninguém. Eles não precisam saber — espetei o polegar por
sobre o ombro para o Altima —, e Mattie também não tem que saber.
Sobretudo Mattie.
Ele esticou a mão para a fita, mas hesitou:
— Tem certeza?
— Tenho. Foi só por ouvir a voz dela de repente, sem estar
prevenido. A voz dela. Cristo, que gravação de boa qualidade.
— Nada senão o melhor para Avery, McLain e Bernstein. Temos
protocolos muito estritos sobre o que podemos gravar, por falar nisso. Caso
você esteja pensando no assunto.
— Não estava. De qualquer modo, acho que nada disso é admissível
num litígio, é?
— Em certos casos raros, um juiz pode aceitar uma gravação, mas
não é por isso que o fazemos. Uma fita dessas salvou a vida de um
homem quatro anos atrás, bem na época em que entrei para a firma. O
sujeito agora está no Programa de Proteção à Testemunha.
— Ponha a fita.
John se inclinou para a frente e apertou o botão.
John: — Como anda o deserto, srta. Whitmore?
Whitmore: — Quente.
John: — As providências estão avançando bem? Sei como podem ser
difíceis esses momentos...
Whitmore: — O senhor sabe muito pouco, advogado, pode acreditar.
Vamos deixar essa baboseira de lado?
John: — Considere-a posta de lado.
Whitmore: — O senhor transmitiu as condições do testamento do sr.
Devore à nora dele?
John: — Transmiti.
Whitmore: — E a resposta dela?
John: — Não tenho nenhuma para lhe dar agora. Posso ter, depois
que o testamento do sr. Devore for homologado. Mas
certamente a senhora sabe que esses codicilos raramente são
aceitos pelo tribunal, se é que o são alguma vez.
Whitmore: — Bem, se a mocinha se mudar da cidade, veremos, não
é?
John: — Acho que sim.
Whitmore: — Quando é a festa da vitória?
John: — Como?
Whitmore: — Ah, por favor. Tenho sessenta compromissos
diferentes hoje, além de um patrão para enterrar amanhã. O
senhor vai até lá para celebrar com ela e a filha, não é? Sabia
que ela convidou o escritor? Seu companheiro de foda?
John se virou para mim alegremente.
— Está vendo como ela parece irritada? Tenta esconder isso, mas
não consegue. Está devorando-a por dentro.
Praticamente não o escutei. Eu estava na zona com o que ela dizia
(o escritor, seu companheiro de foda)
e o que estava sob o que ela dizia. A natureza característica por
baixo das palavras. Só queremos ver quanto tempo você pode nadar, tinha
gritado para mim.
John: — Não creio que o que eu e os amigos de Mattie fazemos seja
da sua conta, srta. Whitmore. Posso sugerir respeitosamente
que a senhora se reúna com seus amigos e deixe Mattie
Devore se reunir com os del...
Whitmore: — Dê um recado a ele.
Eu. Ela estava falando de mim. Então percebi que era até mais
pessoal do que aquilo — ela estava falando para mim. Seu corpo podia estar
do outro lado do país, mas sua voz e seu espírito rancoroso estavam bem
ali no carro conosco.
E o testamento de Max Devore. Não a merda sem sentido que os
advogados dele tinham colocado no papel e sim o testamento dele. O velho
patife estava tão morto como Dâmocles, mas definitivamente ainda
buscava a custódia, sem dúvida nenhuma.
John: — Dê um recado a quem, srta. Whitmore?
Whitmore: — Diga a ele que nunca respondeu à pergunta do sr.
Devore.
John: — Que pergunta?
A boceta dela suga?
Whitmore: — Pergunte a ele. Ele sabe qual é.
John: — Se está se referindo a Mike Noonan, pode perguntar a ele
pessoalmente. A senhora o verá na Corte Testamentária do
condado de Castle nesse outono.
Whitmore: — Acho difícil. O testamento do sr. Devore foi feito e
testemunhado aqui.
John: — Apesar disso, será homologado no Maine, onde ele morreu.
Estou empenhado nisso. E a próxima vez em que você for
embora do condado de Castle, Rogette, sua instrução em
questões legais estará consideravelmente ampliada.
Pela primeira vez ela pareceu zangada, sua voz passando a um
crocitar esganiçado.
Whitmore: — Se você acha...
John: — Eu não acho. Eu sei. Adeus, srta. Whitmore.
Whitmore: — Acho melhor você ficar longe d...
Ouviu-se um clique, o zumbido da linha desligada e então uma voz
de robô dizendo “Nove e quarenta da manhã... horário de verão no leste...
julho... 20”. John apertou EJECT, recolheu a fita e a guardou na pasta.
— Desliguei na cara dela. — Parecia um homem contando sobre seu
primeiro salto livre de paraquedas. — Desliguei mesmo. Ela estava danada,
não estava? Não acha que ela estava tremendamente furiosa?
— É. — Era o que ele queria ouvir, mas não o que eu realmente
pensava. Furiosa, sim. Tremendamente furiosa? Talvez não. Porque a
localização de Mattie e seu estado de espírito não eram preocupações de
Rogette; ela tinha ligado para falar comigo. Para me dizer que estava
pensando em mim. Para despertar lembranças de como era agitar-se na
água com a parte de trás da cabeça sangrando. Para me assustar. E tinha
conseguido.
— Qual era a pergunta que você não respondeu? — perguntou John.
— Não tenho a mínima ideia — respondi —, mas posso lhe dizer por
que ouvir a voz dela me deixou um pouco pálido. Se você for discreto e
quiser ouvir.
— Ainda temos 30 quilômetros pela frente. Desembuche.
Contei-lhe sobre a sexta-feira à noite. Não atravanquei minha versão
com visões ou fenômenos psíquicos: falei apenas sobre Michael Noonan
saindo para um passeio pela Rua ao pôr do sol. Eu estava perto da bétula
que pendia sobre o lago, vendo o sol mergulhar por trás das montanhas,
quando eles surgiram às minhas costas. Do ponto em que Devore investiu
contra mim com a cadeira de rodas ao ponto em que finalmente cheguei a
terra firme, de modo geral me pautei fielmente pela verdade.
Quando terminei, John mostrou-se completamente silencioso, sinal
de como tinha ficado atônito; sob circunstâncias normais era tão tagarela
quanto Ki.
— E então? — perguntei. — Comentários? Perguntas?
— Afaste o cabelo para eu ver atrás da orelha.
Fiz como ele pedia, revelando um grande Band-Aid e uma ampla área
inchada. John debruçou-se para mim para estudá-la como uma criança
observando a cicatriz de batalha do melhor amigo durante o recreio.
— Puta que pariu — disse ele finalmente.
Foi minha vez de não dizer nada.
— Aqueles dois velhos nojentos tentaram afogar você.
Eu não disse nada.
— Tentaram afogar você por ajudar Mattie.
Então eu realmente não disse nada.
— E você não deu queixa?
— Ia dar, depois percebi que isso me faria parecer um idiota chorão.
E muito provavelmente um mentiroso.
— Quanto acha que Osgood pode saber?
— De tentarem me afogar? Nada. Ele é só um garoto de recados.
Um pouco mais daquela rara quietude de John. Depois de alguns
segundos nesse estado, ele estendeu a mão e tocou no caroço na parte de
trás de minha cabeça.
— Ai!
— Desculpe. — Uma pausa. — Deus do céu. Então ele voltou ao
Warrington’s e deu um tiro na própria cabeça. Deus do céu. Michael, eu
jamais teria posto aquela fita para tocar se soubesse...
— Tudo bem. Mas nem pense em contar a Mattie. Estou usando o
cabelo em cima da orelha por causa disso.
— Acha que algum dia vai contar a ela?
— Talvez. Algum dia, quando ele já estiver morto tempo suficiente
para que a gente possa rir de meu banho de roupa.
— Pode ser daqui a um bom tempo.
— É. Pode sim.
Rodamos em silêncio por um período. Eu podia perceber John
procurando um modo de trazer a alegria de volta ao dia, e graças a isso
senti um grande afeto por ele. Debruçou-se, ligou o rádio e encontrou algo
ruidoso e irritante dos Guns’n Roses — welcome to the jungle, baby, we got fun and games.
— Vamos festejar até vomitar — disse ele. — Certo?
Sorri. Não era fácil, com a voz da velha ainda grudada a mim como
lodo, mas consegui.
— Já que você insiste — eu disse.
— Eu insisto. Não tem dúvida.
— John, para um advogado, você é um bom sujeito.
— E para um escritor você também é um bom sujeito.
Dessa vez, o sorriso em meu rosto pareceu mais natural e permaneceu mais tempo. Passamos a placa em que se lia TR-90 e, enquanto o fazíamos, o sol surgiu por entre a névoa e inundou o dia de luz.
Parecia um presságio de momentos melhores pela frente até que olhei para o oeste. Ali havia manchas negras na claridade, pude ver nuvens carregadas de chuva se formando sobre as White Mountains.
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