segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Capítulo Vinte e Três


As trevas voltaram, transformando a escuridão da noite de domingo em
algo de decadente beleza. O sol ficou vermelho enquanto afundava por trás
das colinas e a névoa recebeu o seu fulgor, transformando o céu do poente
numa hemorragia nasal. Sentei no deck e fiquei observando o céu, tentando
fazer palavras cruzadas, mas sem conseguir ir muito longe. Quando o
telefone tocou, coloquei o Nível difícil em cima do manuscrito de meu livro
enquanto fui atendê-lo. Estava cansado de olhar para aquele título cada vez
que passava por ali.
— Alô.
— O que é que está acontecendo aí? — perguntou John Storrow, sem
sequer se dar ao trabalho de dizer oi. Mas não parecia zangado e sim
completamente excitado. — Estou perdendo a droga da novela toda!
— Eu me convidei para almoçar na terça — falei. — Espero que não
se importe.
— Não, quanto mais gente, mais alegre. — Ele parecia estar sendo
absolutamente sincero. — Que verão, hein? Que verão! Aconteceu alguma
coisa ultimamente? Terremotos? Vulcões? Suicídios em massa?
— Nenhum suicídio em massa, mas o velho morreu — eu disse.
— Pombas, o mundo inteiro sabe que Max Devore bateu as botas —
disse ele. — Surpreenda-me, Mike! Atordoe-me! Faça-me berrar “Puxa
vida!”.
— Não, o outro velho. Royce Merrill.
— Não sei a quem você... ah, espere. Aquele com a bengala de ouro
que parecia uma peça de Jurassic Park?
— Ele.
— Que bode. No mais...?
— No mais está tudo sob controle — eu disse, então pensei nos
olhos estourados do relógio-gato e quase ri. O que me fez parar foi uma
espécie de certeza de que o sr. Bom Humor era apenas uma representação.
John tinha ligado mesmo para perguntar o que estava acontecendo entre
Mattie e eu, se é que estava havendo alguma coisa. E o que é que eu ia
dizer? Nada ainda? Um beijo, uma ereção instantânea dura como aço, as
coisas fundamentais se ajustam com o tempo?
Mas John tinha outras coisas na cabeça.
— Escute, Michael, liguei porque tenho algo a lhe contar. Acho que
vai achar divertido e surpreendente ao mesmo tempo.
— Um estado pelo qual todos ansiamos. Chute.
— Rogette Whitmore ligou e... você não deu a ela o número de meus
pais, deu? Estou de volta a Nova York agora, mas ela ligou para mim na
Filadélfia.
— Eu não tenho o número de seus pais. Você não o deixou em
nenhuma das duas secretárias.
— Ah, certo. — Nenhuma desculpa; ele parecia excitado demais para
pensar em tais frivolidades. Comecei a ficar animado também, nem sabia
que droga estava acontecendo. — Eu o deixei com Mattie. Você acha que a
tal Whitmore ligou para Mattie para pedir o número? E será que Mattie o
deu?
— Tenho certeza de que se Mattie esbarrasse com Rogette se
incendiando numa via pública mijaria nela para apagar o fogo.
— Que vulgar, Michael. Très vulgaire. — Mas ele estava rindo. —
Talvez Whitmore tenha conseguido o número da mesma forma que Devore
conseguiu o seu.
— É provável. Não sei o que acontecerá nos meses pela frente, mas
neste momento tenho certeza de que ela ainda tem acesso ao painel de
controle pessoal de Max Devore. E se alguém sabe como apertar os botões
dele, sem dúvida é Rogette. Ela ligou de Palm Springs?
— Ligou. Disse que tinha acabado de ter um encontro preliminar com
os advogados de Devore a respeito do testamento do velho. Segundo ela,
vovô deixou 80 milhões de dólares para Mattie Devore.
Silenciei. Não achei aquilo divertido, mas certamente estava
surpreso.
— Te peguei, hein? — disse John alegremente.
— Você quer dizer que ele deixou o dinheiro para Kyra — falei
finalmente. — Deixou o dinheiro num fundo para Kyra.
— Não, foi exatamente o que não fez. Perguntei três vezes a
Whitmore, mas na terceira comecei a entender. Havia um método na
loucura dele. Não muito, mas um pouco. Porque há uma condição. Se ele
deixasse o dinheiro para uma menor em vez de para a mãe, a condição não
teria nenhum peso. É engraçado quando se considera que a própria Mattie
não perdeu o status de menor há tanto tempo assim.
— Engraçado — concordei, e pensei no vestido dela deslizando entre
minhas mãos e sua macia cintura nua. Também pensei em Bill Dean
dizendo que os homens que andavam com garotas daquela idade sempre
pareciam iguais, tinham todos a língua pendurada para fora da boca mesmo
com ela fechada.
— Que restrição ele impôs ao recebimento do dinheiro?
— Que Mattie permaneça na TR por todo o ano seguinte à morte de
Devore... até 17 de julho de 1999. Ela pode sair em viagens durante o dia,
mas tem que estar enfiada em sua cama na TR-90 todas as noites por
volta das nove, ou o legado será confiscado. Já ouviu semelhante besteira
em toda a sua vida? Isto é, a não ser num velho filme de George Sanders?
— Não — eu disse, e lembrei de minha visita à Feira de Fryeburg
com Kyra. Até na morte ele está buscando a custódia, eu tinha pensado, e
claro que aquilo ali era a mesma coisa. Ele as queria lá. Mesmo na morte
ele as queria na TR.
— Dá mesmo pra acreditar? — perguntei.
— Claro que sim. O velho pirado poderia também ter escrito que
daria a Mattie 80 milhões de dólares se ela usasse tampões azuis por um
ano. Mas ela vai receber os 80 milhões, sem sombra de dúvida. Estou
empenhado nisso. Já falei com três de nossos homens que cuidam de
espólios e... você acha que eu devia levar um deles comigo na terça? Will
Stevenson será o homem principal na fase do espólio, se Mattie concordar.
— John estava bem falante. Eu podia apostar minha vida que ele ainda não
tinha bebido nada, mas pairava nas alturas diante de todas as
possibilidades. Havíamos alcançado a parte viveram felizes-para-sempre do
conto de fadas, no que dizia respeito a John; Cinderela chega em casa do
baile em meio a uma chuva de dinheiro.
— ... claro que Will é um pouquinho velho — dizia John —, tem mais
ou menos 300 anos, o que significa que não é exatamente um sujeito
engraçado numa festa, mas...
— Deixe-o aí, por favor — falei. — Vai haver muito tempo para
destrinchar o testamento de Devore depois. E, no futuro imediato, acho que
Mattie não vai ter nenhum problema para cumprir essa condição idiota. Seu
emprego acaba de ser devolvido, lembra?
— Lembro, o búfalo branco cai morto e toda a manada se dispersa!
— exultou John. — Olhe só eles indo! E a nova multimilionária volta a
registrar livros e a pôr no correio recados dizendo que o prazo do cartão da
biblioteca se esgotou! Tudo bem, na terça a gente faz só a festa.
— Ótimo.
— Vamos festejar até vomitar.
— Bem... talvez nós, os caras mais velhos, só festejemos até
ficarmos ligeiramente enjoados, está bem assim?
— Claro. Já liguei para Romeo Bissonette e ele vai trazer George
Kennedy, o detetive particular que é impagável quando bebe um ou dois
drinques. Pensei em levar alguns filés da Peter Luger’s, já lhe disse isso?
— Acho que não.
— Os melhores filés do mundo. Michael, você se deu conta do que aconteceu com aquela moça? Oitenta milhões de dólares!
— Ela vai poder trocar o Scoutie.
— Hã?
— Nada. Você vai vir amanhã à noite ou na terça?
— Terça pela manhã por volta das dez, chegando ao aeroporto do
condado de Castle. New England Air. Tudo bem, Mike? Você está esquisito.
— Estou bem. Estou como devia estar. Acho.
— O que significa isso?
Eu tinha perambulado pelo deck. A distância, um trovão roncou.
Estava quente como o inferno, nem um fiapo de brisa sequer. O pôr do sol
transformava-se num sinistro crepúsculo. O céu no poente parecia o branco
de um olho injetado.
— Não sei — eu disse. — Mas acho que a situação vai se esclarecer
sozinha. Eu pego você no aeroporto.
— Certo. — Então, numa voz abafada, quase reverente, John acrescentou: — Oitenta milhões de dólares, porra.
— É uma baita grana — concordei, desejando-lhe uma boa noite.

Na manhã seguinte, tomei café e comi torrada na cozinha, assistindo ao
boletim do homem do tempo. Como muitos naqueles dias, ele exibia uma
expressão ligeiramente louca, como se todas aquelas imagens de radar
Doppler o tivessem levado à beira de alguma coisa. Para mim é o clássico
olhar de viciados em video game.
— Vamos ter mais 36 horas desse clima e então passaremos por
uma grande mudança — dizia ele, e apontou para uma espuma cinza-escuro
pairando no Meio-Oeste. Minúsculos relâmpagos de desenho animado
dançaram nela como velas de ignição com defeito. Além da espuma e dos
relâmpagos, os Estados Unidos pareciam claros por todo o caminho até a
região desértica, e as temperaturas inscritas eram dez graus mais baixas.
— Veremos temperaturas na casa dos 30 e tantos hoje, e não podemos
esperar muita redução hoje à noite ou amanhã de manhã. Mas amanhã à
tarde essas tempestades frontais alcançarão o Maine ocidental, e acho que
a maioria de vocês vai querer se manter atualizado sobre as condições do
tempo. Antes de voltarmos a temperaturas mais frescas e céus claros na
quarta, provavelmente vamos ter violentas tempestades com trovões e
relâmpagos, chuva pesada e granizo em alguns lugares. Ciclones são raros
no Maine, mas em algumas cidades do Maine ocidental e central eles
podem ocorrer amanhã. É com você, Earl.
Earl, o camarada do noticiário matinal, tinha a aparência inocente e
robusta de um recém-aposentado de Chippendales, e lia o teleprompter
como um deles.
— Uau — disse ele. — É uma previsão e tanto, Vince. Ciclones são
uma possibilidade.
— Uau — falei. — Diga isso de novo, Earl. Repita até eu ficar
satisfeito.
— Caramba — disse Earl só para me irritar, e o telefone tocou. Fui
atendê-lo, dando uma olhada no gato oscilante ao passar por ele. A noite
tinha sido quieta, nenhum soluço, nenhum grito, nenhuma aventura noturna,
mesmo assim o relógio era inquietante. Pendia da parede morto e sem
olhos, como uma mensagem cheia de más notícias.
— Alô?
— Sr. Noonan?
Eu conhecia a voz, mas por um momento não consegui identificá-la.
Isso porque ela me chamou de sr. Noonan. Para Brenda Meserve eu fui Mike
por quase 15 anos.
— Sra. M.? Brenda? O que...
— Não posso mais trabalhar para o senhor — disse ela depressa. —
Desculpe não poder avisar antes, nunca parei de trabalhar para alguém sem
avisar antes, nem para o velho Croyden que é bêbado, mas tenho que fazer
isso. Entenda, por favor.
— Bill descobriu que eu liguei para você? Juro por Deus, Brenda, eu
não disse uma palavra...
— Não. Não falei com ele nem ele comigo. Mas não posso voltar a
Sara Laughs. Tive um sonho ruim ontem à noite. Um sonho horrível. Sonhei
que... alguma coisa está furiosa comigo. Se eu voltar aí, posso ter um
acidente. Pelo menos vai parecer um acidente, mas... não seria.
Isso é tolice, sra. M., eu quis dizer. A senhora certamente já passou
da idade de acreditar em histórias de acampamento sobre mortos-vivos,
fantasmas e assombrações.
Mas claro que não pude dizer essas coisas. O que andava ocorrendo
em minha casa não era nenhuma história de acampamento. Eu sabia disso,
ela também.
— Brenda, se te causei algum problema, lamento profundamente.
— Vá embora, sr. Noonan... Mike. Volte para Derry e fique lá por
enquanto. É a melhor coisa que pode fazer.
Ouvi as letras deslizando na porta da geladeira e me virei. Desta vez
vi de fato o círculo de frutas e legumes se formar. Ficara aberto na parte
de cima tempo suficiente para que quatro letras escorregassem para dentro
dele. Então um pequeno limão de plástico tapou o buraco e completou o círculo.
                                                        quife
disseram as letras, depois mudaram rapidamente de lugar transformando-se em
                                                         fique
A seguir, tanto o círculo quanto as letras se desmancharam.
— Mike, por favor. — A sra. M. estava chorando. — O funeral de
Royce é amanhã. Todas as pessoas importantes da TR, do pessoal da velha
guarda, vão comparecer.
Claro que iriam. Os velhos, os sacos de ossos que sabiam das
coisas e as guardavam para si mesmos. Só que alguns deles tinham
conversado com minha mulher. O próprio Royce tinha falado com ela. Agora
estava morto. Ela também.
— Seria melhor se você tivesse ido embora. Quem sabe você pode
levar aquela moça com você. Ela e a menina.
Mas poderia? De algum modo, eu achava que não. Achava que nós
três ficaríamos na TR até que aquilo terminasse... e estava começando a
ter um palpite de quando seria isso. Uma tempestade se aproximava. Uma
tempestade de verão. Talvez até um tornado.
— Brenda, obrigado por me ligar. Mas não vou deixar você ir embora.
Vamos chamar isso de licença, está bem?
— Tá bom... como você quiser. Pelo menos vai pensar no que eu
disse?
— Vou. Enquanto isso, não vou dizer a ninguém que você me ligou,
está bem?
— Não! — disse ela, parecendo chocada. E a seguir: — Mas eles vão
saber. Bill e Yvette... Dickie Brooks na oficina... o velho Anthony Weyland e
Buddy Jellison e todos os outros... eles vão saber. Adeus, sr. Noonan.
Lamento muito. Pelo senhor e por sua esposa. Sua pobre esposa. Lamento
muito. — Então desligou.
Fiquei com o telefone na mão por muito tempo. Então, como num
sonho, eu o coloquei no gancho, atravessei a sala e tirei o relógio sem olhos
da parede. Joguei-o no lixo e fui até o lago para dar umas braçadas, me
lembrando da história de W. F. Harvey, “Calor de agosto”, aquela que termina com a frase “O calor é suficiente para levar um homem à loucura”.

Não sou um mau nadador quando não estão me jogando pedras, mas minha
primeira etapa praia-plataforma de flutuação-plataforma-praia foi hesitante
e desarmônica — feia —, porque eu estava na expectativa de que algo
surgisse do fundo e me agarrasse. Talvez o garoto afogado. A segunda
etapa foi melhor, e na terceira eu estava apreciando as batidas mais
rápidas de meu coração e a sedosa frieza da água passando rápido por
mim. Na metade da quarta etapa, me alcei pela escada da plataforma e me
deixei cair sobre as tábuas, me sentindo melhor do que me sentia desde o
encontro com Devore e Rogette Whitmore na sexta à noite. Eu ainda estava
na zona, e por cima daquilo sentia uma gloriosa corrente de endorfina.
Naquele estado, até o desalento produzido pela sra. M. ao me dizer que
estava entregando o posto se desvaneceu. Ela voltaria quando tudo tivesse
acabado; claro que voltaria. Enquanto isso, provavelmente era melhor que
ficasse longe.
Alguma coisa está furiosa comigo. Eu poderia ter um acidente.
Realmente. Ela poderia se cortar. Poderia cair da escada do porão.
Poderia até ter um ataque ao atravessar correndo um estacionamento
quente.
Sentei e olhei para Sara na colina, o deck salientando-se acima do
declive, os degraus de dormentes que desciam. Eu estava fora da água só
por alguns minutos, mas o pegajoso calor do dia já se desdobrava sobre
mim, roubando meu ímpeto. A água ainda era como um espelho. Eu podia
ver a casa refletida nela, e o reflexo das janelas de Sara se tornaram olhos
vigilantes.
Eu achava que o foco de todos os fenômenos — seu epicentro —
estava muito provavelmente na Rua entre a verdadeira Sara e sua imagem
afogada. Foi aqui que aconteceu, disse Devore. E o pessoal da velha guarda?
Era provável que a maioria deles soubesse o que eu sabia: que Royce
Merrill tinha sido assassinado. E não era possível — e até provável — que o
que o matou pudesse ir até eles quando sentavam em seus bancos de
igreja ou se reunissem depois em volta do túmulo de Royce? Que essa
coisa pudesse roubar parte da força deles — sua culpa, suas lembranças,
sua qualidade de habitantes da TR — para ajudar a terminar o serviço?
Sentia-me muito contente de que John fosse estar no trailer no dia
seguinte, assim como Romeo Bissonette e George Kennedy, tão divertido
quando tomava um ou dois drinques. Contente que fosse mais do que
apenas Mattie, Ki e eu quando os velhos se reunissem para despachar
Royce Merrill. Já não me importava muito com o que tinha acontecido a
Sara e aos Red-Tops, ou mesmo com o que estava assombrando minha
casa. O que eu queria era passar pelo dia de amanhã, e que Mattie e Ki
também passassem. Almoçaríamos antes que a chuva começasse a cair e
então deixaríamos que a tempestade despencasse com seus raios e
trovões, como tinha sido previsto. Pensei que, se pudéssemos aguentá-la,
nossas vidas e nossos futuros poderiam clarear como o tempo.
— Está certo? — perguntei. Não esperava resposta nenhuma. Falar
alto era um hábito que eu tinha passado a ter desde que voltei para cá,
mas em algum ponto do bosque a leste da casa uma coruja piou. Só uma
vez, como se para dizer que estava certo, aguente a tempestade que as
coisas ficarão claras. O pio quase me trouxe algo à mente, uma associação
que no final se mostrou muito vaga para ser capturada. Tentei uma ou duas
vezes, mas a única coisa que surgiu em minha cabeça foi o título de um
velho e maravilhoso romance Ouvi a coruja chamar meu nome.
Rolei da plataforma para a água, agarrando os joelhos contra o peito
como um garoto brincando de bala de canhão. Mantive-me submerso o
máximo de tempo que pude até que o ar dos meus pulmões começasse a
parecer um líquido quente engarrafado, e então emergi para a superfície.
Fiquei mexendo com as pernas por uns 30 metros até recuperar o fôlego,
depois olhei para a Senhora Verde e me dirigi para a praia.
Saí da água, comecei a subir os dormentes, parei e voltei à Rua.
Fiquei ali por um momento tomando coragem, depois andei até onde a
bétula curvava seu ventre gracioso sobre a água. Agarrei a curva branca
como o fiz no entardecer de sexta-feira e olhei dentro d’água. Tinha certeza
de que ia ver a criança, seus olhos mortos erguidos para mim do inchado
rosto escuro, e que minha boca e garganta mais uma vez se encheriam
com o gosto do lago: socorro estou afogando, me solta, Ah, meu bom
Jesus, me solta. Mas não havia nada. Nenhum garoto morto, nenhuma
bengala do Boston Post envolvida pela fita, nenhum gosto do lago em minha
boca.
Eu me virei e espiei a parte dianteira da rocha destacando-se da
palha vegetal. Pensei Ali, bem ali, mas foi apenas um pensamento
consciente e calculado, a mente verbalizando uma lembrança. O cheiro de
decomposição e a certeza de que algo horrível aconteceu bem ali
desapareceu.
Quando voltei a casa e fui pegar um refrigerante, descobri que a
porta da geladeira estava nua. Todas as letras magnéticas, todas as frutas
e legumes tinham sumido. Nunca os encontrei. Provavelmente poderia tê-los
encontrado se houvesse mais tempo, mas naquela manhã de segunda-feira o tempo estava quase esgotado.

Depois de me vestir, liguei para Mattie. Conversamos sobre a futura festa,
sobre como Ki estava animada e Mattie nervosa de voltar a trabalhar na
sexta-feira — tinha medo de que os habitantes locais fossem maus com
ela, mas, de um modo esquisito e feminino, tinha mais medo ainda de que
fossem frios, que a desprezassem. Falamos sobre o dinheiro, e rapidamente
me certifiquei de que ela não acreditava na realidade do legado.
— Lance costumava dizer que seu pai era o tipo de homem que
mostraria um pedaço de carne a um cão faminto e depois o comeria ele
próprio — disse. — Mas já que recebi meu emprego de volta, não vou ficar
faminta, nem Ki.
— Mas e se houver mesmo essa grana toda?
— Ah, então passe ela para cá — disse rindo. — O que acha que
sou? Maluca?
— Não. Por falar nisso, o que está acontecendo com o pessoal da
geleira de Ki? Estão escrevendo coisas novas?
— Isso é o mais esquisito — disse ela. — Sumiram.
— O pessoal da geleira?
— Eles, não sei, mas as letras magnéticas que você deu a ela
desapareceram. Quando perguntei a Ki o que tinha feito com elas, ela
começou a chorar e disse que Alamagusalum as tinha levado. Disse que ele
as comeu, que as devorou no meio da noite enquanto todo mundo dormia.
— Alama o quê?
— Alamagusalum — disse Mattie, soando cansadamente divertida. —
Outra pequena herança do avô. É uma palavra indígena que significa “bichopapão”
ou “demônio”. Olhei na biblioteca. Kyra teve muitos pesadelos sobre
demônios, espíritos do mal e o alamagusalum no inverno passado e nesta
primavera.
— Que vovozinho doce ele era — eu disse sentimentalmente.
— É, uma verdadeira maravilha. Ela ficou triste de perder as letras;
mal consegui acalmá-la antes de a carona dela para a EBF chegar. Por falar
nisso, Ki quer saber se você vem para os Exercícios Finais na tarde de
sábado. Ela e o amigo Billy Turgeon vão contar a história de Moisés quando
bebê no flanelógrafo.
— Não vou perder isso — eu disse... mas é claro que perdi. Todos
perdemos.
— Alguma ideia sobre que fim levaram as letras, Mike?
— Não.
— As suas ainda estão no lugar?
— Estão, mas é claro que as minhas não conseguem escrever coisa
alguma — eu disse, olhando a porta vazia de minha própria geladeira. Minha
testa transpirava. Podia sentir o suor descendo pelas sobrancelhas como
óleo. — Você... não sei... sentiu alguma coisa?
— Quer saber se ouvi o malvado ladrão de alfabeto quando ele
entrou pela janela?
— Você sabe o que quero dizer.
— Acho que sim. — Uma pausa. — Tenho a impressão de que ouvi
algo naquela noite. Lá pelas três da manhã. Levantei e fui até o corredor.
Não tinha nada lá. Mas... você sabe como tem estado quente ultimamente.
— Sei.
— Bom, não no meu trailer, não na noite passada. Estava frio como
gelo. Juro que quase podia enxergar minha respiração.
Acreditei nela. Afinal de contas, eu tinha visto a minha.
— Então foram as letras na frente da geladeira?
— Não sei. Não andei por todo o corredor para olhar na cozinha. Dei
uma olhada por ali e depois voltei para a cama. Quase corri de volta para a
cama. Às vezes, a cama parece mais segura, sabe? — Ela riu
nervosamente. — É uma coisa de criança. As cobertas são a criptonita
contra o bicho-papão. Só que no início, quando entrei na cama... não sei...
achei que alguém já estava lá. Como se tivesse estado escondido no chão
debaixo da cama e então... quando fui checar o corredor... tivesse entrado
nela. Também não era ninguém legal.
Me dá meu pega-poeira, pensei, e estremeci.
— O quê? — perguntou Mattie asperamente. — O que é que você
disse?
— Perguntei quem você achou que era. Qual é o primeiro nome que
lhe veio à cabeça?
— Devore — respondeu. — Ele. Mas não havia ninguém. — Uma
pausa. — Gostaria que você estivesse lá.
— Eu também.
— Fico contente. Mike, o que é que você acha disso? Porque é muito
esquisito.
— Acho que talvez... — Por um momento estive à beira de lhe contar
o que tinha acontecido com minhas próprias letras. Mas se eu começasse a
falar, onde pararia? E até que ponto ela acreditaria? — ... talvez a própria Ki
tenha tirado as letras. Caminhou dormindo e jogou as letras debaixo do
trailer ou coisa parecida. Acha que seria possível?
— Acho que gosto ainda menos da ideia de Kyra caminhando por aí
dormindo do que da ideia de fantasmas de respiração gelada tirando as
letras da geladeira — disse Mattie.
— Leve-a para a cama com você esta noite — eu disse, e senti o
pensamento de Mattie disparar de volta como uma flecha: Preferia levar
você.
O que ela disse depois de uma pausa foi:
— Vai aparecer hoje?
— Acho que não — respondi. Ela estava lanchando um iogurte com
sabor de fruta enquanto conversávamos, comendo-o em pequenos bocados.
— Mas amanhã você vai me ver. Na reunião.
— Espero que a gente consiga comer antes da tempestade. Parece
que vai ser tremenda.
— Tenho certeza de que vamos conseguir.
— E você, ainda está pensando? Só pergunto porque sonhei com você
quando finalmente consegui dormir de novo. Sonhei que me beijava.
— Ainda estou pensando — eu disse. — Pensando muito.
Mas, na verdade, não me lembro de pensar muito sobre coisa alguma
naquele dia. O que me lembro é de ser levado cada vez mais para dentro
da zona, algo que expliquei tão mal. Quase ao crepúsculo, saí para um longo
passeio apesar do calor — por todo o caminho em que a estrada 42 se
junta à rodovia. Ao voltar, parei à beira do prado de Tidwell, observando a
luz desaparecer do céu e ouvindo o trovão rolar em algum ponto em New
Hampshire. Mais uma vez tive a sensação de como a realidade era frágil,
não apenas ali, mas em toda parte; como se esticava feito pele por cima
do sangue e tecidos de um corpo que nunca podemos conhecer claramente
nesta vida. Eu olhava para árvores e via braços; olhava para arbustos e via
rostos. Fantasmas, disse Mattie. Fantasmas de respiração gelada.
O tempo também era frágil, me parecia. Kyra e eu tínhamos
realmente estado na Feira de Fryeburg — alguma versão dela, de qualquer
forma; tínhamos realmente visitado o ano de 1900. E à beira do prado em
que os Red-Tops quase estavam agora, onde já tinham estado no passado,
em suas organizadas cabaninhas. Praticamente podia ouvir o som de seus
violões, o murmúrio de suas vozes e seus risos; quase podia ouvir o cintilar
de suas lanternas e sentir o cheiro da carne de boi e de porco sendo frita
por eles. “Diga, benzinho, ainda se recorda de mim?”, dizia uma das
canções de Sara. “Bem, acho que pra você meu mel chegou ao fim.”
Algo chacoalhou na vegetação rasteira à minha esquerda. Eu me virei
para aquele lado, esperando ver Sara sair do bosque usando o vestido de
Mattie, assim como seus tênis brancos. Na penumbra, pareceriam quase
flutuar sozinhos até que se aproximassem de mim...
Não havia ninguém lá, claro. Indubitavelmente não tinha nada a não
ser a marmota vindo para casa, depois de um duro dia no escritório, mas
eu já não queria ficar ali, observando como a luz desaparecia do dia e o nevoeiro subia do chão. Eu me virei para casa.

Em vez de entrar em Sara Laughs quando voltei, tomei o atalho para o
estúdio de Jo, onde não tinha estado desde a noite em que levei minha IBM
de volta num sonho. Clarões intermitentes de relâmpagos distantes
iluminavam o caminho.
O estúdio estava quente, mas não bolorento. Podia sentir um aroma
apimentado agradável, e me perguntei se isso podia vir de alguma das
ervas de Jo. Havia um ar-condicionado ali que funcionava — liguei-o e então
simplesmente fiquei à sua frente durante certo tempo. Tanto ar frio no
meu corpo superaquecido não era provavelmente saudável, mas produzia
uma sensação maravilhosa.
Fora isso, não me sentia nada maravilhoso. Olhei em torno com uma
crescente sensação de algo pesado demais para ser mera tristeza; parecia
desespero. Acho que causado pelo contraste entre quão pouco tinha sido
deixado de Jo em Sara Laughs e quanto dela ainda permanecia no estúdio.
Imaginava nosso casamento como uma espécie de teatro — e não é isso
que é o casamento, em grande parte?, brincar de casinha? —, onde só
metade do negócio era mantido seguro. Unido por pequenos ímãs ou cabos
escondidos. Algo tinha surgido e pegado nossa casinha por uma ponta —
mais fácil é impossível, e suponho que deveria ser grato por esse algo não
ter resolvido chutar a pobre coisa por ali. Ele só pegou aquela ponta, como
se vê. As minhas coisas tinham ficado no lugar, mas todas as coisas de Jo
tinham escorregado para...
Fora da casa até ali.
— Jo? — perguntei, sentando na cadeira. Nenhuma resposta.
Nenhuma pancada na parede. Nenhum corvo ou coruja gritando dos bosques.
Pus a mão na escrivaninha, onde havia estado a máquina de escrever, e a
fiz deslizar por ali, levantando uma camada de poeira.
— Sinto falta de você, meu amor — eu disse, e comecei a chorar.
Quando as lágrimas terminaram — de novo —, enxuguei o rosto com
a barra da camiseta como uma criança e olhei ao redor. Lá estava a foto
de Sara Tidwell na escrivaninha e outra foto de que não me lembrava na
parede — esta última era velha, tingida de sépia e amadeirada. Seu ponto
focal era uma cruz de madeira de vidoeiro da altura de um homem, numa
pequena clareira num declive sobre o lago. Provavelmente a clareira já tinha
sumido da geografia agora, havia muito preenchida pelas árvores.
Olhei para os jarros de ervas e pedaços de cogumelo de Jo, seus
arquivos e pedaços de colcha. O tapetinho verde no chão, o pote com os
lápis sobre a escrivaninha, lápis que ela havia tocado e usado. Segurei um
deles e pousei-o sobre uma folha de papel em branco por um momento ou
dois, mas nada aconteceu. Eu tinha uma sensação de vida naquele cômodo,
e a sensação de ser observado... mas não de ser ajudado.
— Sei um pouco disso, mas não o suficiente — falei. — De todas as
coisas que não sei, talvez a mais importante seja quem escreveu “ajude
ela” na geladeira. Foi você, Jo?
Nenhuma resposta.
Fiquei sentado um pouco mais — esperando contra toda
probabilidade, eu acho —, depois me levantei, desliguei o ar-condicionado,
apaguei as luzes e voltei para a casa, caminhando sob as brilhantes e
suaves intermitências dos dispersos relâmpagos. Sentei um pouco no deck
contemplando a noite. Em certo momento, percebi que havia tirado a fita de
seda azul do bolso e a enrolava nervosamente para a frente e para trás
entre os dedos, fazendo camas de gato sem parar. Teria ela vindo
realmente do ano 1900? A ideia parecia perfeitamente doida e
perfeitamente sã ao mesmo tempo. A noite se estendia quente e abafada.
Imaginei velhos por toda a TR — talvez em Motton e Harlow também —
pegando suas roupas de funeral para amanhã. No trailer duplo da estrada
Wasp Hill, Ki estava sentada no chão assistindo ao vídeo de Mogli, o menino
lobo — Balu e Mogli cantavam “The Bare Necessities”. Mattie estava no
sofá com ela, os pés para cima, lendo o novo romance de Mary Higgins
Clark e cantando enquanto o fazia. As duas usavam pijamas curtos, o de Ki
rosa e o de Mattie branco.
Após algum tempo, perdi minha percepção delas; a coisa se esvaiu
como os sinais das ondas de rádio tarde da noite. Fui para o quarto norte
despido e entrei sob o lençol de cima de minha cama desfeita. Adormeci
quase imediatamente.
Acordei no meio da noite com alguém passando um dedo quente para
cima e para baixo nas minhas costas. Fiquei de bruços e, quando o
relâmpago iluminou o quarto, vi que havia uma mulher na cama comigo. Era
Sara Tidwell. Ela sorria. Seus olhos não tinham pupila. “Ah, benzinho, estou
quase de volta”, sussurrou ela no escuro. Tive a impressão de que estendia
a mão para mim de novo, mas quando o relâmpago seguinte se acendeu, aquele lado da cama estava vazio.

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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