segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Capítulo Vinte e Dois


Finalmente consegui entrar na zona, mas nada pude fazer quando cheguei
lá. Mantive perto um bloco de anotações — listas de personagens,
referências de páginas, cronologias — e rabisquei um pouco nele, mas a
folha de papel na IBM continuava em branco. Não havia batimentos
cardíacos estrondeando, olhos latejando ou dificuldade de respirar — em
outras palavras, nenhum acesso de pânico —, mas também não havia
nenhuma história. Andy Drake, John Shackleford, Ray Garraty, a bela Regina
Whiting... permaneciam de costas, recusando-se a falar ou a se mover. O
manuscrito estava no lugar de sempre, à esquerda da máquina, as páginas
presas por um bonito pedaço de quartzo que eu tinha encontrado na
estrada, mas nada estava acontecendo. Nada.
Reconheci ali uma ironia, talvez até uma moral. Durante anos, fugi
dos problemas do mundo real, escapando para diversas Nárnias da minha
imaginação. Agora o mundo real estava cheio de bosques densos e
assombrosos, havia coisas com dentes em alguns deles, e o guarda-roupa
estava trancado para mim.
Kyra, eu havia escrito, colocando seu nome dentro de um formato
festonado que supostamente seria uma rosa-de-cem-folhas. Abaixo dele eu
tinha desenhado um pedaço de pão com uma boina inclinada de qualquer
maneira no alto da crosta. A concepção de Noonan de uma rabanada. As
letras L. B. rodeadas de arabescos. Uma camisa com a imagem rudimentar
de um pato. Ao lado dela, escrevi QUACK QUACK. Abaixo do QUACK
QUACK, acrescentei Devia fugir para longe, “Bon Voyage”.
Em outro lugar da folha, escrevi Dean, Auster e Devore. Eram os que
mais pareciam estar lá, os mais perigosos. Porque tinham descendentes?
Mas certamente todos os sete deviam tê-los, não é? Naquela época, a
maioria das famílias era enorme. E onde é que eu tinha estado? Eu
perguntei, mas Devore não quis dizer.
Aquilo não parecia mais um sonho às 9h30 de uma manhã de
domingo melancolicamente quente. Restava o que, exatamente? Visões?
Viagem no tempo? E se tinha um objetivo para tal viagem, qual seria ele?
Qual seria a mensagem, e quem estava tentando enviá-la? Eu me lembrei
claramente do que eu disse pouco antes de sair do sonho no qual caminhei
dormindo para o estúdio de Jo e trouxe de lá minha máquina de escrever:
Não acredito nessas mentiras. Nem acreditava agora. Até que eu pudesse
ver pelo menos parte da verdade, poderia ser mais seguro não acreditar
absolutamente em nada.
No alto da folha em que estava rabiscando, em letras com traços
fortes, escrevi a palavra PERIGO!, depois fiz um círculo em torno dela. Do
círculo tracei uma flecha até o nome de Kyra. De seu nome puxei outra
flecha para Devia fugir para longe, “Bon Voyage” e acrescentei MATTIE.
Abaixo do pão de boina desenhei um pequeno telefone. Acima dele
coloquei um balão de história em quadrinho com a palavra R-R-RING! Ao
terminar de fazê-lo, o telefone sem fio tocou. Estava na balaustrada do
deck. Fiz um círculo em torno de MATTIE e atendi.
— Mike? — Ela parecia animada. Feliz. Aliviada.
— É. Como vai?
— Ótima! — disse ela, e eu fiz um círculo em torno de L. B. no meu
bloco.
— Lindy Briggs ligou dez minutos atrás. Acabei de falar com ela.
Mike, ela me devolveu o emprego! Não é maravilhoso?
Claro. E maravilhoso como isso a manteria na cidade. Fiz um xis em
cima de Devia fugir para longe, “Bon Voyage”, sabendo que Mattie não iria.
Não agora. E como é que eu podia lhe pedir que o fizesse? Pensei de novo
Se pelo menos eu soubesse um pouco mais...
— Mike? Você está...
— É maravilhoso mesmo — eu disse. Mentalmente eu podia vê-la em pé na cozinha, enrolando o fio encaracolado do telefone em volta do dedo,
as pernas longas e ariscas abaixo do short de brim. Eu podia ver a blusa
que usava, uma camiseta branca com um pato amarelo nadando na parte
da frente. — Espero que Lindy tenha tido a dignidade de parecer
envergonhada do que fez. — Tracei um círculo em torno da camiseta que
desenhara.
— Teve. E foi sincera o suficiente para... bem, me desarmar. Disse
que a tal Whitmore falou com ela no início da semana passada. Foi muito
franca e objetiva, Lindy disse. Eu devia ser mandada embora
imediatamente. Se isso acontecesse, o dinheiro, os equipamentos de
computador e software que Devore canalizava para a biblioteca
continuariam chegando. Caso contrário, o fluxo de artigos e dinheiro pararia
imediatamente. Ela disse que tinha que equilibrar o bem da comunidade
com o que sabia que era errado... disse que aquela era uma das decisões
mais duras que já tinha tomado...
— Sei. — No bloco, minha mão tinha se movido sozinha como um
copo entre letras numa sessão mediúnica, escrevendo as palavras POR
FAVOR POSSO POR FAVOR? — Provavelmente há alguma verdade nisso,
mas, Mattie... quanto é que você acha que Lindy ganha?
— Não sei.
— Aposto que é mais do que três bibliotecárias de cidade pequena,
em todo o estado do Maine, juntas.
Ao fundo, escutei Ki: “Posso falar, Mattie? Posso falar com Mike?
Por favor, posso, por favor?”
— Um minuto, meu amor. — E continuou para mim: — Talvez. Só
sei é que estou com meu emprego novamente, o resto são águas passadas.
Na página, desenhei um livro. Depois, uma série de círculos
entrelaçados entre ele e a camiseta de pato.
— Ki quer falar com você — disse Mattie, rindo. — Ela diz que vocês
dois foram à Feira de Fryeburg na noite passada.
— Opa, quer dizer que eu tive um encontro com uma garota bonita e
dormi o tempo todo?
— Parece. Está preparado para ela?
— Estou.
— Tudo bem, aí vai a tagarela.
Houve um roçar quando o telefone mudou de mãos, depois Ki falou:
— Deúbei você na Feira, Mike! Deubei meu própio zaqueiro!
— Derrubou? Foi um sonho e tanto, não foi, Ki?
Houve um longo silêncio do outro lado. Eu podia imaginar Mattie se
perguntando o que tinha acontecido com a tagarela. Finalmente Ki disse
numa voz hesitante:
— Você também estava lá... — Tiu. — A gente viu as moças que
dançavam como serpente... o poste com o sino... entramos na Casa
Fantasma... você caiu no barril! Não foi um sonho... foi?
Eu poderia tê-la convencido de que tinha sido um sonho, mas de
repente aquilo pareceu má ideia, perigosa de certo modo.
— Você estava com um bonito vestido e chapéu — falei.
— É! — Ela soou tremendamente aliviada. — E você tinha...
— Kyra, pare. Ouça aqui.
Ela parou de repente.
— É melhor não falar muito sobre esse sonho com ninguém, eu acho.
Nem para sua mãe, nem para ninguém. Só para mim.
— Só pra você.
— É. E a mesma coisa sobre o pessoal da geladeira. Tá?
— Tá. Mike, tinha uma moça com as roupas de Mattie.
— Eu sei. — Era bom que ela falasse, tinha certeza disso, mas de
qualquer forma perguntei: — Onde é que Mattie está agora?
— Regando as flores. Temos um monte de flores, um bilhão pelo
menos. Tenho que tirar a mesa. É uma tarefa. Mas eu não me importo.
Gosto de tarefas. Comemos rabanadas. Sempre comemos nos domingos. É
gostoso, principalmente com xarope de morango.
— Eu sei — falei, desenhando uma flecha para o pedaço de pão de
boina. — Rabanada é ótimo. Ki, você contou para sua mãe sobre a moça
com o vestido dela?
— Não. Achei que ela podia ficar com medo. — Sua voz abaixou: —
Lá vem ela!
— Tudo bem... mas temos um segredo, não é?
— É.
— Posso falar com Mattie de novo?
— Pode. — Sua voz se afastou um pouco. — Mamãezinha, Mike quer
falar com você. — Depois ela voltou: — Tá ocupado hoje? A gente podia
fazer outro piquenique.
— Hoje não posso, Ki. Tenho que trabalhar.
— Mattie nunca trabalha aos domingos.
— Bem, quando estou escrevendo um livro, trabalho todos os dias.
Tenho que trabalhar, senão esqueço a história. Mas talvez a gente faça um
piquenique na terça. Um churrasco na sua casa.
— Falta muito para terça?
— Não muito. É depois de amanhã.
— Demora muito para escrever um livro?
— Mais ou menos.
Ouvi Mattie dizendo a Ki para lhe dar o telefone.
— Vou dar, só mais um segundo. Mike?
— Fala.
— Eu amo você.
Eu estava ao mesmo tempo comovido e aterrorizado. Por um
momento tive certeza de que minha garganta ia se trancar do mesmo
modo que meu peito fazia quando eu tentava escrever. Então ela se soltou
e eu disse:
— Eu também amo você, Ki.
— Mattie vai falar.
Mais uma vez ouvi o barulho do telefone mudando de mãos e Mattie
disse:
— Isso refrescou sua lembrança do encontro com minha filha,
cavalheiro?
— Bom, certamente refrescou a dela. — Havia um vínculo entre
Mattie e eu, mas não se estendia a isso, eu tinha certeza.
Ela riu. Eu adorava o modo como ela parecia estar naquela manhã, e
não queria pô-la para baixo... mas também não queria que ela confundisse a
linha branca no meio da estrada com o acostamento.
— Mattie, você ainda precisa ter cuidado, sabe? Só porque Lindy
Briggs lhe devolveu o emprego não quer dizer que todos na cidade ficaram
de repente seus amigos.
— Sei disso — disse ela. Tive vontade de lhe perguntar de novo se
ela consideraria a ideia de levar Ki para Derry por um tempo. Elas podiam
morar na minha casa, ficar enquanto durasse o verão, se aquilo fosse
necessário para que as coisas voltassem ao normal por ali. Mas ela não o
faria. Quando se tratou de aceitar minha oferta de um caro e talentoso
advogado de Nova York, ela não teve escolha. Mas no presente caso, tinha.
Ou achava que tinha, e como eu poderia fazê-la mudar de ideia? Não
possuía fatos lógicos e conectados a apresentar; apenas uma vaga forma
escura, como algo jazendo sob 20 centímetros de gelo capaz de cegar.
— Quero que tenha cuidado sobretudo com dois homens — eu disse.
— Um deles é Bill Dean. O outro é Kenny Auster. Ele é aquele do...
— ... cachorro grande que usa o lenço. Ele...
— Esse é o Mitilo! — gritou Ki à média distância. — Mitilo lambeu o
meu rosto!
— Vá lá para fora brincar, meu amor.
— Estou tirando a mesa.
— Você pode acabar depois. Vá brincar lá fora. — Houve uma pausa
enquanto ela observava Ki passar pela porta levando Strickland consigo.
Embora a criança tivesse saído do trailer, Mattie ainda manteve o tom
baixo de alguém que não quer ser escutada por acaso: — Você está
querendo me assustar?
— Não — eu disse, desenhando repetidos círculos em torno da
palavra PERIGO. — Mas quero que tenha cuidado. Bill e Kenny podem ter
estado no time de Devore, como Footman e Osgood. Não me pergunte por
que acho isso, pois não tenho nenhuma resposta satisfatória. É só uma
sensação, mas desde que voltei à TR minhas sensações estão diferentes.
— Explique melhor.
— Você está usando uma camiseta com um pato?
— Como é que sabe? Ki lhe disse?
— Ela levou o cachorrinho de pelúcia do McLanche Feliz para fora
com ela?
Uma longa pausa. Finalmente Mattie falou:
— Meu Deus — numa voz tão baixa que quase não consegui ouvi-la.
Então de novo: — Como...
— Não sei como. Também não sei se você ainda está numa...
situação má, ou por que, mas sinto que está. Que vocês duas estão. — Eu
podia ter dito mais, porém tive medo de Mattie achar que eu tinha saído
completamente dos trilhos.
— Ele morreu! — explodiu. — Aquele velho morreu! Por que ele não
pode nos deixar em paz?
— Talvez tenha deixado. Talvez eu esteja errado sobre tudo isso.
Mas ter cuidado não faz mal, faz?
— Não — disse ela. — Isso geralmente é verdade.
— Geralmente?
— Por que não vem me ver, Mike? Talvez nós possamos ir à Feira
juntos.
— Talvez nesse outono a gente possa ir. Os três.
— Eu gostaria.
— Enquanto isso, estou pensando sobre a chave.
— Pensar é metade de seu problema, Mike — disse ela, e riu de
novo. Tristemente, pensei. E vi o que queria dizer. O que ela não entendia
era que sentimento era a outra metade de meu problema. É um estilingue,
e no final acho que mata com pedradas a maioria de nós.
Trabalhei por um tempo e então levei a IBM de novo para casa, deixando o
manuscrito em cima dela. Tinha terminado com aquilo, pelo menos por
enquanto. Não mais procurar o caminho de volta através do guarda-roupa;
não mais Andy Drake e John Shackleford até que tudo aquilo tivesse
terminado. E, enquanto eu vestia calças compridas e uma camisa com
botões pela primeira vez no que parecia se estender por semanas, ocorreume
que talvez algo — alguma força — vinha tentando me sedar com a história que eu estava escrevendo. Com a capacidade de trabalhar de novo.
Fazia sentido; o trabalho sempre foi minha droga, melhor até do que birita
ou o calmante que ainda guardo no armário de remédios do banheiro. Ou
talvez o trabalho fosse apenas o sistema de entrega, a seringa com todos
os sonhos dentro dela. Talvez a verdadeira droga fosse a zona. Estar na
zona. Senti-la, como às vezes dizem os jogadores de basquete. Eu estava
na zona, e realmente a sentia.
Peguei as chaves do Chevrolet no balcão e olhei para a geladeira
enquanto o fazia. Os ímãs estavam num círculo de novo. No meio havia um
recado que eu tinha visto antes e que era agora instantaneamente
compreensível, graças às letras extras:
                                                     ajude ela
— Estou fazendo o máximo que posso — eu disse, e saí.


A uns 5 quilômetros ao norte na rota 68 — então já na parte dela conhecida
como estrada Castle Rock — há uma estufa com uma loja na frente.
Chama-se Slips’n Greens, e Jo costumava passar um bom tempo por lá,
comprando suprimentos de jardinagem ou apenas batendo papo com as
duas mulheres que dirigiam o lugar. Uma delas era Helen Auster, a mulher
de Kenny.
Cheguei lá por volta das dez naquela manhã de domingo (estava
aberta, claro: na temporada turística quase todos os lojistas de Maine
viram pagãos) e estacionei perto de um carrão com placas de Nova York.
Fiz uma pausa suficientemente longa para ouvir a previsão do tempo —
umidade e calor contínuos por outras 48 horas pelo menos — e então saí.
Uma mulher em trajes de banho e com um gigantesco chapéu amarelo de
verão emergiu da loja com um saco de musgo de turfa aninhado nos
braços. Ela me deu um pequeno sorriso. Devolvi-o com oitenta por cento de
juros. Ela era de Nova York, o que significava que não era uma marciana.
A loja estava até mais quente e úmida do que a branca manhã do
lado de fora. Lila Proulx, uma das sócias, estava ao telefone. Havia um
pequeno ventilador ao lado da caixa registradora, e ela estava em pé
diretamente na frente dele, sacudindo a frente da blusa sem mangas. Ela
me viu e acenou. Acenei também, sentindo-me como outra pessoa.
Trabalho ou não, eu ainda estava na zona. Ainda a sentia.
Caminhei pela loja, pegando algumas coisas quase ao acaso,
observando Lila com rabo de olho e esperando que largasse o telefone para
que eu pudesse falar com ela... e durante todo o tempo meu próprio estado
fora do ar continuava normalmente. Finalmente ela desligou e me aproximei
do balcão.
— Michael Noonan, que colírio para os olhos! — disse ela, e começou
a registrar minhas compras. — Lamentei profundamente quando soube de
Johanna. Quero dizer isso de uma vez. Jo era uma pessoa muito querida.
— Obrigado, Lila.
— De nada. Não é preciso dizer mais nada sobre isso, mas com uma
coisa dessas é melhor falar de uma vez. Vai fazer um pouco de jardinagem,
vai?
— Vaah fazeeh um pouco de jardinagem, vaah?, disse com seu forte
sotaque.
— Se esfriar um pouco.
— É! Não está difícil? — Sacudiu novamente a parte de cima da
blusa e me mostrou como estava difícil, depois apontou uma de minhas
compras. — Quer isso numa bolsa especial? Sempre seguro, nunca em
apuros, é o meu ditado.
Concordei com a cabeça, depois olhei para o pequeno quadro-negro
inclinado contra o balcão. MIRTILOS FRESCOS, dizia o aviso a giz. SAIU A
SAFRA!
— Quero também um quartilho de mirtilo — pedi. — Se não forem
da Friday’s. Posso fazer melhor do que a Friday’s.
Ela concordou vigorosamente com a cabeça, como para dizer que
sabia, sem sombra de dúvida, que eu poderia.
— Esses aqui estavam no pé até ontem. Estão suficientemente
frescos pra você?
— Maravilha — respondi. — Mirtilo é o nome do cachorro do Kenny,
não é?
— Ele não é engraçado? Nossa, adoro um cachorro grande, se for
bem-comportado. — Virou-se, pegou um quartilho de mirtilos de sua
pequena geladeira e colocou-os em outra sacola para mim.
— Onde está Helen? — perguntei. — É seu dia de folga?
— Que nada — disse Lila. — Se fica na cidade, não se pode tirá-la
daqui a não ser que você bata nela com uma bengala. Ela, Kenny e as
crianças foram para Taxachusetts. Eles e a família do irmão se juntam e
alugam um chalé à beira-mar por duas semanas todos os verões. Eles
todos foram. O velho Mirtilo vai perseguir as gaivotas até cair. — Soltou
um riso alto e vigoroso. Fez-me pensar em Sara Tidwell. Ou talvez fosse o
modo como Lila me olhou ao fazê-lo. Não havia nenhum riso em seus olhos
pequenos e reflexivos, friamente curiosos.
Pelo amor de Deus, quer parar com isso?, eu disse a mim mesmo.
Eles não podem estar todos juntos nisso, Mike!
Será que não? Existe uma coisa como consciência de cidade —
qualquer um que duvidar disso jamais esteve numa reunião de cidade
pequena da Nova Inglaterra. Onde há uma consciência não é provável que
haja uma subconsciência? E se Kyra e eu estávamos fazendo a velha
mistura de mentes, outras pessoas da TR-90 não poderiam também fazê-
lo, talvez mesmo sem saber? Todos partilhávamos o mesmo ar e a mesma
terra: partilhávamos o lago e o aquífero que jaz abaixo de tudo, água
enterrada com sabor de rochas e minerais. Partilhávamos a Rua também,
aquele lugar onde bons cachorrinhos e cães maus podiam andar lado a lado.
Quando comecei a me mover para a saída com as compras numa
sacola de pano com alça, Lila disse:
— Que vergonha essa história de Royce Merrill. Você soube?
— Não.
— Caiu da escada de seu porão ontem à noite. Não consigo atinar o
que um homem da idade dele estava fazendo numa escada tão íngreme,
mas acho que, quando se chega à idade dele, a gente tem as próprias
razões para fazer as coisas.
Ele morreu?, ia começar a perguntar, depois mudei a frase. Não era
aquele o modo de se perguntar isso na TR.
— Ele passou dessa para melhor?
— Ainda não. O Resgate de Motton levou-o para o Hospital Geral do
condado de Castle. Ele está em coma. Comba — foi o que disse —, eles
acham que ele não vai acordar, pobre sujeito. Um pedaço da história vai
morrer com ele.
— Acho que é verdade. — Bons ventos o levem, pensei. — Ele tem
filhos?
— Não. A família Merrill existe na TR há duzentos anos; um Merrill
morreu no Cemitério Ridge. Mas todas as famílias antigas estão
desaparecendo agora. Um bom dia para você, Mike. — Ela sorriu. Seus olhos
continuaram vazios e ponderadores.
Entrei no Chevy, coloquei a bolsa com as compras no banco do
passageiro e fiquei ali sentado, deixando o ar-condicionado jogar ar frio no
meu rosto e pescoço. Kenny Auster estava em Taxachusetts. Aquilo era bom. Um passo na direção certa.
Mas ainda havia o meu caseiro.

— Bill não está — disse Yvette. Ela ficou à porta, bloqueando-a tão bem
como podia (pouco se pode fazer nesse sentido quando se mede 1,60 metro
e se pesa mais ou menos 45 quilos), me estudando com o olhar penetrante
de um leão de chácara de boate negando retorno ao bêbado que já foi
jogado para fora pela orelha uma vez.
Eu estava no alpendre do chalé estilo Cape Cod mais arrumado que
já se viu, que fica no alto da Peabody Hill e tem vista para New Hampshire
e para o quintal de Vermont. Os galpões de equipamento de Bill estavam
alinhados à esquerda da casa, todos eles pintados do mesmo tom de cinza,
cada um deles com uma placa: DEAN CASEIRO, n
º 1, n
º 2 e n
º 3.
Estacionado na frente do n
º 2 estava o Dodge Ram de Bill. Olhei para ele,
depois novamente para Yvette. Seus lábios se apertaram mais um pouco.
Se o fizessem ainda mais, imaginei que teriam desaparecido totalmente.
— Ele foi para North Conway com Butch Wiggins — disse ela. —
Foram no caminhão de Butch. Para...
— Não é preciso mentir para mim, querida — disse Bill por trás dela.
Faltava ainda uma hora para o meio-dia, com muito Dia do Senhor
pela frente, mas eu jamais tinha visto um homem parecer tão cansado.
Andou pesadamente pelo vestíbulo e, quando saiu das sombras e chegou à
claridade — o sol estava finalmente ardendo através da obscuridade —, vi
que Bill agora parecia ter a idade que tinha. Cada ano dela, e talvez dez a
mais. Usava suas habituais camisa e calça cáqui — Bill Dean seria um
homem adepto das camisas de colarinho até o dia de sua morte —, mas
seus ombros pareciam caídos, quase torcidos, como se tivesse passado
uma semana carregando baldes pesados demais para ele. O despencar de
seu rosto finalmente começara, algo indefinível que faz os olhos parecerem
grandes demais, o maxilar proeminente demais, a boca um pouco frouxa.
Ele parecia velho. Também não tinha filhos que continuassem a linha de
trabalho da família; todas as antigas famílias estavam desaparecendo,
disse Lila Proulx. E talvez isso fosse bom.
— Bill — começou ela, mas ele ergueu uma das suas grandes mãos
para detê-la. Os dedos calosos tremeram um pouco.
— Vá para a cozinha um instante — disse a ela. — Preciso falar com
meu compadre aqui. Não vai demorar.
Yvette olhou para ele, e quando voltou a me fitar seus lábios tinham
se reduzido a zero. Havia apenas uma linha preta no lugar deles, como uma
marca riscada a lápis. Vi, com lamentável claridade, que ela me odiava.
— Não o canse — disse para mim. — Ele não tem dormido. É o
calor. — Ela entrou novamente no vestíbulo, as costas rígidas e os ombros
duros desaparecendo nas sombras provavelmente frescas. Engraçado,
sempre parece estar fresco nas casas das pessoas idosas.
Bill saiu para o alpendre e enfiou as grandes mãos nos bolsos das
calças sem me estender uma delas.
— Não tenho nada a lhe dizer. Você e eu estamos rompidos.
— Por quê, Bill? Por que estamos rompidos?
Ele olhou o poente onde as colinas mergulhavam na névoa ardente de
verão, desaparecendo antes de poderem se tornar montanhas, e não disse
nada.
— Estou tentando ajudar aquela moça — falei.
Ele me lançou um olhar de soslaio que pude ler suficientemente bem.
— Sei. Ajudando é a entrar nas calças dela. Vejo homens que
aparecem de Nova York e Nova Jersey com garotas. Fins de semana de
verão, fins de semana de esqui, não importa. Homens que andam com
moças daquela idade sempre parecem iguais, têm as línguas penduradas
para fora mesmo quando estão de boca fechada. Agora você também está
com essa aparência.
Fiquei zangado e constrangido ao mesmo tempo, mas resisti ao
impulso de acompanhá-lo naquela direção. Era o que ele queria.
— O que aconteceu aqui? — perguntei. — O que é que seus pais,
avós e bisavós fizeram a Sara Tidwell e à família dela? Eles os obrigaram a
se mudar?
— Não foi preciso — disse Bill, olhando por cima de mim para as
colinas. Seus olhos estavam quase tão úmidos como se estivessem
marejados, mas o maxilar estava contraído e duro. — Eles se mudaram por
conta própria. Nunca houve um crioulo que não tivesse coceira nos pés,
meu pai costumava dizer.
— Quem pôs a armadilha que matou o filho de Son Tidwell? Foi seu
pai, Bill? Foi Fred?
Seus olhos se moveram; mas o maxilar não.
— Não sei do que está falando.
— Eu o ouço chorando em minha casa. Sabe o que é ouvir uma
criança morta chorando em sua casa? Um canalha o prendeu numa
armadilha como se ele fosse uma doninha e eu o ouço chorando na minha
casa, porra!
— Vai precisar de outro caseiro — disse Bill. — Não posso mais
trabalhar para você. Não quero. Quero é que saia da minha varanda.
— O que está acontecendo? Me ajude, pelo amor de Deus.
— Vou lhe ajudar com o bico do sapato se você não sair daqui agora.
Olhei-o por mais um momento, abarcando os olhos úmidos e o
maxilar trancado, sua natureza dividida inscrita em seu rosto.
— Perdi minha mulher, seu canalha. Uma mulher de quem você dizia
gostar.
Então o maxilar dele finalmente se moveu. Bill me olhou com
surpresa e ofensa.
— Isso não aconteceu aqui — disse ele. — Não teve nada a ver com
este lugar. Ela podia estar fora da TR porque... bem, podia ter as razões
dela para estar fora da TR... mas ela simplesmente teve um ataque. Teria
acontecido em qualquer lugar. Qualquer um.
— Não acredito nisso. Acho que você também não. Algo a seguiu até
Derry, talvez porque ela estivesse grávida...
Os olhos de Bill se arregalaram. Dei-lhe a chance de dizer alguma
coisa, mas ele não a pegou.
— ... ou talvez porque ela soubesse demais.
— Ela teve um ataque. — A voz de Bill não estava muito firme. —
Eu mesmo li no obituário. Teve a porcaria de um ataque.
— O que é que ela descobriu? Diga, Bill, por favor.
Houve uma longa pausa. Até que esta terminasse, me dei ao luxo de
achar que de fato eu o podia estar convencendo.
— Só tenho mais uma coisa a lhe dizer, Mike: fique longe. Pela
salvação de sua alma imortal, fique longe e deixe as coisas seguirem seu
curso. Elas vão seguir, se você ficar longe ou não. O rio quase chegou ao
mar; não vai ser arruinado por gente como você. Fique longe. Pelo amor de
Deus.
O senhor se importa com sua alma, sr. Noonan? A borboleta de Deus
presa num casulo de carne que em breve vai feder como a minha?
Bill se virou e caminhou para a porta, os saltos das botas de
trabalhador ressoando nas tábuas pintadas.
— Fique longe de Mattie e de Ki — falei. — Se você se aproximar
daquele trailer...
Ele se virou, o sol enevoado cintilando nos sulcos abaixo de seus
olhos. Pegou uma bandana do bolso de trás e enxugou o rosto.
— Não vou me mover dessa casa. Para início de conversa, eu
gostaria de jamais ter voltado das minhas férias! Mas voltei, principalmente
por sua causa, Mike. Aquelas duas lá da Wasp Hill não têm que temer nada
de mim. De mim, não.
Entrou e fechou a porta. Continuei ali, fitando, sentindo a irrealidade
daquilo — certamente eu não podia ter tido uma conversa tão mortal com
Bill Dean, podia? Bill, que me censurou por não deixar o pessoal daqui
partilhar, e talvez suavizar, minha dor por Jo, Bill que me desejou as boasvindas
tão calorosamente?
Então ouvi um som de clique. Ele podia não ter trancado a porta
enquanto estava em casa em toda a sua vida, mas a trancara agora. O
clique foi muito nítido no irrespirável ar de julho. E me disse tudo que eu
tinha que saber sobre minha longa amizade com Bill Dean. Virei-me e voltei
ao carro, de cabeça baixa. Nem me virei quando ouvi uma janela ser
levantada atrás de mim.
— Nunca mais volte aqui, seu patife da cidade! — gritou Yvette Dean
através do calor sufocante do pátio. — Você partiu o coração dele! Nunca mais volte aqui! Nunca! Nunca!

— Por favor — disse a sra. M. — Não me faz mais perguntas, Mike. Não
posso entrar na lista negra de Bill Dean, da mesma forma que minha mãe
não podia arcar com o peso de entrar na lista negra de Normal Auster ou
Fred Dean.
Mudei o telefone para a outra orelha.
— Tudo que eu quero saber é...
— Nessa parte do mundo, são os caseiros que dirigem todo o
espetáculo. Se dizem para um sujeito de verão que ele deve contratar tal
carpinteiro ou tal eletricista, o sujeito contrata. Ou se um caseiro diz que
alguém deve ser despedido porque não tá se mostrando de confiança, ele é
despedido. Ou ela. Porque o que vale pra bombeiros e jardineiros e
eletricistas vale duas vezes mais pra diaristas. Se a gente quer ser
recomendada, e continuar recomendada, tem que ficar de bem com gente
como Fred e Bill Dean, ou Normal e Kenny Auster. Não entende? — Ela
quase implorou. — Quando Bill descobriu que eu contei pra você o que
Normal Auster fez ao Kerry, nossa, ficou tão furioso comigo.
— O irmão de Kenny Auster, aquele que Normal afogou debaixo da
bomba. O nome dele era Kerry?
— É. Conheço um monte de gente que põe nomes parecidos nos
filhos, acham bonitinho. Olha, fui colega de escola de dois irmãos chamados
Roland e Rolanda Therriault, acho que Roland tá em Manchester agora e
Rolanda casou com aquele rapaz de...
— Brenda, responda só a uma pergunta. Nunca vou contar a ninguém.
Por favor.
Com a respiração suspensa, esperei o clique que viria quando ela
desligasse. Em vez disso, ela pronunciou duas palavras numa voz macia,
quase pesarosa.
— Qual é?
— Quem foi Carla Dean?
Esperei através de outra longa pausa, minha mão brincando com a
fita que saiu do chapéu de palha da virada-do-século de Ki.
— Você não vai dizer a ninguém que eu contei — ela finalmente
falou.
— Não vou dizer.
— Carla era a irmã gêmea de Bill. Morreu há 65 anos, durante a
época dos incêndios. — Os incêndios que Bill afirmou terem sido ateados
pelo avô de Ki, seu presente de despedida para a TR. — Não sei como
aconteceu. Bill nunca fala nisso. Se disser a ele que eu contei isso pra você,
nunca mais vou fazer outra cama na TR. Ele vai providenciar isso. — Então,
numa voz desesperançada, ela disse: — De qualquer modo, ele pode saber.
Baseado em minhas próprias experiências e suposições, imaginei que
ela podia ter razão. Mas, mesmo se tivesse, receberia um cheque da minha
parte todos os meses pelo resto de sua vida útil. Mas eu não tinha
nenhuma intenção de lhe dizer aquilo por telefone — isso escaldaria sua
alma ianque. Em vez disso, agradeci, assegurei-lhe mais uma vez da minha
discrição e desliguei.
Sentei à mesa por um momento encarando inexpressivamente
Bunter, e então disse:
— Quem está aí?
Nenhuma resposta.
— Ora — eu disse. — Não seja tímido. Vamos a 19 ou 92. Depois
disso, podemos conversar.
Ainda nenhuma resposta. Nem um só tremor do sino no pescoço
empalhado do alce. Dei uma olhada no bloco de anotações em que rabisquei
ao falar com o irmão de Jo e puxei-o para mim. Eu coloquei Kia, Kyra, Kito
e Carla dentro de um quadrado. Então risquei a linha de baixo do quadrado e
acrescentei o nome Kerry à lista. Conheço um monte de gente que põe
nomes parecidos nos filhos, tinha dito a sra. M. Acham bonitinho.
Eu não achava aquilo bonitinho; achava era sinistro.
Ocorreu-me que pelo menos dois daqueles nomes parecidos tinham
sido afogados — Kerry Auster sob uma bomba, Kia Noonan no corpo
moribundo da mãe quando não era maior do que uma semente de girassol.
E eu vi o fantasma de uma terceira criança afogada no lago. Kito? Seria
Kito? Ou Kito era o que tinha morrido de toxemia?
Eles põem nomes parecidos nos filhos, acham bonitinho.
Quantas crianças de nome parecido tinham existido ali, para
começar? Quantas tinham sobrado? Achei que a resposta à primeira
pergunta não tinha importância, e que eu já sabia a resposta à segunda.
Esse rio quase chegou ao mar, disse Bill.
Carla, Kerry, Kito, Kia... todos mortos. Só Kyra Devore tinha sobrado.
Levantei tão rápida e bruscamente que derrubei a cadeira. O barulho
no silêncio me fez dar um grito. Eu ia embora imediatamente. Nada mais
de telefonemas, nada mais de bancar Andy Drake, detetive particular, nada
de depoimentos ou paqueras meio idiotas à bela moça. Devia ter seguido
meus instintos e dado o fora na primeira noite. Bem, eu o faria agora, era
só entrar no Chevy e levantar acampamento para Der...
O sino de Bunter sacudiu-se furiosamente. Eu me virei e o vi se
agitando no pescoço do alce como se badalado para a frente e para trás por
uma mão invisível. A porta de correr que dava para o deck começou a abrir
e fechar como se presa a uma roldana. O livro dos problemas de palavras
cruzadas Nível difícil na mesinha da sala e a revista de programação da TV
a cabo se abriram, as páginas passando rápido. Houve uma série de baques
surdos pelo chão, como se algo enorme se arrastasse rapidamente na
minha direção, batendo com os punhos enquanto se deslocava.
Uma forte corrente de vento — não era fria, mas tépida, como a
rajada de ar produzida por um trem de metrô numa noite de verão — me
esbofeteou. Nela ouvi uma voz estranha que parecia estar dizendo tchau,
tchau, tchau, como se me desejasse uma boa viagem para casa. Então,
quando já me ocorria que a voz estava na verdade dizendo Ki, Ki, Ki, Ki, Ki,
Ki, algo me atingiu, golpeando-me violentamente para a frente. Parecia um
grande punho macio. Caí sobre a mesa, agarrando-me a ela para continuar
em pé, derrubando a bandeja giratória com o saleiro e a pimenteira, o
porta-guardanapos e o pequeno vaso que a sra. M. tinha enchido de
margaridas. O vaso rolou da mesa e se espatifou. A TV da cozinha
começou a fazer barulho, algum político dissertando sobre como a inflação
estava subindo novamente. O aparelho de CD também foi ligado, afogando o
político; eram os Rolling Stones fazendo um cover de “I Regret You, Baby”,
de Sara Tidwell. No andar de cima, um alarme de incêndio disparou, depois
um segundo e um terceiro. Foram seguidos um momento depois pelo trinar
da buzina de alarme do Chevrolet. O mundo inteiro era uma cacofonia.
Algo quente e fofo pegou o meu pulso. Minha mão se lançou para a
frente como um pistão e golpeou com força o bloco de anotações.
Observei-a quando se movia desajeitadamente sobre a página vazia, depois
peguei o lápis que estava ali perto. Agarrei-o como um punhal e então algo
escreveu com ele, não guiando minha mão, mas violentando-a. A mão se
moveu lentamente no início, quase às cegas; então ganhou velocidade até voar, quase rasgando a página:
Link permanente da imagem incorporada

Eu quase tinha alcançado o final da página quando o frio desceu de novo, aquele frio externo que era como granizo em janeiro, gelando minha pele, fazendo estalar o muco do nariz e lançando dois arrepiantes sopros de ar branco de minha boca. Minha mão se dobrou e o lápis se partiu em dois.
Atrás de mim, o sino de Bunter teve uma furiosa agitação final antes de
silenciar. Também por trás de mim ouvi um peculiar e duplo pop, como o
som de rolhas de champanhe sendo retiradas. Depois terminou. Fosse lá o
que tivesse estado ali, ou quantos tivessem estado ali, tinha terminado. Eu estava sozinho de novo.


Desliguei o aparelho de CD exatamente quando Mick e Keith mudaram para
uma versão de rapaz branco de Howling Wolf, depois corri escada acima,
desliguei o alarme dos detectores de fumaça e tornei a colocá-los em
posição. Debrucei-me da janela do grande quarto de hóspedes, apontei o
controle remoto do Chevrolet para o carro e apertei o botão. O alarme parou.
Com o pior dos barulhos tendo desaparecido, ouvi a TV
matraqueando na cozinha. Desci, desliguei-a e então me imobilizei com a
mão ainda no botão de desligar, olhando para o irritante gato oscilante de
Jo. Sua cauda finalmente parou, e os grandes olhos de plástico estavam no
chão. Tinham saltado para fora da cabeça.

Fui até o Village Café para jantar, arrebatando o último Telegram de
domingo do suporte de jornais (DEVORE, MAGNATA DO COMPUTADOR ,
MORRE NA CIDADE DO MAINE OCIDENTAL ONDE CRESCEU, dizia a
manchete), antes de me sentar ao balcão. A foto que a acompanhava era
um instantâneo de estúdio em que Devore parecia ter 30 anos. Ele sorria. A
maioria das pessoas faz isso muito naturalmente. No rosto de Devore, o
riso parecia uma habilidade adquirida.
Pedi o feijão que sobrara do jantar de sábado à noite na espelunca de
Buddy Jellison. Meu pai não era muito de aforismos — na minha família,
distribuir pedaços de sabedoria era tarefa de mamãe —, mas quando papai
esquentava os feijões da noite de sábado no forno nas tardes de domingo,
dizia invariavelmente que feijões e guisado de carne eram melhores no dia
seguinte. Acho que aquilo permaneceu comigo. O único outro pedaço de
sabedoria paterna de que consigo lembrar foi que se devia sempre lavar as
mãos depois que se desse uma cagada numa estação de ônibus.
Enquanto eu lia a reportagem sobre Devore, Audrey se aproximou e
me disse que Royce Merrill tinha falecido sem recuperar a consciência. O
funeral seria na terça à tarde na igreja batista, acrescentou. A maioria do
pessoal da cidade estaria lá, muitas pessoas apenas para verem a bengala
do Boston Post ser concedida a Ila Meserve. Acha que vai aparecer? Não,
eu disse, provavelmente não. Achei prudente não acrescentar que gostaria
de ir à festa da vitória de Mattie Devore enquanto o funeral de Royce
estivesse descendo a estrada.
O fluxo habitual de clientes das tardes de domingo entrava e saía
enquanto eu comia, gente pedindo hambúrgueres, feijão, sanduíches de
salada de frango, caixas de cerveja. Alguns eram da TR, outros de fora. Não
reparei na maioria deles, e ninguém falou comigo. Não tenho a menor ideia
de quem deixou o guardanapo no meu jornal, mas quando larguei o caderno
A e me virei para pegar a seção de esportes, lá estava ele. Peguei-o,
querendo apenas deixá-lo de lado, e então vi que no verso dele, em grandes
letras sombrias, estava escrito: SAIA DA TR.
Nunca descobri quem o deixou lá. Acho que pode ter sido qualquer um deles.
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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