margeavam, mas estavam todas apagadas porque era plena luz do dia —
uma luz brilhante. A aparência abafada e densa de meados de julho tinha
desaparecido; o céu exibia um tom escuro de safira que é propriedade única
de outubro. Sob ele, o lago se mostrava do mais escuro índigo, cintilando
com pontos de sol. As árvores tinham acabado de ultrapassar o auge de
suas cores de outono, ardendo como tochas. Um vento vindo do sul soprava
as folhas caídas que passavam por entre as minhas pernas em rajadas
aromáticas e ruidosas. As lanternas japonesas balançavam-se como se
aprovassem a estação. Adiante eu ouvia ligeiramente uma música. Sara e
os Red-Tops. Sara estava cantando alto, rindo ao longo de toda a letra da
música como sempre fazia... no entanto, como é que o riso podia parecer
um rosnado?
— Garoto branco, eu jamais mataria um filho meu. Como é que pôde
sequer pensar nisso!
Rodopiei, esperando vê-la bem atrás de mim, mas não havia ninguém
ali. Bem...
A Senhora Verde estava lá, só que havia mudado seu vestido de
folhas para o outono e se tornara a Senhora Amarela. O ramo desfolhado de
pinheiro atrás dela apontava o caminho: vá para o norte, rapaz, vá para o
norte. Não muito adiante havia outra bétula, aquela em que eu tinha me
segurado quando a terrível sensação de afogamento me dominou de novo.
Esperei que ocorresse novamente — minha boca e minha garganta
foram tomadas pelo gosto de ferro do lago —, mas não aconteceu. Tornei a
olhar para a Senhora Amarela e depois, além dela, para Sara Laughs. A casa
estava lá, porém muito reduzida: sem ala norte, ala sul ou segundo andar.
Nenhum sinal também do estúdio de Jo, ao lado. Nenhuma dessas coisas
havia sido construída ainda. A senhora bétula tinha viajado comigo, vinda de
1998; assim como a que pendia sobre o lago. De outro modo...
— Onde estou? — perguntei à Senhora Amarela e às lanternas
japonesas que balançavam. Então uma pergunta melhor me ocorreu. — Em
que época estou? — Nenhuma resposta. — É um sonho, não é? Estou na
cama e sonhando.
Em algum ponto da superfície brilhante e com cintilações douradas
do lago, um mergulhão-do-norte gritou. Duas vezes. Assovie uma vez para
sim, duas para não, pensei. Não é um sonho, Michael. Não sei exatamente o
que é — uma viagem espiritual no tempo, talvez —, mas não é um sonho.
— Será que isso está acontecendo mesmo? — perguntei ao dia, e de
algum ponto atrás nas árvores, onde uma trilha posteriormente conhecida
como estrada 42 corria em direção a uma estrada suja mais tarde
conhecida como rota 68, um corvo grasnou. Só uma vez.
Fui até a bétula pendendo sobre o lago, passei um braço em volta
dela (fazê-lo acendeu um traço da lembrança de quando eu abracei a
cintura de Mattie, sentindo o vestido deslizar em sua pele) e espiei para a
água, dividido entre a vontade de ver o garoto afogado e o medo de vê-lo.
Não havia nenhum garoto lá, mas entre as rochas, raízes e plantas
aquáticas onde ele havia estado, algo jazia no fundo. Apertei os olhos, e
nesse momento o vento amainou um pouco, aquietando as cintilações da
água. Então vi uma bengala com castão de ouro. Uma bengala Boston Post.
Embrulhada nela como uma espiral ascendente, as pontas oscilando
preguiçosamente, via o que pareciam duas fitas brancas com bordas de um
vermelho vivo. Ver a bengala de Royce Merrill embrulhada daquele jeito me
fez pensar nas formaturas do ensino médio, e como o bastão do mestre de
cerimônias da turma oscila quando ele conduz os formandos de beca a seus
lugares. Agora eu entendia por que o caco velho não tinha atendido o
telefone. Os dias de atender telefone de Royce haviam terminado. Eu sabia
disso; também sabia que viera para uma época antes de Royce sequer ter
nascido. Sara Tidwell estava ali, podia ouvi-la cantando, e quando Royce
nasceu, em 1903, Sara já tinha ido havia dois anos, ela e toda a sua família
Red-Top.
— Acredite, Moisés — eu disse para a bengala dentro d’água. — Você
está rumando para a Terra Prometida.
Caminhei em direção ao som da música, revigorado pelo ar frio e
pelo vento que soprava. Agora ouvia vozes também, muitas, falando,
gritando e rindo. Erguendo-se acima delas e bombeando como um pistão
ouvia-se o rouco grito de um apresentador de feira: “Entre, pessoal, depreessa,
depre-essa, depre-essa! Está tudo do lado de dentro, mas vocês têm
que se apres-sar, o próximo show começa em dez minutos! Vejam
Angelina, a Mulher-Serpente, ela vibra, ela sacode, ela vai enfeitiçar seus
olhos e roubar seu coração, mas não cheguem muito perto dela pois sua
mordida é vene-no! Vejam Hando, o Garoto com Cara de Cachorro, terror
dos Mares do Sul! Vejam o Esqueleto Humano! Vejam o Monstro-de-gila
Humano, relíquia de uma época esquecida por Deus! Vejam a Mulher
Barbada e todos os Matadores Marcianos! Estão lá dentro, sim, senhor,
portanto depre-essa, depre-essa, depre-essa!”
Eu podia ouvir o órgão a vapor de um carrossel e o bater de um sino
no alto do poste, quando algum lenhador ganhava um brinquedo de pelúcia
para a namorada. Podia-se dizer, pelos alegres gritos femininos, que ele
tinha golpeado com tanta força que quase arrancou o sino do poste. Ouvia-
se o estalo de armas calibre .22 das barracas de tiro, o mu ressonante da
vaca premiada de alguém... e então comecei a sentir os aromas que eu
associava a feiras do condado desde garoto: massa doce frita, cebolas e
pimentões grelhados, algodão-doce, esterco, feno. Comecei a andar mais
rápido enquanto o dedilhar de violões e o baque surdo de baixos duplos
aumentavam. Meu coração pulou para uma marcha mais veloz. Eu ia vê-los
atuar, realmente ia ver Sara Laughs e os Red-Tops ao vivo e no palco.
Aquilo também não era nenhum delírio de febre em três partes. Aquilo
estava acontecendo agora mesmo, portanto depre-essa, depre-essa, depreessa!
A casa dos Washburn (a que sempre seria a casa dos Bricker para a
sra. M.) desaparecera. Além de onde ela se situaria posteriormente,
escalando o íngreme aclive do lado leste da Rua, via-se um lance de largos
degraus de madeira. Eles me lembraram os que conduziam do parque de
diversões à praia no velho pomar. Aqui as lanternas japonesas estavam
acesas apesar da claridade do dia, e a música era mais alta do que nunca.
Sara cantava “Jimmy Crack Corn”.
Subi as escadas em direção ao riso e aos gritos, ao som dos RedTops
e do órgão a vapor, dos cheiros de comida frita e animais de fazenda.
Acima do patamar da escada, havia um arco de madeira com a mensagem
BEM-VINDOS À FEIRA DE FRYEBURG
BEM-VINDOS AO SÉCULO XX
Enquanto eu observava, um garotinho de calças curtas e uma mulher
com a camisa para dentro de uma saia de linho até o tornozelo passaram
por baixo do arco e vieram na minha direção. Eles tremeluziram, tornandose
diáfanos. Por um momento, pude ver seus esqueletos e os risos exibindo
os ossos pairando por trás dos rostos risonhos. No momento seguinte,
haviam desaparecido.
Dois fazendeiros — um deles com chapéu de palha e o outro
gesticulando expansivamente com um cachimbo de espiga de milho —
apareceram no arco do lado da Feira exatamente da mesma maneira.
Assim, entendi que havia uma barreira entre a Rua e a Feira. Mesmo assim
não achei que fosse uma barreira que me afetasse. Eu era uma exceção.
— Está certo? — perguntei. — Posso entrar?
O sino no alto do poste de Teste sua Força bateu alto e claro. Um
bongue para sim, dois bongues para não. Continuei a subir a escada.
Agora eu podia ver a roda-gigante girando contra o céu brilhante, a
roda-gigante que eu vi ao fundo na foto da banda no Dark Score Days, de
Osteen. Sua estrutura era de metal, mas as gôndolas vivamente pintadas
eram de madeira. Conduzindo a ela como a nave central de uma igreja a
um altar, via-se uma ampla rua principal de feira coberta de serragem. A
serragem estava lá com um objetivo: quase todos os homens que vi
mascavam fumo.
Fiz uma pausa por alguns segundos no alto da escada, ainda no lado
do arco dando para o lago. Tinha medo do que pudesse me acontecer se
passasse sob ele. Medo de morrer ou desaparecer, sim, mas principalmente
de jamais poder voltar pelo caminho por que viera, de ser condenado a
passar a eternidade como um visitante à Feira de Fryeburg na virada do
século. Era também como uma história de Ray Bradbury, pensando bem.
No final, o que me atraiu para aquele outro mundo foi Sara Tidwell.
Eu tinha que vê-la com meus próprios olhos. Tinha que assistir a ela
cantando. Não podia deixar de fazê-lo.
Senti um formigamento ao passar por baixo do arco, e ouvi um
suspiro como o de um milhão de vozes muito distantes. Suspiro de alívio?
Desalento? Não sabia. Só tinha certeza de que estar no outro lado era
diferente — a diferença entre olhar para uma coisa através da janela e
realmente estar lá; a diferença entre observar e participar.
As cores pularam para fora como agressores numa emboscada. Os
cheiros que haviam sido doces, evocativos e nostálgicos no lado do arco
dando para o lago eram agora pungentes e sexys, prosa em vez de poesia.
Conseguia sentir o cheiro de densas salsichas e bife fritando, e o vasto e
vago aroma de chocolate fervendo. Dois garotos passaram por mim
dividindo um cone de papel com algodão-doce. Os dois seguravam lenços
em que estavam amarradas suas poucas moedas.
— Ei, garotos! — gritou para eles um apresentador de camisa azulmarinho.
Usava ligas nos braços e seu sorriso revelava um esplêndido dente
de ouro. — Derrubem as garrafas de leite e ganhem um prêmio! Ainda não
tive um perdedor o dia inteiro!
Lá na frente, os Red-Tops mergulharam no “Fishin Blues”. Eu tinha
achado que o garoto no parque de Castle Rock era bastante bom, mas a
presente versão fazia o garoto parecer velho, lento e sem rumo. Não era
bonitinho, como um antigo retrato de senhoras com as saias suspensas até
os joelhos, dançando uma decorosa versão do black bottom, com a beira
das calcinhas aparecendo. Não era algo que Alan Lomax tivesse colecionado
com suas outras músicas folk apenas mais uma empoeirada borboleta
americana num estojo de vidro cheio delas; aquilo ali estava polido o
suficiente apenas para manter o altivo bando fora da cadeia. Sara Tidwell
cantava e dançava de forma sensual, e eu imaginava que cada camponês
mascando fumo de macacão, chapéu de palha, mãos calosas e pesadas
botinas ali em frente ao palco estava sonhando em ir para a cama com ela,
chegar bem ali onde o suor se forma na dobra, o calor fica mais quente e o rosa é vislumbrado.
Comecei a andar naquela direção, consciente de vacas mugindo e
ovelhas balindo nos estábulos da exposição — a versão da Feira da fábrica
de laticínios da minha infância. Passei pela barraca de tiro ao alvo, pelo jogo
de argolas e pelo jogo de lançar de moedas; passei por um palco onde as
criadas de Angelina faziam uma dança lenta e sinuosa com as mãos
entrelaçadas, enquanto um sujeito de turbante e graxa de sapato no rosto
tocava flauta. O quadro pintado na lona esticada sugeria que Angelina —
que se pode ver do lado de dentro por apenas um décimo de dólar, vizinho
— faria aquelas duas parecerem café pequeno. Passei pela entrada do Beco
das Aberrações, pela barraca do milho assado, pela Casa Fantasma, onde
mais lonas esticadas representavam fantasmas saindo de janelas quebradas
e chaminés desmoronando. Tudo ali é morte, pensei... mas de dentro eu
podia ouvir crianças muito vivas rindo e dando gritos agudos enquanto
tropeçavam em coisas no escuro. A mais velha dentre elas provavelmente
estava roubando beijos. Passei pelo poste de Teste sua Força, onde as
gradações levando ao sino de bronze no topo diziam BEBÊ PRECISA DA
MAMADEIRA, VIADINHO, TENTE DE NOVO, GAROTÃO, MACHÃO e, pouco
abaixo do próprio sino, em vermelho: HÉRCULES! Em pé no centro de um
pequeno grupo, um rapaz de cabelos vermelhos tirava a camisa, revelando
um torso muito musculoso. Um funcionário da Feira, fumando charuto,
entregou-lhe uma marreta. Passei pela tenda acolchoada, uma tenda onde
pessoas se sentavam em bancos e jogavam bingo, pelo local de lançamento
de bolas de beisebol. Passei por todos eles e quase não os notei. Eu estava
na zona, em transe. “Você vai ter que chamá-lo de volta”, Jo dizia a Harold
às vezes, quando ele telefonava. “No momento Michael está na Terra do
Grande Faz de Conta.” Só que agora nada parecia faz de conta e a única
coisa que me interessava era o palco na base da roda-gigante. Nele havia
oito negros, talvez dez. Em pé à frente, com um violão, e açoitando-o,
enquanto cantava, vi Sara Tidwell. Estava viva e no auge. Jogou a cabeça
para trás e riu para o céu de outubro.
O que me tirou daquela embriaguez foi um grito atrás de mim:
— Espera, Mike! Mike! Espera aí!
Eu me virei e vi Kyra correndo na minha direção, contornando os
passantes, jogadores e idiotas da rua principal, com seus joelhos gorduchos
em movimento. Usava um pequeno vestido branco de marinheiro com
bainha vermelha e um chapéu de palha com uma fita azul-marinho. Numa
das mãos agarrava Strickland e, ao chegar perto de mim, atirou-se
confiantemente para a frente, sabendo que eu a pegaria e levantaria. Fiz
isso, e quando seu chapéu começou a cair, eu o peguei, enfiando-o
novamente em sua cabeça.
— Deúbei meu própio quarterback — disse ela, e riu. — De novo.
— Isso mesmo — eu disse. — Você é um jogador do mal. — Eu
estava usando macacão (via a ponta de uma bandana de um azul desbotado
saindo do bolso do peito) e botinas de trabalhador sujas de estrume. Olhei
para as meias soquetes brancas de Kyra e vi que tinham sido feitas em
casa. Também não encontraria nenhuma etiqueta discreta dizendo Made in
Mexico ou Made in China, se tirasse seu chapéu e olhasse dentro dele.
Aquele chapéu provavelmente tinha sido feito em Motton, por uma mulher
de fazendeiro de mãos vermelhas e juntas doloridas.
— Ki, onde está Mattie?
— Em casa, acho. Ela não pôde vir.
— Como é que você chegou aqui?
— Pela escada. Era um monte de degraus. Você devia ter esperado
por mim. Podia ter me carregado, como antes. Quero escutar a música.
— Eu também. Sabe quem é aquela, Kyra?
— Sei — disse ela. — A mãe de Kito. Depressa, moleza!
Caminhei na direção do palco, pensando que teríamos que
permanecer na parte de trás da multidão, mas as pessoas se afastaram
enquanto avançávamos, eu carregando Kyra nos braços — aquele adorável
peso, o ideal da beleza vestida de marinheiro e chapéu de palha enfeitado
com fita. Seu braço rodeava meu pescoço e a multidão se abria diante de
nós como o mar Vermelho para Moisés.
Também não se viraram para nos olhar. Estavam batendo as mãos e
os pés e berrando junto com a música, totalmente envolvidos. Afastaramse
inconscientemente, como se algum tipo de magnetismo funcionasse ali
— o nosso, positivo; o deles, negativo. As poucas mulheres na multidão
estavam ruborizadas mas nitidamente se divertindo, uma delas rindo tanto
que as lágrimas escorriam por seu rosto. Não parecia ter mais que 22 ou
23 anos. Kyra apontou para ela e disse sem rodeios:
— Conhece a chefe de Mattie na bioteca? Aquela ali é a vó dela.
A avó de Lindy Briggs, e viçosa como uma margarida, pensei. Minha
nossa.
Sob festões de tecido vermelho, branco e azul como uma banda de
rock viajante do tempo, os Red-Tops tinham se espalhado pelo palco.
Reconheci todos eles do retrato no livro de Edward Osteen. Os homens de
camisa branca, braçadeiras, calças e coletes escuros. Na outra extremidade
do palco, Son Tidwell usava o chapéu-coco da foto. Mas Sara...
— Por que a moça está com o vestido de Mattie? — perguntou Kyra,
e começou a tremer.
— Não sei, meu bem. Não sei mesmo. — Também não podia
argumentar: era o vestido branco sem mangas que Mattie usou no parque,
sem dúvida.
No palco, a banda fumava durante uma pausa da música. Reginald
“Son” Tidwell caminhou até Sara, os pés num passo ritmado, as mãos uma
mancha marrom pousadas nas cordas e trastos do violão, e ela virou o
rosto para ele. Uniram as testas, ela rindo e ele solene; olhando-se
mutuamente nos olhos, tentaram superar um ao outro, a multidão saudando
e aplaudindo, o resto dos Red-Tops rindo enquanto os dois tocavam. Vendoos
juntos assim, percebi que eu estava certo: eram irmão e irmã. A
semelhança era forte demais para não se percebê-la, ou para haver um
equívoco. Mas eu olhava principalmente o modo como os quadris e o
traseiro dela bamboleavam no vestido branco. Kyra e eu podíamos estar
vestidos com roupas do campo da virada do século, mas Sara mostrava-se
totalmente moderna. Nada de calçolas até o joelho para ela, nada de
anáguas ou meias de algodão. Ninguém parecia notar que ela usava um
vestido cuja saia ia pouco acima dos joelhos — portanto quase nua para os
padrões daquela época. E sob o vestido de Mattie, usava peças que aquelas
pessoas jamais tinham visto: um sutiã de laicra e calcinhas de náilon
justas. Se eu pusesse as mãos em sua cintura, o vestido não escorregaria
contra um desagradável espartilho, e sim contra a macia pele nua. Pele
escura, e não branca. O que é que você quer, benzinho?
Sara se afastou de Son, sacudindo o traseiro sem cinta e sem
enchimentos, rindo. Ele caminhou de volta a seu lugar e ela se virou para a
multidão quando a banda retomava a música. Ela cantou o verso seguinte olhando diretamente para mim.
“Before you start in fishin
you better check your line
Said before you start in fishin, honey,
you better check on your line.
I’ll pull on yours, darlin,
and you best tug on mine.”
[Antes de começar a pescar /é melhor sua linha checar. / Eu disse que
antes de você pescar, benzinho, / é melhor sua linha checar. / Vou dar um
puxão na sua, benzinho,/ a minha trate de puxar.]
A multidão rugia, feliz. Nos meus braços, Kyra tremia mais do que
nunca.
— Estou com medo, Mike — disse ela. — Não gosto dessa moça. Ela
me assusta. Ela roubou o vestido de Mattie. Quero ir pra casa.
Foi como se Sara a ouvisse, mesmo com o estrondear da música.
Inclinou a cabeça para trás, os lábios se abriram e ela riu para o céu. Seus
dentes eram grandes e amarelos. Pareciam os dentes de um animal
faminto, e cheguei à conclusão de que concordava com Kyra: ela era
assustadora.
— Certo, meu bem — murmurei no ouvido de Ki. — Vamos sair
daqui.
Mas antes de conseguir me mover, os sentidos da mulher — não sei
mais como explicar aquilo — caíram sobre mim e me seguraram. Então
entendi o que tinha passado velozmente por mim na cozinha para derrubar
as letras que tinham escrito CARLADEAR; o frio era o mesmo. Era quase
como identificar uma pessoa pelo som de seus passos.
Ela conduziu a banda mais uma vez à retomada da música, depois
mergulhou em outro verso. Mas nenhum que fosse encontrado em qualquer versão escrita da canção:
“I ain’t gonna hurt her, honey,
not for all the treasure in the worl’
Said I wouldn’t hurt you baby,
not for diamonds or for pearls.
Only one black-hearted bastard
dare to touch that little girl.”
[Não vou machucar a guria, benzinho,/ por todo o tesouro do mundo:/
Disse que não machuco a guria,/ por diamantes ou pérolas em pilha./ Só um
canalha de coração imundo /ousa tocar na garotinha.]
A multidão rugia como se tivesse ouvido a coisa mais engraçada do
mundo, mas Kyra começou a chorar. Sara viu isso e empinou o peito —
peitos muito maiores do que os de Mattie —, e sacudiu-os para ela,
soltando sua gargalhada de marca registrada ao fazê-lo. Havia uma paródia
de frieza no gesto... e um vazio também. Uma tristeza. Mesmo assim não
consegui sentir nenhuma compaixão por ela. Era como se seu coração
tivesse sido carbonizado e a tristeza que tinha restado era apenas outro
fantasma, a lembrança de amor assombrando os ossos do ódio.
E como seus dentes risonhos eram lascivos.
Sara ergueu os braços acima da cabeça e dessa vez balançou-a,
abaixando-a bem, como se lesse meus pensamentos e zombasse deles.
Exatamente como a gelatina num prato, segundo dizia outra velha canção
da época. A sombra dela oscilou sobre o fundo de lona, uma pintura de
Fryeburg, e enquanto a olhava percebi que tinha descoberto a Forma de
meus sonhos de Manderley. Era Sara. Ela era e sempre tinha sido a Forma.
Não, Mike. Está perto, mas não está certo.
Certo ou errado, era o bastante. Virei-me, pondo a mão na cabeça de
Ki e fazendo-a abaixar-se contra meu peito. Seus dois braços agora
enlaçavam meu pescoço, agarrados no aperto do pânico.
Achei que teria que abrir caminho com esforço através da multidão
— que me deixou entrar de modo bastante fácil, mas que podia ser bem
menos maleável para me deixar sair. Não se metam comigo, rapazes,
pensei. Não vão querer fazer isso.
E não quiseram. No palco, Son Tidwell tinha levado a banda de lá a
sol, alguém começou a tocar um pandeiro e Sara emendou de “Fishin Blues”
para “Dog My Cats” sem uma única pausa. Aqui fora, em frente ao palco e
abaixo dele, a multidão mais uma vez se abriu diante de mim e de minha
garotinha sem sequer nos olhar ou perder o ritmo, enquanto marcavam o
compasso com as mãos inchadas de trabalho. Um rapaz com uma mancha
de vinho do Porto no rosto abriu a boca — aos 20 anos já tinha perdido
metade dos dentes — e gritou “Iu-HUU!” em meio a um naco de tabaco.
Era Buddy Jellison do Village Café, percebi... Buddy Jellison tendo
magicamente recuado de 68 anos para 20. Então percebi que seu cabelo era
de outro tom — castanho-claro em vez de preto (embora estivesse
entrando nos 70 e parecendo mostrar a idade em todos os outros aspectos,
Bud não tinha um único fio de cabelo branco). Aquele era o avô de Buddy,
talvez até seu bisavô. De um modo ou de outro, eu não dava a mínima. Só
queria sair dali.
— Desculpe — eu disse, esbarrando nele.
— Não há nenhum bêbado da cidade aqui, seu filho da puta
intrometido — disse ele, sem olhar para mim e não perdendo um só
compasso ao marcar o ritmo com as mãos. — Nós todos fazemos rodízio.
É um sonho, afinal de contas, pensei. É um sonho, e isso o prova.
Mas o cheiro de tabaco no hálito dele não era um sonho, o cheiro da
multidão não era um sonho, e o peso da criança assustada em meus braços
também não era um sonho. Minha camisa estava quente e molhada sob seu
rosto. Ela chorava.
— Ei, irlandês! — gritou Sara do palco, e sua voz era tão parecida
com a de Jo que quase gritei. Ela queria que eu me virasse. Podia sentir sua
vontade trabalhando nos lados de meu rosto como dedos, mas eu não ia
fazer isso.
Eu me desviei de três camponeses que passavam uma garrafa de
cerâmica de mão em mão e então me vi livre do agrupamento. A rua
principal se estendia em frente, larga como a Quinta Avenida, e ao final
dela estava o arco, a escada, a Rua, o lago. A casa. Se eu pudesse chegar à
Rua, estaríamos salvos. Tinha certeza disso.
— Quase terminado, irlandês! — Sara gritou por trás de mim.
Parecia zangada, mas não zangada demais que não pudesse rir. — Você vai
ter o que quer, benzinho, todo o conforto de que precisa, mas quer me
deixar terminar meu negócio? Está ouvindo, rapaz? Trata de ficar longe!
Presta atenção ao que eu estou dizendo!
Comecei a andar mais depressa pelo caminho por onde viera,
acariciando a cabeça de Ki, ainda segurando seu rosto contra minha camisa.
Seu chapéu de palha caiu, mas quando estendi a mão para pegá-lo só
consegui agarrar a fita, que se soltou livremente da aba. Não tinha
importância. Precisávamos sair dali.
À nossa esquerda, ficava o local para o lançamento das bolas de
beisebol, e alguns garotinhos gritaram “Willy atirou por cima da cerca, Ma!
Willy atirou por cima da cerca!”, com uma regularidade monótona de aturdir
o cérebro. Passamos pelo bingo, onde uma mulher uivou que tinha ganhado
o peru, por Deus, todos os números estavam cobertos com um botão e ela
tinha ganhado o peru. Acima das cabeças, o sol mergulhou atrás de uma
nuvem e o dia ficou opaco. Nossas sombras desapareceram. O arco no fim
da rua principal se aproximava com enlouquecedora lentidão.
— Já estamos em casa? — Ki quase gemeu. — Quero ir pra casa,
Mike, por favor, me leva pra casa, pra mamãe.
— Vou levar — eu disse. — Tudo vai ficar bem.
Passamos pelo poste de Teste sua Força, onde o rapaz de cabelos
vermelhos vestia novamente a camisa. Ele me olhou com impassível
aversão — talvez a desconfiança instintiva de um nativo por um intruso —
e percebi que também o conhecia. Ele teria um neto chamado Dickie que,
no final do século ao qual essa feira tinha sido dedicada, seria proprietário
da oficina na rota 68.
Saindo da tenda acolchoada, uma mulher parou e apontou para mim.
Ao mesmo tempo, seu lábio superior ondulou num rosnado de cachorro. Eu
conhecia aquele rosto também. De onde? De algum lugar na cidade. Não
tinha importância, e não queria saber mesmo que tivesse.
— A gente não devia ter vindo aqui — gemeu Ki.
— Sei como se sente — eu disse. — Mas acho que não tivemos
escolha, meu bem. Nós...
Eles saíram do Beco das Aberrações, talvez uns 20 metros adiante.
Eu os vi e parei. Eram sete ao todo, homens de passos largos com roupas
de lenhador, mas quatro não tinham importância — aqueles quatro pareciam
desbotados, brancos e fantasmagóricos. Eram sujeitos doentes, talvez
mortos, e não mais perigosos que daguerreótipos. Os outros três, porém,
eram reais. Tão reais quanto o resto do lugar, de qualquer modo. O líder
era um velho usando um desbotado quepe do Exército da União. Ele me
olhou com olhos que eu conhecia. Olhos que eu já tinha visto me avaliando
por cima de uma máscara de oxigênio.
— Mike? Por que a gente tá parando?
— Está tudo bem, Ki. Mantenha a cabeça baixa. Isso tudo é um
sonho. Você vai acordar amanhã de manhã na sua própria cama.
— Tá.
Os homens se espalharam pelo meio da rua principal de mãos dadas
e bota com bota, bloqueando nosso caminho de volta ao arco e à Rua. O
velho Quepe Azul estava no meio. Os que o ladeavam eram muito mais
jovens, alguns tanto quanto meio século. Dois dos pálidos, os quaseinexistentes,
estavam lado a lado à direita do velho, e me perguntei se
podia romper a fileira deles naquela parte. Pensei que não eram mais de
carne e osso do que a coisa que tinha batido no isolamento da parede do
porão... mas e se eu estivesse errado?
— Entregue-a, filho — disse o velho. Sua voz era esganiçada e
implacável. Ele estendeu as mãos. Era Max Devore que tinha voltado,
mesmo na morte ainda buscava a custódia. Ao mesmo tempo, não era ele.
Eu sabia que não era. A superfície do rosto daquele homem era sutilmente
diferente, as maçãs do rosto eram mais ressequidas, os olhos de um azul
mais brilhante.
— Onde é que estou? — gritei para ele, acentuando fortemente a
última palavra, e na frente da tenda de Angelina, o homem de turbante (um
hindu que talvez viesse de Sandusky, Ohio) abaixou a flauta e simplesmente
ficou observando. As mulheres-serpente pararam de dançar e passaram a
assistir à cena também, com os braços umas em torno das outras e
juntando-se para se confortarem. — Onde estou, Devore? Se nossos bisavós
cagaram no mesmo fosso, então, onde é que eu estou?
— Não tô aqui para responder às suas perguntas. Entregue-a.
— Deixe que eu pego, Jared — disse um dos homens mais jovens,
um dos que realmente estavam lá. Olhou para Devore com uma espécie de
ânsia bajuladora que quase me enjoou, principalmente porque eu sabia que
era o pai de Bill Dean. Um homem que cresceu para se tornar um dos
velhos mais respeitados do condado de Castle só faltava lamber as botas
de Devore.
Não pense muito mal dele, sussurrou Jo. Não pense muito mal de
nenhum deles. Eram muito jovens.
— Você não precisa fazer coisa alguma — disse Devore. Sua voz
esganiçada estava irritada; Fred Dean ficou desconcertado. — Ele vai
entregá-la de livre e espontânea vontade. E se não fizer isso, nós a
pegamos juntos.
Olhei para o homem na extrema esquerda, o terceiro dos que
pareciam totalmente reais, totalmente ali. Era eu? Não se parecia comigo.
Havia algo em seu rosto aparentemente familiar, mas...
— Entregue-a, irlandês — disse Devore. — Última chance.
— Não.
Devore assentiu com a cabeça, como se isso fosse exatamente o
que esperara.
— Então nós vamos pegá-la. Isso tem que terminar. Vamos, rapazes.
Começaram a andar na minha direção e, enquanto o faziam, percebi
quem era aquele na extremidade — o de botas com chapinhas de ferro e
calças de lenhador de flanela — me lembrava: Kenny Auster, cujo galgo
comeria bolo até estourar. Kenny Auster, que teve o irmão, ainda bebê,
afogado debaixo da bomba pelo pai de Kenny.
Olhei para trás. Os Red-Tops ainda tocavam, Sara ainda ria,
sacudindo os quadris com as mãos para o céu, e a multidão ainda
abarrotava a extremidade leste da rua principal da feira. Aquele lado não
era bom, de qualquer modo. Se eu fosse por aquele lado, acabaria criando
uma garotinha nos primeiros anos do século XX, tentando ganhar a vida
escrevendo romances medonhos e baratos. Poderia não ser tão ruim... mas
havia uma moça solitária a quilômetros e anos daqui que sentiria falta da
garota. Que poderia até sentir falta de nós dois.
Eu me virei e vi os rapazes quase em cima de mim. Alguns deles
mais presentes e vitais do que outros, mas todos mortos. Todos eles
condenados. Olhei para o louro cujos descendentes incluiriam Kenny Auster
e perguntei:
— O que é que você fez? O que é, em nome de Cristo, que vocês
fizeram?
Ele esticou as mãos.
— Entregue-a, irlandês. É tudo que tem que fazer. Você e a mulher
podem ter mais. Quantos quiserem. Ela é jovem, vai fazê-los pipocarem
como sementes de melancia.
Eu estava hipnotizado, e eles nos teriam pegado se não fosse Kyra.
— O que que tá acontecendo? — gritou ela contra minha camisa. —
Tô sentindo o cheiro de alguma coisa! Um cheiro tão ruim! Ah, Mike, faz
isso parar!
E percebi que podia sentir o cheiro também. Carne estragada e gás
dos pântanos. Tecido queimando e vísceras fervilhantes. Devore era o mais
vivo de todos, gerando o mesmo magnetismo cru, mas poderoso, que senti
perto de seu bisneto, mas ele estava tão morto quanto os outros; quando
se aproximou, pude ver os minúsculos insetos que se alimentavam em suas
narinas e nos cantos cor-de-rosa de seus olhos. Tudo aqui é morte, pensei.
Minha própria mulher não me disse isso?
Eles estenderam as mãos tenebrosas para tocar Ki e depois levá-la.
Recuei um passo, olhei para a direita e vi mais fantasmas — alguns saindo
de janelas quebradas, outros escorregando por chaminés de tijolos
vermelhos. Segurando Kyra nos braços, corri para a Casa Fantasma.
— Peguem! — berrou Jared Devore, surpreso. — Peguem-no, rapazes.
Peguem aquele ladrão! Maldição!
Disparei para a escada de madeira, vagamente consciente de algo
macio roçando em meu rosto — o pequeno cachorro de pelúcia de Ki, ainda
agarrado numa de suas mãos. Eu quis olhar para trás, e ver o quão perto
estavam, mas não ousei. Se eu tropeçasse...
— Ei! — exclamou a mulher da cabine das entradas. Tinha nuvens de
cabelo ruivo, maquiagem que parecia ter sido aplicada com uma colher de
jardineiro e, graças a Deus, não parecia com ninguém que eu conhecesse.
Era apenas uma funcionária contratada pela feira, só de passagem por
aquele lugar tomado pelas trevas. Sorte dela. — Ei, cavalheiro, o senhor tem
que comprar uma entrada!
Não há tempo, moça, não há tempo.
— Detenham-no! — Devore berrou. — Ele é a porcaria de um ladrão
desgraçado! Aquela ali não é filha dele! Detenham-no! — Mas ninguém o
fez, e corri velozmente para dentro da escuridão da Casa Fantasma com Ki nos braços.
Além da entrada, havia uma passagem tão estreita que tive que me virar
de lado para passar por ela. Olhos fosforescentes fulguraram em nossa
direção na escuridão. Bem em frente havia um rumor surdo e crescente de
madeira, um som frouxo com o estrépito de correntes por trás. De nossas
costas vinha o baque desajeitado de botas com chapinhas de ferro correndo
pela escada do lado de fora. A funcionária de cabelos vermelhos berrava
com eles agora, dizendo que se quebrassem alguma coisa lá dentro teriam que pagar.
— Prestem atenção ao que estou dizendo, seus caipiras danados! — gritou
ela. — O lugar é para crianças, não para gente como vocês!
O rumor surdo estava diretamente à nossa frente. Algo estava
rodando. No início, não pude perceber o que era.
— Me põe no chão, Mike! — Kyra parecia excitada. — Quero ir com
as minhas pernas!
Coloquei-a no chão e olhei nervosamente por cima de meu ombro. A
luz brilhante vindo da entrada estava bloqueada pela tentativa de passarem
por ali.
— Seus asnos! — berrou Devore. — Não todos ao mesmo tempo!
Meu Jesus do céu! — Houve um som de estalo e alguém gritou. Virei para a
frente exatamente a tempo de ver Kyra disparar pelo barril rolante,
estendendo as mãos para se equilibrar. Inacreditavelmente, ela estava
rindo.
Fui atrás dela, cheguei até a metade do caminho e então caí com um
baque surdo.
— Opa! — exclamou Kyra do outro extremo, e riu quando eu tentei
levantar, caí de novo e fui derrubado por todo o caminho. A bandana caiu do
bolso em meu peito. Um saco de balas de marroio-branco caiu do outro
bolso. Tentei olhar para trás para ver se tinham conseguido se livrar e
estavam vindo. Quando o fiz, o barril me desfechou outro inesperado
sobressalto. Agora eu sabia como as roupas se sentiam numa máquina de
secar.
Eu me arrastei para o fim do barril rolante, levantei, peguei a mão de
Ki e deixei-a nos conduzir cada vez mais para o fundo da Casa Fantasma.
Chegamos a dar talvez dez passos quando uma luz branca floresceu em
torno dela como um lírio e ela gritou. Algum animal — algo que soava como
um gato enorme — silvou pesadamente. A adrenalina inundou minha
corrente sanguínea e estive prestes a puxá-la para trás, de novo para os
meus braços, quando o silvo surgiu mais uma vez. Senti ar quente nos
tornozelos e o vestido de Ki enfunou-se em forma de sino em torno de
suas pernas de novo. Dessa vez ela riu em vez de gritar.
— Vá, Ki! — sussurrei. — Rápido.
Continuamos para a frente, deixando o vapor para trás. Havia um
corredor espelhado onde nos refletimos primeiro como anões agachados e
depois como ectomorfos esquálidos com traços marcantes de vampiro.
Tive que impulsionar Kyra para a frente de novo: ela queria fazer caretas
para si mesma. Atrás de nós, ouvi lenhadores praguejando, tentando lidar
com o barril. Pude ouvir Devore xingando também, mas já não parecia tão...
bem, tão eminente.
Havia um poste que nos fez aterrissar numa grande almofada de
lona. Esta emitiu um barulho alto de peido quando a atingimos, e Ki riu até
que doces lágrimas se derramassem por seu rosto. Então, rolou pela
almofada, agitando os pés de animação. Pus as mãos sob seus braços e
levantei-a.
— Não deúbe seu próprio zaqueiro — disse ela, e riu novamente. Seu
medo parecia ter sumido inteiramente.
Descemos outro corredor estreito que cheirava ao pinheiro aromático
com o qual foi construído. Atrás de uma dessas paredes, dois “fantasmas”
arrastavam correntes tão mecanicamente como homens trabalhando na
linha de montagem de uma fábrica de sapatos, conversando sobre onde
levariam as namoradas de noite e quem levaria o “motor dos olhos
vermelhos”, fosse lá o que isso fosse. Eu não ouvia mais ninguém atrás de
nós. Kyra liderava o caminho com confiança, uma das mãozinhas segurando
uma de minhas grandes mãos, me puxando. Ao chegarmos a uma porta
pintada com chamas fulgurantes que apresentava as palavras CAMINHO
PARA HADES, ela a empurrou sem nenhuma hesitação. Ali, a mica vermelha
encimava a passagem como uma claraboia pintada, distribuindo um fulgor
rosado que achei agradável demais para Hades.
Prosseguimos pelo que me pareceu muito tempo, e percebi que não
ouvia mais o órgão a vapor, o vigoroso bongue! do sino do Teste sua Força,
ou Sara e os Red-Tops. Não que fosse exatamente uma surpresa. Devíamos
ter andado uns 400 metros. Como é que a Casa Fantasma de uma feira de
condado podia ser tão grande?
Então chegamos a três portas, uma à esquerda, uma à direita e uma
no final do corredor. Numa delas estava pintado um pequeno velocípede
vermelho. Na porta em frente a ela estava minha máquina de escrever IBM
verde. A imagem na porta no final parecia mais antiga, de algum modo —
desbotada e desmazelada. Mostrava um trenó infantil. É do Scooter
Larribee, pensei. É o que Devore roubou. Um arrepio percorreu meus braços
e costas.
— Bem — disse Kyra brilhantemente —, aqui estão os nossos
brinquedos. — Levantou Strickland, provavelmente para que ele pudesse ver
o velocípede vermelho.
— É — eu disse. — Acho que sim.
— Obrigada por me levar embora — disse ela. — Aqueles homens
davam medo, mas a Casa Fantasma foi engraçada. Boa-noite. Stricken
também diz boa-noite. — Ainda dessa vez o som pareceu exótico, tiu, como
a palavra vietnamita para felicidade sublime.
Antes que eu pudesse dizer outra palavra, ela empurrou a porta com
o velocípede e passou por ela. A porta se fechou com uma batida seca por
trás dela, e enquanto o fazia vi a fita do chapéu de Ki. Estava pendurada do
bolso do peito do macacão que eu usava. Olhei-a por um momento, depois
experimentei a maçaneta da porta pela qual Ki tinha acabado de passar. Ela
não girou, e quando bati a mão espalmada na madeira, foi como se eu
golpeasse um metal duro e fabulosamente denso. Dei um passo para trás e
inclinei a cabeça na direção de onde tínhamos vindo. Não se ouvia nada.
Total silêncio.
Isso é entretempos, pensei. Quando as pessoas falam de “escorregar
entre as fendas”, é disso realmente que estão falando. É para este lugar
que vão, de fato.
É melhor que você mesmo continue em frente, disse Jo. Se não
quiser ficar encurralado aqui, talvez para sempre, é melhor prosseguir.
Tentei a maçaneta da porta com a máquina de escrever pintada na
superfície. A maçaneta girou facilmente. Atrás da porta havia outro
corredor estreito — mais paredes de madeira e o doce cheiro de pinheiro.
Eu não queria entrar lá, algo ali me fazia pensar num comprido caixão, mas
não havia mais nada a fazer, nenhum outro lugar para ir. Entrei, e a porta
se fechou com força atrás de mim.
Cristo, pensei. Estou no escuro, num lugar todo fechado... está na
hora de um dos ataques de pânico mundialmente famosos de Michael
Noonan.
Mas nenhuma fita de aço apertou meu peito, e embora minha
frequência cardíaca estivesse acelerada e os músculos ainda nadassem em
adrenalina, eu estava sob controle. Além disso, percebi que não estava
inteiramente escuro. Eu podia ver só um pouco, mas o suficiente para
discernir as paredes e o chão de tábuas. Enrolei a fita azul-marinho do
chapéu de Ki em torno do pulso, enfiando uma das pontas por baixo para
que não se soltasse. Então comecei a avançar.
Prossegui por um longo tempo, o corredor virando nessa ou naquela
direção, aparentemente ao acaso. Senti-me como um micróbio deslizando
num intestino. Finalmente deparei com um par de portais de madeira
arqueados. Parei diante deles, me perguntando qual seria a escolha correta,
e percebi que podia ouvir ligeiramente o sino de Bunter através do portal à
esquerda. Fui por aquele caminho, e enquanto andava, o sino ficava cada
vez mais alto. Em algum ponto, ao som do sino juntou-se um leve ruído de
trovão. O frio de outono tinha abandonado o ar e estava quente de novo —
sufocante. Olhei para baixo e vi que o macacão e os sapatos rústicos
tinham sumido. Eu estava usando roupas de baixo térmicas e meias que
coçavam.
Mais duas vezes deparei com escolhas, e a cada vez eu escolhia a
abertura por onde ouvia o sino de Bunter. Quando parei diante do segundo
par de entradas, ouvi uma voz em algum lugar da escuridão dizer bem
claramente: “Não, a mulher do presidente não foi atingida. Isso em suas meias é o sangue dele.”
Andei para a frente, então parei quando percebi que meus pés e
tornozelos já não coçavam, que minhas coxas não estavam mais
transpirando nas ceroulas. Eu usava a sunga com que dormia habitualmente.
Olhei para cima e vi que estava em minha própria sala de estar, tateando
meu caminho cuidadosamente em torno da mobília como fazemos no
escuro, tentando com todas as forças não machucar o estúpido dedo do pé.
Conseguia ver um pouco melhor; uma tênue luz leitosa entrava pela janela.
Cheguei ao balcão que separa a sala da cozinha e olhei por sobre ele para o
relógio do gato oscilante. Eram 5h05.
Fui até a pia e abri a torneira. Quando estiquei a mão para pegar um
copo, vi que ainda estava com a fita do chapéu de Ki no pulso. Desenrolei-a
e coloquei-a no balcão entre a cafeteira elétrica e a TV da cozinha. Então
peguei um pouco de água gelada e a bebi, em seguida fui andando
cautelosamente ao longo do corredor da ala norte com o pálido fulgor
amarelo da lâmpada do banheiro. Fiz xixi (uu-rinou, eu podia ouvir Ki
dizendo), depois entrei no quarto. Os lençóis estavam amassados, mas a
cama não tinha aquela aparência orgiástica da manhã seguinte ao meu
sonho com Sara, Mattie e Jo. Por que teria? Eu saí dele e tive minha
pequena crise de sonambulismo. Um sonho extraordinariamente vívido da
Feira de Fryeburg.
Só que aquilo era besteira, e não apenas porque eu trazia comigo a
fita azul do chapéu de Ki. Nada ali tinha a forma de um sonho ao despertar,
onde o que parecia plausível imediatamente se torna ridículo e todas as
cores — tanto as brilhantes quanto as sombrias — desaparecem de vez.
Levei as mãos ao rosto, fiz uma concha diante do nariz e aspirei
profundamente. Pinheiro. Quando olhei, cheguei até a ver uma pequena
mancha de seiva num dedo rosado.
Sentei na cama pensando em ditar o que tinha vivido para o
gravador, mas em vez disso me deixei cair no travesseiro. Estava muito
cansado. Um trovão retumbou. Fechei os olhos, começando a cochilar, e
então um grito rasgou a casa. Era tão agudo quanto o gargalo de uma
garrafa quebrada. Sentei-me com um berro, agarrando o peito.
Era Jo. Eu jamais a ouvi gritar assim em nossa vida juntos, mas
mesmo assim sabia quem era.
— Pare de machucá-la! — gritei na escuridão. — Seja lá quem você
for, pare de machucá-la!
Ela gritou de novo, como se algo com uma faca, um torniquete ou
um atiçador de lareira tivesse um prazer malévolo em me desobedecer. O
segundo grito pareceu vir de alguma distância desta vez, e o terceiro,
embora tão agonizante quanto os dois primeiros, foi ainda mais distante.
Estavam diminuindo como os soluços do garotinho.
Um quarto grito flutuou pela escuridão, e então Sara silenciou. Sem fôlego, a casa respirava à minha volta. Viva no calor, consciente ao tênue som do trovão do alvorecer.
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