segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Capítulo Vinte


Inicialmente não os vi, o que não era de surpreender; parecia que metade de Castle Rock havia comparecido ao parque da cidade naquela sufocante tarde de sábado caminhando para o crepúsculo. O ar brilhava com a enevoada luz do meio do verão, e através dela as crianças enxameavam pelos equipamentos do playground, enquanto certo número de velhos de coletes vermelhos — uma espécie de clube, imaginei — jogava xadrez, e um grupo de jovens se estendia pela grama escutando um adolescente de faixa na cabeça tocando violão e cantando algo de que eu me lembrava de um velho disco de Ian e Sylvia, uma animada canção que dizia:

                                        “Quando Ella Speed se divertia nos braços de um,
                                             John Martin atirou nela com um Colt 41...”


Eu não vi ninguém correndo, e nenhum cachorro perseguindo
Frisbees. Estava simplesmente quente demais.
Eu me virei para olhar o coreto, onde uma banda com oito membros
chamada The Castle Rockers estava se instalando (eu imaginava que “In
the Mood” era o mais próximo que podiam chegar do rock and roll), quando
uma pessoa pequena me atingiu por trás, agarrando-me pouco acima dos
joelhos e quase me atirando na grama.
— Peguei! — gritou a pequena alegremente.
— Kyra Devore! — gritou Mattie, parecendo ao mesmo tempo alegre
e irritada. — Você vai derrubá-lo!
Eu me virei, deixei cair o saco manchado de gordura do McDonald’s
que carregava e levantei a criança. O gesto foi natural, e a sensação
maravilhosa. Não se percebe o peso de uma criança saudável até que se
segura uma, nem se compreende totalmente a vida que passa por elas
como um fio brilhante. Não fiquei emudecido (“Não banque o
sentimentaloide comigo, Mike”, Siddy às vezes sussurrava para mim quando
éramos garotos e, durante um filme, eu ficava com os olhos marejados
num momento triste), mas pensei em Jo, sim. E a criança que ela
carregava quando caiu naquele estúpido estacionamento, sim, pensei naquilo
também.
Ki estava gritando e rindo, os braços esticados e o cabelo pendendo
em duas madeixas realçadas por pregadores com motivos infantis.
— Não derrube seu próprio quarterback — berrei, sorrindo, e para
meu encanto ela gritou em resposta: “Não deúbe seu pópio quateback! Não
deúbe seu pópio quateback!”
Eu a coloquei novamente no chão, rindo com ela. Ki deu um passo
para trás, tropeçou e sentou-se na grama, rindo mais do que nunca. Tive
um pensamento mesquinho, então, rápido mas, ah, tão claro: se o velho
lagarto pudesse ver como sentiam a falta dele. Como estávamos tristes
com o seu falecimento.
Mattie andou até nós, e naquela tarde ela se mostrava como eu a
tinha imaginado na primeira vez em que a vi — como uma daquelas
adoráveis filhas do privilégio que se veem no country club, tagarelando com
as amigas ou sentada seriamente para jantar com os pais. Usava um
vestido branco sem mangas e saltos baixos, o cabelo solto sobre os
ombros, um toque de batom. Seus olhos tinham um brilho que não haviam
mostrado antes. Quando me abraçou, pude sentir seu perfume e a pressão
de seus pequenos seios firmes.
Beijei-lhe o rosto; ela me beijou no alto do maxilar, dando um estalo
no meu ouvido que senti percorrer toda a minha espinha abaixo.
— Diga que as coisas vão ficar melhores agora — murmurou ela,
ainda me segurando.
— Muito melhores — eu disse, e ela me abraçou de novo, apertado.
Então recuou.
— Acho bom que você tenha trazido um monte de comida, garotão,
porque somos mulheres famintas. Certo, Kyra?
— Deúbei meu própio zaqueiro — disse Ki, depois se apoiou nos
cotovelos, dando uma risadinha deliciosa sob o brilhante céu enevoado.
— Vamos — eu disse, e a agarrei pela cintura. Carreguei-a assim até
uma mesa de piquenique próxima, Ki agitando as pernas e os braços e
rindo. Coloquei-a no banco; ela escorregou para fora, para baixo da mesa,
desossada como uma enguia, e ainda rindo.
— Muito bem, Kyra Elizabeth — disse Mattie. — Sente-se e mostre o
outro lado.
— Boa menina, boa menina — disse ela, escalando o lugar a meu
lado. — É o meu outro lado, Mike.
— Tenho certeza — falei. Dentro do saco havia Big Macs e batatas
fritas para Mattie e para mim. Para Ki havia uma caixa colorida sobre a
qual saltavam Ronald McDonald e seus cúmplices.
— Mattie, ganhei um McLanche Feliz! Mike me deu um McLanche
Feliz! Eles têm brinquedos!
— Vamos ver qual é o seu.
Kyra abriu a caixa, esquadrinhou-a e então sorriu. O sorriso iluminou
todo o seu rosto. Ela retirou da caixa algo que achei a princípio que era uma
grande bola de poeira. Por um terrível segundo voltei ao meu sonho, aquele
de Jo debaixo da cama com o livro sobre o rosto. Me dá isso, ela tinha
rosnado. É o meu pega-poeira. E algo mais também — outra associação,
talvez de algum outro sonho. Não consegui perceber qual era.
— Mike? — perguntou Mattie. Havia curiosidade na voz dela, e talvez
também preocupação.
— É um cachorrinho! — disse Ki. — Ganhei um cachorrinho no meu
McLanche Feliz.
Sim, claro. Um cachorro. Um cachorrinho de pelúcia. E era cinzento,
não preto... embora eu também não soubesse por que sua cor teria
importância para mim.
— É um prêmio muito bom — eu disse, pegando-o. Macio, o que era
bom, e cinzento, o que era melhor. Ser cinzento o tornava bom, de algum
modo. Maluco, mas verdadeiro. Entreguei-o novamente a Kyra e sorri.
— Qual é o nome dele? — ela perguntou, fazendo o cachorrinho
saltar para a frente e para trás sobre a caixa do McLanche Feliz. — Qual é o nome do cachorrinho, Mike?
Então, sem pensar, eu disse:
— Strickland.
Achei que ficaria espantada, mas não ficou. Pareceu encantada.
— Stricken! — disse ela, fazendo o cachorro pular para a frente e
para trás em saltos cada vez mais altos sobre a caixa. — Stricken!
Stricken! Meu cachorro Stricken!
— Quem é esse Strickland? — perguntou Mattie, sorrindo. Ela tinha
começado a desembrulhar seu hambúrguer.
— Um personagem num livro que li — falei, observando Ki brincar
com o cachorrinho de pelúcia. — Ninguém da vida real.


— Vovô morreu — disse ela cinco minutos depois.
Estávamos ainda na mesa de piquenique, mas a maior parte da comida havia desaparecido. Strickland, a bola de pelúcia, tinha sido posto de
guarda junto às batatas fritas remanescentes. Eu vinha observando o fluxo
de pessoas, imaginando quem da TR estaria ali observando nossa reunião e
ardendo para levar as notícias para casa. Não vi ninguém que eu
conhecesse, mas isso não significava grande coisa, considerando-se quanto
tempo eu havia estado longe dessa parte do mundo.
Mattie abaixou o hambúrguer e olhou para Ki com certa ansiedade,
mas achei que a criança estava bem — apenas comunicava um fato, sem
expressar dor.
— Eu sei — respondi.
— Vovô era velho demais. — Ki pinçou duas batatas fritas com os
dedos gordinhos, as levou à boca e gulp, elas sumiram. — Ele está com o
Senhor Jesus agora. A gente estuda tudo sobre o Senhor Jesus na EBF.
É, Ki, pensei, agora mesmo vovô provavelmente está ensinando Pixel
Easel ao Senhor Jesus e perguntando se há alguma puta disponível ali.
— O Senhor Jesus andava na água e transformava vinho em
macarrão.
— É, mais ou menos isso — eu disse. — É triste quando as pessoas
morrem, não é?
— Ia ser triste se Mattie morresse, e se você morresse, mas vovô
era velho. — Disse isso como se não tivesse entendido bem o conceito da
primeira vez. — No céu, ele dá um jeito nisso.
— É uma boa maneira de encarar a coisa, meu bem — falei.
Mattie ocupou-se em endireitar os pregadores de Ki que caíam,
trabalhando cuidadosamente e com uma espécie de amor ausente. Achei
que fulgurava à luz do verão, sua pele num contraste bronzeado e macio
com o vestido branco que provavelmente comprou numa das lojas
populares, e compreendi que a amava. Talvez aquilo fosse certo.
— Mas sinto falta da vó branca — disse Ki, e desta vez pareceu
triste. Pegou o cachorro de pelúcia, tentou alimentá-lo com uma batata frita
e então o depositou na mesa novamente. Seu rosto pequeno e bonitinho
tinha uma expressão pensativa agora, e pude ver nela um vestígio do avô.
Era muito distante, mas estava lá, perceptível, outro fantasma. — Mamãe
disse que a vó branca voltou pra Califórnia com os restos matais do vovô.
— Restos mortais, Kizinha — disse Mattie. — Quer dizer, seu corpo.
— A vó branca vai voltar para me ver, Mike?
— Não sei.
— A gente tinha um jogo. Era todo com rimas. — Parecia mais
pensativa do que nunca.
— Sua mãe me contou sobre o jogo — falei.
— Ela não vai voltar — disse Ki, respondendo à própria pergunta.
Uma grande lágrima rolou por seu rosto abaixo. Ela pegou Stricken, colocouo
sobre as pernas traseiras durante um segundo, depois o pôs de volta
como sentinela. Mattie passou um braço em torno dela, mas Ki não pareceu
notar. — A vó branca não gostava mesmo de mim. Só fingia que gostava.
Era o trabalho dela.
Mattie e eu nos entreolhamos.
— Por que está dizendo isso? — perguntei.
— Não sei — disse Ki. Próximo ao lugar onde o garoto tocava violão,
um malabarista com o rosto pintado de branco tinha começado a atuar,
trabalhando com meia dúzia de bolas coloridas. Kyra ficou um pouco mais
animada. — Mamãezinha, posso ir lá ver aquele homem engraçado?
— Já acabou de comer?
— Já.
— Agradeça ao Mike.
— Não deúbe seu própio zaqueiro — disse ela, depois riu
amavelmente para me mostrar que só estava brincando. — Obrigada, Mike.
— Tudo bem — respondi. Então, porque aquilo soava um pouco
antiquado, eu disse: — Valeu.
— Você pode ir só até aquela árvore, está bem? — disse Mattie. — E
sabe por quê.
— Para você poder me ver. Tá bem.
Agarrou Strickland e começou a correr para o local, e então olhou
para mim por cima do ombro.
— Acho que foi o pessoal da geleira — disse ela, depois se corrigiu,
séria e cuidadosamente: — Pessoal da ge-la-deira.
Meu coração deu um pulo no peito.
— O que é que o pessoal da geladeira fez, Ki? — perguntei.
— Disse que a vó branca não gostava mesmo de mim. — A seguir
correu para o malabarista, sem se importar com o calor.
Mattie a observou se afastar e então se virou para mim.
— Não falei com ninguém sobre o pessoal da geleira de Ki. Ela
também não, até agora. Não que sejam reais, mas as letras parecem se
mexer sozinhas. É como um tabuleiro para receber mensagens do além.
— Elas formam palavras?
Ela não disse nada por muito tempo. Então concordou com a cabeça.
— Nem sempre, mas às vezes. — Outra pausa. — Na realidade, na
maioria das vezes. Ki chama isso de carta do pessoal da geladeira. —
Sorriu, mas seus olhos estavam um pouco assustados. — São letras
magnéticas especiais, você acha? Ou temos um poltergeist trabalhando às
margens do lago?
— Não sei. Lamento ter levado as letras, se viraram um problema.
— Não seja bobo. Você deu as letras a ela, e você é um negócio
muito importante para Ki agora. Ela fala de você o tempo todo. Estava
muito mais interessada em escolher uma roupa bonita para usar esta noite
do que na morte do avô. Queria que eu usasse uma roupa bonita também, e
insistiu nisso. Geralmente não reage assim com as pessoas. Ela as aceita
quando vêm e as deixa para lá quando vão embora. Não é um modo tão
ruim de uma criança crescer, acho eu às vezes.
— Vocês duas estão com roupas muito bonitas — falei. — Disso
tenho certeza.
— Obrigada. — Olhou amorosamente para Ki, que continuava perto
da árvore assistindo ao malabarista. Ele deixara as bolas de lado e utilizava
agora machadinhas. Então Mattie me olhou novamente: — Já acabou de
comer?
Assenti com a cabeça, e ela começou a recolher o lixo e a enfiá-lo
no saco em que eu trouxe a comida. Ajudei-a, e quando nossos dedos se
tocaram, ela pegou minha mão e a apertou.
— Obrigada. Por tudo que tem feito. Sou muito grata a você.
Apertei sua mão também e soltei-a.
— Sabe de uma coisa, já passou por minha cabeça que Kyra esteja
movendo as letras sozinha. Mentalmente — disse ela.
— Telecinesia?
— Acho que o termo técnico é esse. Só que Ki não pode escrever
muitas palavras além de “cão” e “gato”.
— O que é que aparece na geladeira?
— Na maioria nomes. Uma vez apareceu o seu. Outra, o de sua
mulher.
— Jo?
— O nome inteiro — JOHANNA. E NANA. Rogette, acho eu. JARED
aparece às vezes, e BRIDGET. Uma vez surgiu um KITO. — Ela o soletrou.
— Kito — eu disse, pensando: Kyra, kia, Kito. O que é isso? — É o
nome de um garoto?
— Sei que é. É suaíli, e quer dizer criança preciosa. Fui procurar no
meu livro de nomes de bebês. — Deu uma espiada em sua própria criança
preciosa enquanto caminhávamos pelo gramado até a lata de lixo mais
próximo.
— Algum outro que consiga lembrar?
Ela pensou.
— REG apareceu umas duas vezes. E outra vez CARLA. De um modo
geral, Ki nem consegue ler esses nomes, entende? Ela tem que me
perguntar o que está escrito.
— Já lhe ocorreu que Kyra possa estar copiando os nomes de um
livro ou revista? Que possa estar aprendendo a escrever usando as letras
da geladeira em vez de papel e lápis?
— Acho que é possível... — Mas não dava a impressão de acreditar
naquilo. Não era de surpreender. Eu mesmo não acreditava.
— Você nunca viu as letras se mexendo sozinhas na frente da
geladeira, viu? — Eu esperava mostrar despreocupação ao perguntar aquilo.
Ela riu um tanto nervosamente.
— Minha nossa, não!
— Algo mais?
— Às vezes o pessoal da geleira deixa recados como OI, TCHAU e
BOA GAROTA. Tinha um ontem que anotei para mostrar a você. Kyra me
pediu que fizesse isso. É esquisito mesmo.
— O que é?
— Vou lhe mostrar, mas está no porta-luvas do carro. Você me
lembra quando formos embora?
Sim. Eu lembraria.
— Parece coisa de fantasma, sim, senhor. Como aquela escrita na
farinha — disse ela.
Pensei em lhe contar que eu também tinha o meu próprio pessoal da
geleira, mas não o fiz. Mattie já tinha o suficiente com que se preocupar
sem que... ou pelo menos eu disse isso a mim mesmo.
Ficamos lado a lado na grama, observando Ki assistir ao malabarista.
— Ligou para John? — perguntei.
— Liguei.
— Qual foi a reação dele?
Ela voltou-se para mim, rindo com os olhos.
— Cantou um verso de “Ding, Dong, o Bruxo Morreu”.
— Sexo errado, sentimento certo.
Ela concordou com a cabeça, seus olhos voltando a Kyra. Pensei
novamente como era bonita, o corpo esbelto no vestido branco, os traços
puros perfeitamente desenhados.
— Ele ficou irritado por eu mesmo ter me convidado para o almoço?
— Não, adorou a ideia de fazermos uma reunião.
Uma reunião. Ele adorou a ideia. Comecei a me sentir pequenininho.
— Ele até sugeriu que convidássemos seu advogado da sexta-feira
passada. Bissonette? Além do detetive particular que John contratou por
recomendação de Bissonette. Está bem para você?
— Ótimo. E você, Mattie? Tudo bem?
— Tudo bem — concordou ela, virando-se para mim. — Recebi mais
ligações hoje do que costumo receber. De repente fiquei muito popular.
— É?
— A maioria desligou na minha cara, mas um cavalheiro se deu ao
trabalho de me chamar de cadela, e uma mulher com um sotaque ianque
muito forte disse: “Pronto, sua vaca, você matou ele. Tá satisfeita?” Ela
desligou antes que eu pudesse responder, sim, muito satisfeita, obrigada. —
Mas Mattie não parecia satisfeita e sim infeliz e culpada, como se tivesse
literalmente desejado a morte dele.
— Lamento.
— Tudo bem. Mesmo. Kyra e eu temos estado sozinhas por muito
tempo, e fiquei assustada na maior parte dele. Agora fiz dois amigos. Se
alguns telefonemas anônimos são o preço que tenho que pagar, eu pago.
Estava muito próxima, erguendo os olhos para mim, e não consegui
me controlar. Pus a culpa no verão, no perfume dela e em quatro anos sem
mulher. Nessa ordem. Deslizei os braços em volta de sua cintura e lembro
perfeitamente da textura do vestido sob minhas mãos; a leve prega atrás
onde o zíper se escondia. Então a beijei, muito suave e extensamente —
qualquer coisa que vale a pena fazer, vale a pena ser feito direito —, e ela
respondeu ao meu beijo exatamente no mesmo espírito, a boca curiosa,
mas não com medo. Seus lábios eram mornos e macios e tinham um tênue
sabor doce. Pêssegos, acho eu.
Paramos ao mesmo tempo e nos afastamos um pouco um do outro.
As mãos dela ainda em meus ombros. As minhas em sua cintura, pouco
acima dos quadris. Seu rosto estava suficientemente composto, seus olhos
se mostravam mais brilhantes do que nunca, e havia traços de cor em suas
bochechas, subindo ao longo da face.
— Puxa — disse ela. — Como eu queria isso. Desde que Ki quase o
derrubou e você a levantou, eu estava querendo isso.
— John não ia gostar que a gente se beijasse em público — eu disse.
Minha voz não parecia muito firme e o coração batia forte. Sete segundos,
um beijo e cada sistema de meu corpo estava em velocidade máxima. —
Na verdade, John não ia gostar que a gente se beijasse. Ele tem uma queda
por você, sabe?
— Eu sei, mas eu tenho uma queda por você.
Virou-se para localizar Ki, que ainda estava obedientemente em pé
junto à árvore, assistindo ao malabarista. Quem poderia estar nos
observando? Alguém que tinha vindo da TR numa quente tarde de verão
para tomar sorvete no Frank’s Tas-T-Freeze e apreciar um pouco de
música e socialização no parque? Alguém em busca de legumes e fofocas
frescas no Armazém Lakeview? Um cliente da oficina? Aquilo era loucura, e
continuaria loucura não importa como fosse encarado. Tirei as mãos da
cintura dela.
— Mattie, eles poderiam pôr nosso retrato junto à palavra
“imprudente” no dicionário.
Ela tirou as mãos de meu ombro e deu um passo para trás, mas
seus olhos brilhantes não se afastaram dos meus.
— Eu sei disso. Sou jovem, mas não sou inteiramente burra.
— Eu não quis dizer...
Ela ergueu uma das mãos para me deter.
— Ki vai para a cama por volta das nove. Parece que não consegue
dormir até que escureça. Eu fico acordada até mais tarde. Venha me
visitar, se quiser. Pode estacionar o carro nos fundos. — Sorriu um pouco,
docemente. O sorriso era também tremendamente sexy. — Quando a lua
some, aquela área é muito discreta.
— Mattie, você é jovem o bastante para ser minha filha.
— Talvez, mas não sou. E às vezes as pessoas podem ser
excessivamente discretas para seu próprio bem.
Meu corpo sabia enfaticamente o que desejava. Se estivéssemos no
trailer naquele momento, não haveria nenhuma contestação. De qualquer
modo, já não havia quase nenhuma contestação. Então algo me ocorreu,
algo que pensei sobre os ancestrais de Devore e os meus: as gerações não
combinavam. Com a minha e a de Mattie não era o mesmo? Não acredito
que as pessoas tenham automaticamente direito ao que querem, não
importa com que força queiram. Nem toda ânsia tem que ser saciada.
Algumas coisas simplesmente são erradas — acho que é isso que estou
tentando dizer. Mas não tinha certeza de que aquela era uma delas, e que
eu a queria não havia a menor dúvida. Muito. Continuava me lembrando de
como seu vestido deslizou quando eu passei os braços em volta de sua
cintura, sua pele quente logo abaixo do tecido. Além disso, Mattie não era minha filha.
— Você já agradeceu — eu disse numa voz seca. — E é suficiente.
Mesmo.
— Acha que isso é gratidão? — Emitiu um riso baixo, tenso. — Você
tem 40 anos, Mike, não 80. Não é Harrison Ford, mas é um homem bonito.
E também talentoso e interessante. E eu gosto de você à beça. Quero que
fique comigo. Quer que eu peça por favor? Está bem. Por favor, fique
comigo.
Sim, era mais do que gratidão — acho que eu sabia disso mesmo
enquanto estava pronunciando a palavra. Eu tinha adivinhado que ela estava
usando short branco e uma frente única quando ligou no dia em que voltei a
trabalhar. Teria ela adivinhado o que eu estava vestindo? Teria sonhado que
estava na cama comigo, fodendo até morrer enquanto as luzes da festa
brilhavam e Sara Tidwell apresentava sua versão de jogo de rimas da vó
branca, todo aquele negócio maluco de Manderley-sanderley-canderley?
Teria Mattie sonhado em me dizer para fazer tudo que eu quisesse?
E havia o pessoal da geleira, que era um compartilhar de outro tipo,
e de uma espécie muito mais fantasmagórica. Ainda não tinha tido coragem
suficiente para contar a Mattie sobre o meu próprio pessoal, mas de
qualquer modo ela poderia saber. Bem lá no fundo da mente. Bem no fundo,
onde os rapazes operários se moviam na zona. Seus rapazes e os meus,
todos parte do mesmo estranho sindicato. E talvez não fosse uma questão
de moralidade em si. Algo a respeito daquilo — a respeito de nós — dava
uma sensação de perigo.
E, ah, tão atraente.
— Preciso de tempo para pensar — falei.
— Não há muito o que pensar sobre isso. O que é que você sente por mim?
— Sinto tanto que até me assusta.
Antes que eu pudesse dizer algo mais, meus ouvidos apreenderam
uma série familiar de mudanças de acorde. Virei para o garoto do violão.
Ele vinha tocando um repertório das primeiras canções de Dylan, mas agora
tinha passado a algo explosivo, algo que fazia você sorrir mostrando os dentes e marcar o ritmo com as mãos.
                                            “Do you want to go fishin
                                               here in my fishin hole?
                                 Said do you want to fish some, honey,
                                            here in my fishin hole?
                                  You want to fish in my pond, baby,
                                      you better have a big long pole.”
                                [Você quer vir pescar
                               aqui no meu laguinho?
                           Disse que quer pescar, benzinho,
                              aqui no meu laguinho?
                            Se no meu lago quer pescar,
                               uma vara comprida tem que mostrar.]
“Fishin blues.” Escrito por Sara Tidwell, executado originalmente por
Sara e pelos Red-Top Boys, com cover de todo mundo, desde Ma Rainey a
Lovin’ Spoonful. As canções cruas eram a especialidade dela, com um duplo
sentido tão transparente que se podia ler um jornal através dele... embora
ler não fosse o interesse principal de Sara, a se julgar por suas letras.
Antes que o garoto pudesse passar ao próximo verso, algo sobre
como você tem que se sacudir quando meneia e põe a vara grande bem lá
no fundo, The Castle Rockers emitiram um floreio com o violão que dizia:
“Cale a boca, todo o mundo, vamos na sua direção.” O garoto parou de
tocar; o malabarista começou a pegar as machadinhas para enfileirá-las
rapidamente na grama. Os Rockers se lançaram numa marcha muito ruim,
música ao som da qual se podiam cometer assassinatos em série, e Kyra
veio correndo até nós.
— O mabarista acabou. Você vai me contar a história, Mike? Janjão
e Maria?
— É João e Maria — eu disse. — Vou contar com muito prazer. Mas
vamos para um lugar mais quieto, está bem? A banda está me dando dor
de cabeça.
— A música machucou sua cabecinha?
— Um pouquinho.
— Então vamos para perto do carro da Mattie.
— Boa ideia.
Kyra correu na frente para pegar um banco na orla do parque. Mattie
lançou um olhar longo e caloroso, depois estendeu a mão. Eu a peguei.
Nossos dedos se entrelaçaram como se viessem fazendo isso há anos.
Pensei: Eu gostaria que fosse lento, nós dois quase sem nos movermos. No
início, pelo menos. E eu levaria minha melhor vara e a mais longa? Acho
que se podia contar com isso. E então, depois, nós conversaríamos. Talvez
até pudéssemos ver a mobília à primeira luz da manhã. Quando se está na
cama com alguém que a gente ama, especialmente da primeira vez, as
cinco horas da manhã parecem quase sagradas.
— Você precisa de umas férias de seus pensamentos — disse
Mattie. — Aposto que a maioria dos escritores precisa, de tempos em
tempos.
— Provavelmente é verdade.
— Gostaria que estivéssemos em casa — disse ela, e não posso
dizer se sua ferocidade era verdadeira ou fingida. — Eu o beijaria até que
toda essa conversa se tornasse irrelevante. E se você hesitasse, pelo
menos seria na minha cama.
Virei o rosto para a luz vermelha do sol poente.
— Aqui ou lá, a essa hora Ki ainda estaria de pé.
— É verdade — disse ela, parecendo inusitadamente mal-humorada.
— É verdade.
Kyra alcançou um banco perto da placa em que se lia
ESTACIONAMENTO DO PARQUE DA CIDADE e o escalou, segurando o
pequeno cachorro de pelúcia numa das mãos. Tentei soltar minha mão
quando nos aproximávamos dela, mas Mattie a segurou com firmeza.
— Tudo bem, Mike. Na EBF, eles ficam de mãos dadas uns com os
outros onde quer que vão. São os adultos que transformam isso em algo
importante.
Ela parou, encarando-me.
— Quero que saiba de uma coisa. Talvez não tenha importância para
você, mas para mim tem. Não houve ninguém antes de Lance e ninguém
depois dele. Se você vier se encontrar comigo, vai ser o meu segundo
homem. Não vou falar com você sobre isso de novo também. Pedir por
favor não tem importância, mas não vou implorar.
— Eu não...
— Há um vaso com um pé de tomate junto aos degraus do trailer.
Vou deixar a chave embaixo dele. Não pense. Venha.
— Esta noite não, Mattie. Não posso.
— Pode sim — replicou ela.
— Depressa, seus molezas! — gritou Kyra, saltando no banco.
— Ele é que é moleza! — gritou Mattie de volta, e cutucou-me nas
costelas. Então, com uma voz muito mais baixa: — Você é mesmo. —
Desvencilhou a mão da minha e correu para a filha, as pernas bronzeadas movendo-se sob a bainha do vestido branco.


Em minha versão de “João e Maria”, a feiticeira se chamava Depravia. Kyra
me olhou fixamente com seus olhos imensos quando cheguei à parte em
que Depravia pede a João para mostrar o dedo para que ela possa ver o
quanto ele já engordou.
— Dá muito medo? — perguntei.
Ki balançou a cabeça enfaticamente. Olhei para Mattie, para ter
certeza. Ela assentiu com a cabeça, fazendo um gesto para que eu
continuasse; então, continuei. Depravia entrava no forno e Maria encontrava
sua pilha secreta de bilhetes premiados da loteria. As crianças compravam
um jet ski e viviam felizes para sempre no lado oriental do lago Dark Score.
Naquele momento, The Castle Rockers assassinavam Gershwin e o sol
estava perto de desaparecer. Levei Kyra para o Scout e afivelei-a no
assento. Lembrei-me da primeira vez em que ajudei a colocá-la naquele assento, e a pressão involuntária dos seios de Mattie.
— Espero que a história não vá lhe dar um sonho ruim — eu disse.
Até ouvir isso saindo de minha boca, eu não havia percebido como a
história era fundamentalmente medonha.
— Não vou ter sonhos ruins — disse Kyra prosaicamente. — O
pessoal da geleira vai fazer eles ficarem longe. — Então, cuidadosamente,
lembrando-se: — Ge-la-dei-ra. — Virou-se para Mattie: — Mostre a ele as
palavras crazadas, mamãezinha.
— Palavras cruzadas. Obrigada, eu não vou esquecer. — Mattie abriu
o porta-luvas e tirou dali uma folha de papel dobrada. — Estava na geladeira
esta manhã. Copiei o que estava escrito porque Ki queria que você
soubesse o que significavam. Ela disse que você faz palavras cruzadas.
Bem, disse palavras crazadas, mas eu entendi o que era.
Eu disse a Kyra que fazia palavras cruzadas? Tinha quase certeza de
que não. Que ela soubesse me surpreendia? Nem um pouco. Peguei a folha
de papel, desdobrei-a e olhei para o que estava escrito:
v
a
a
noventa2
— É palavras crazadas, Mike? — perguntou Kyra.
— Acho que sim. Mas se quer dizer alguma coisa, não sei o que é.
Posso ficar com isso?
— Pode — disse Mattie.
Fui com ela até o lado do motorista do Scout, pegando sua mão
enquanto andávamos.
— Só me dê um pouco de tempo. Sei que quem costuma dizer isso é
a mulher, mas...
— Leve o tempo que quiser — disse ela. — Mas não demais.
Eu não queria levar nenhum, o problema era esse. O sexo seria
maravilhoso, eu sabia disso. Mas e depois?
Poderia haver um depois. Eu sabia disso e ela também. Com Mattie,
o “depois” era uma possibilidade real. A ideia era um pouco assustadora,
um pouco maravilhosa.
Beijei o canto de sua boca. Ela riu e me agarrou pela ponta da orelha.
— Você pode fazer melhor do que isso — disse, e depois olhou para
Kyra, que nos olhava com interesse em seu banquinho. — Mas desta vez
deixo você escapar.
— Beijo em Ki! — Kyra gritou, esticando os braços, portanto dei a
volta e beijei Ki. Dirigindo para casa, de óculos escuros para me proteger
dos raios ofuscantes do sol poente, ocorreu-me que talvez eu pudesse ser pai de Kyra Devore. Isso parecia quase tão atraente para mim quanto ir para a cama com a mãe dela, o que dava a medida de quanto eu tinha me envolvido com a relação. E talvez fosse me envolver cada vez mais.
Cada vez mais.

Sara Laughs parecia muito vazia depois de eu ter tido Mattie em meus
braços — uma cabeça dormindo sem sonhos. Examinei as letras na
geladeira, mas vi que estavam espalhadas normalmente, e peguei uma
cerveja. Fui para o deck bebê-la enquanto assistia ao sol se pondo. Tentei
pensar no pessoal da geladeira e nas palavras cruzadas surgidas nas duas
geladeiras: “vá a dezenove” na estrada 42 e “vá a noventa e dois” na
estrada Wasp Hill. Vetores diferentes da terra para o lago? Diferentes
locais da Rua? Que merda, como é que eu ia saber?
Tentei pensar em John Storrow e em como ele ficaria infeliz ao
descobrir — para citar Sara Laughs, que tinha alcançado a linha muito antes
de John Mellencamp — outra mula chutando a baia de Mattie Devore. Mas
pensei principalmente na primeira vez em que a abracei, a primeira vez em
que a beijei. Nenhum instinto humano é mais poderoso que o impulso sexual
quando está completamente desperto, e suas imagens ao acordarem são
tatuagens emocionais que nunca nos abandonam. Para mim, foi a sensação
da pele nua e macia da cintura dela logo abaixo do vestido. O toque
escorregadio do tecido...
Virei-me abruptamente e andei depressa pela casa em direção à ala
norte, quase correndo e tirando as roupas enquanto o fazia. Liguei o
chuveiro e coloquei em frio total e fiquei sob ele por cinco minutos,
tremendo. Quando saí senti-me um pouco mais como um ser humano real
e um pouco menos como um feixe espasmódico de terminações nervosas.
E, enquanto me secava com a toalha, eu me lembrei de outra coisa. Em
algum momento, pensei em Frank, irmão de Jo; pensei que se alguém além
de mim pudesse sentir a presença de Jo em Sara Laughs, seria ele. Ainda
não cheguei a convidá-lo para vir até ali, e agora não tinha certeza de que
desejava fazê-lo. Havia passado a me sentir estranhamente possessivo,
quase ciumento, do que acontecia ali. E mesmo assim, se Jo tivesse escrito
alguma coisa secretamente, Frank poderia saber. Claro que ela não lhe fez
confidências sobre a gravidez, mas...
Olhei meu relógio. Nove e quinze da noite. No trailer, na bifurcação
da estrada de Wasp Hill com a rota 68, Kyra provavelmente adormecera... e
sua mãe já poderia ter colocado a chave extra sob o vaso perto dos
degraus. Pensei nela com seu vestido branco, a curva dos quadris pouco
abaixo das minhas mãos e o cheiro de seu perfume. Então empurrei as
imagens para longe. Não podia passar a noite inteira tomando banhos frios
de chuveiro. Nove e quinze ainda era cedo o suficiente para eu ligar para
Frank Arlen.
Ele atendeu o telefone quando a campainha tocou pela segunda vez,
parecendo tão feliz em me ouvir como se já tivesse tomado três ou quatro
latas a mais do pacote de seis cervejas do que eu até então. Passamos
pelas brincadeiras habituais — a maioria das minhas quase totalmente
ficcionais, descobri consternado — e Frank mencionou que um famoso
vizinho meu tinha passado dessa para melhor, segundo os noticiários. Eu o
conheci? Sim, respondi, lembrando como Max Devore impeliu a cadeira de
rodas contra mim. Sim, eu o conheci. Frank quis saber como era ele. Difícil
dizer, respondi. O pobre velho estava preso à cadeira de rodas e sofria de
enfisema.
— Muito frágil, hein? — perguntou Frank solidariamente.
— É — eu disse. — Escute, Frank, liguei para falar sobre Jo. Estava
dando uma espiada no estúdio dela e encontrei minha máquina de escrever.
Desde então achei que ela vinha escrevendo alguma coisa. Ela pode ter
começado um artigo sobre nossa casa, e depois o aumentou. O lugar tem o
nome de Sara Laughs por causa de Sara Tidwell, você sabe. A cantora de
blues.
Uma longa pausa. Então Frank disse:
— Eu sei. — Sua voz parecia pesada, grave.
— O que mais você sabe, Frank?
— Que ela estava com medo. Acho que descobriu algo que a
assustou. Acho que era principalmente porque...
Foi então que a luz finalmente se fez. Eu provavelmente devia ter
sabido pela descrição de Mattie, e teria sabido disso se não tivesse estado
tão perturbado.
— Você esteve aqui com ela, não é? Em julho de 1994. Vocês foram
ao jogo de softbol, depois voltaram para a casa pela Rua.
— Como sabe disso? — Ele quase gritou.
— Alguém viu vocês. Um amigo meu. — Eu procurava não parecer
zangado, mas sem êxito. Eu estava zangado, mas era uma raiva aliviada, o
tipo que se sente quando seu filho chega em casa se arrastando com um
riso envergonhado exatamente quando você está se preparando para chamar
a polícia.
— Eu quase lhe contei um ou dois dias antes do enterro dela.
Estávamos naquele pub, lembra?
Jack’s Pub, logo depois de Frank ter negociado com o agente
funerário a respeito do preço do caixão de Jo. Claro que eu lembrava.
Lembrava até da expressão de seus olhos quando lhe contei que Jo estava
grávida quando morreu.
Ele deve ter sentido o silêncio se desdobrando, pois pareceu ansioso.
— Mike, espero que você não tenha tido...
— O quê? Ideias erradas? Pensei que talvez ela estivesse tendo um
caso, que tal essa ideia? Pode chamar isso de desprezível se quiser, mas
eu tinha minhas razões. Ela não estava me contando um monte de coisas.
O que é que ela contou a você?
— Quase nada.
— Você sabia que ela saiu de todos os conselhos e comitês? Saiu e
nunca me disse uma palavra?
— Não. — Acho que ele não estava mentindo. Por que estaria, nessa
altura do campeonato? — Jesus, Mike, se eu soubesse disso...
— O que aconteceu no dia em que vocês vieram aqui? Conte.
— Eu estava na loja de gravuras em Sanford. Jo me ligou de... não
me lembro, acho que de um toalete no pedágio.
— Entre Derry e a TR?
— É. Ela estava indo para Sara Laughs e queria se encontrar comigo
lá. Disse para eu estacionar na entrada de carros se chegasse lá primeiro, e
não entrar na casa... o que eu poderia ter feito; sei onde vocês guardam a
chave extra.
Claro que sabia, numa lata de pastilhas Sucrets debaixo do deck. Eu
mesmo a tinha mostrado a ele.
— Ela disse por que não queria que você entrasse?
— Vai parecer uma doideira.
— Não vai não. Pode acreditar.
— Ela disse que a casa era perigosa.
Por um momento, as palavras ficaram pairando ali. Então perguntei:
— Você chegou aqui primeiro?
— Cheguei.
— E esperou do lado de fora?
— Sim.
— Você viu ou sentiu algo perigoso?
Houve uma longa pausa. Finalmente ele disse:
— Havia um monte de gente no lago, lanchas, esquiadores, sabe
como é, mas todo aquele barulho de motor e o riso pareciam... parar
totalmente perto da casa. Você já notou que ela parece quieta mesmo
quando não está?
Claro que eu havia notado; Sara parecia existir em sua própria zona
de silêncio.
— Mas você teve alguma sensação de perigo nela?
— Não — disse ele quase com relutância. — Pelo menos eu não tive.
Mas ela também não parecia totalmente vazia. E me sentia... porra, eu me
sentia vigiado. Sentei num daqueles degraus de dormentes e esperei Jo.
Finalmente ela chegou. Estacionou atrás de meu carro e me abraçou... mas
nunca tirou os olhos da casa. Eu lhe perguntei o que estava havendo, mas
ela respondeu que não podia me contar, e que eu não podia contar a você
que nós tínhamos estado lá. Ela disse algo como “Se ele descobrir sozinho,
é porque tem que ser. De qualquer modo, vou ter que contar a ele mais
cedo ou mais tarde. Mas agora não posso, porque preciso da atenção
completa dele, e não vou conseguir isso enquanto estiver trabalhando”.
Senti o rubor escalar minha pele.
— Ela disse isso, é?
— É. E depois falou que tinha que ir até a casa para fazer uma coisa.
Queria que eu esperasse do lado de fora. Disse que se ela chamasse, eu
devia entrar correndo. Caso contrário, eu poderia continuar onde estava.
— Ela queria alguém para o caso de ter problemas.
— É, mas tinha que ser alguém que não fizesse um monte de
perguntas que ela não queria responder. Isto é, eu. Acho que sempre fui eu.
— E então?
— Ela entrou. Sentei no capô do carro, fumando. Naquela época eu
ainda fumava. E, sabe, comecei a sentir que algo não estava certo. Como
se pudesse haver alguém na casa esperando por ela, alguém que não
gostava dela. Talvez querendo feri-la. Provavelmente peguei aquilo de Jo...
do modo como os nervos dela pareciam tensos, como continuava olhando
para a casa por cima de meu ombro mesmo enquanto me abraçava, mas
parecia uma outra coisa. Como uma... não sei...
— Uma vibração.
— É! — ele quase gritou. — Uma vibração. Mas não uma vibração
boa, como na música dos Beach Boys. Uma vibração má.
— O que aconteceu?
— Sentei e esperei. Só fumei dois cigarros, portanto acho que não
posso ter ficado lá mais do que vinte minutos ou meia hora, mas pareceu
mais tempo. Continuei notando como os sons do lago subiam a colina e
então simplesmente... paravam. E como não parecia haver pássaro nenhum,
a não ser bem distantes.
“Ela saiu uma vez — ele continuou. — Ouvi a porta do deck bater, e
então seus passos na escada daquele lado. Chamei por ela, perguntei se
estava tudo bem, e Jo respondeu que sim. Disse para eu continuar onde
estava. Parecia um pouco sem fôlego, como se estivesse carregando
alguma coisa ou realizando uma tarefa.”
— Ela foi ao estúdio dela ou até o lago?
— Não sei. Desapareceu por outros 15 minutos ou coisa assim,
tempo suficiente para que eu fumasse outro cigarro, e então saiu pela porta
da frente. Verificou se estava trancada, e depois veio até mim. Parecia
muito melhor. Aliviada. Como as pessoas ficam depois de fazer algum
trabalho desagradável que vinham adiando. Sugeriu que andássemos pelo
caminho que ela chamava de Rua até o lugar lá embaixo...
— O Warrington’s.
— Exatamente. Disse que me convidava para uma cerveja e um
sanduíche. E fez isso, lá na ponta daquele longo cais flutuante.
O Sunset Bar, onde tinha vislumbrado Rogette pela primeira vez.
— Então vocês foram dar uma espiada no jogo de softbol.
— Foi ideia de Jo. Ela havia tomado três cervejas e eu uma, e ela
insistiu. Afirmou que alguém ia fazer um lançamento lá nas árvores.
Agora eu tinha um quadro claro da parte que Mattie tinha visto e me
contado. Fosse lá o que Jo tivesse feito, aquilo a deixou quase tonta de
alívio. Por um lado, ela se arriscou a entrar na casa. Havia desafiado os
espíritos a fim de fazer o que tinha que fazer e sobreviveu. Então ela
tomou três cervejas para celebrar e sua discrição escorregou... não que
tivesse se comportado muito secretamente em suas viagens anteriores à
TR. Frank lembrava de ela dizer que se eu descobrisse sozinho, então era
porque tinha que ser — o que será será. Não era a atitude de alguém
escondendo um caso, e eu percebia agora que todo o comportamento dela
sugeria um segredo de curto prazo. Ela teria me contado depois que eu
terminasse meu livro idiota, se tivesse vivido. Se.
— Vocês assistiram ao jogo por um tempo, depois voltaram para a
casa pela Rua.
— É.
— Um de vocês entrou?
— Não. Quando chegamos lá, a animação de Jo tinha se esgotado e
confiei nela para dirigir. Ela ria quando estávamos no jogo de softbol, mas
não estava rindo quando voltamos para a casa. Olhou para Sara Laughs e
disse: “Terminei com ela. Nunca mais passarei por aquela porta de novo,
Frank.”
Minha pele foi percorrida por um calafrio, arrepiando-se.
— Perguntei qual era o problema, o que é que tinha descoberto. Sabia
que estava escrevendo alguma coisa, até esse ponto ela havia me contado...
— Ela contou a todo mundo, menos a mim — falei... mas sem muita
amargura. Eu sabia quem tinha sido o homem de blazer marrom, e qualquer
amargura ou raiva, raiva de Jo, raiva de mim mesmo, empalidecia ante o
alívio que aquilo significava. Eu não tinha percebido até então a que ponto
aquele sujeito ocupou a minha mente.
— Jo deve ter tido as razões dela — disse Frank. — Você sabe disso,
não é?
— Mas ela não contou a você que razões eram essas.
— Só sei que começou, fosse lá o que fosse, com a pesquisa dela
para um artigo. Era hilário, Jo bancando a Nancy Drew. Tenho certeza de
que, no início, não contou a você para fazer surpresa. Ela lia livros, mas
sobretudo conversava com pessoas, ouvia aquelas histórias dos velhos
tempos e estimulava-os a procurarem velhas cartas... diários... era boa
nessa parte, acho. Boa à beça. Você não sabia nada disso?
— Não — eu disse pesadamente. Jo não vinha tendo um caso, mas
poderia ter tido se quisesse. Poderia ter tido um caso com Tom Selleck e
aparecido em Inside View que eu teria continuado a batucar nas teclas do
meu PowerBook, abençoadamente inconsciente.
— Seja lá o que ela descobriu — disse Frank —, acho que tropeçou
na coisa por acaso.
— E você nunca me contou. Quatro anos e você nunca me contou
uma palavra disso.
— Foi da última vez que estive com ela — disse Frank, e agora não
soava absolutamente constrangido ou como se pedisse desculpas. — E a
última coisa que ela me pediu foi que não dissesse a você que tínhamos
estado no lago. Disse que lhe contaria tudo quando estivesse pronta, mas aí
ela morreu. Depois disso, achei que a coisa não tinha importância. Mike, ela
era minha irmã. Ela era minha irmã, e eu prometi.
— Tudo bem. Eu entendo. — E entendia, mas não o suficiente. O que
Jo teria descoberto? Que Normal Auster tinha afogado o filho sob a bomba
manual? Que por volta da virada do século uma armadilha foi deixada no
lugar em que um garoto negro poderia pisar nela? Que outro garoto, talvez
filho incestuoso de Son e Sara Tidwell, foi afogado pela mãe no lago, talvez
com ela dando aquele riso lunático e rouco de fumo enquanto o segurava
debaixo d’água? Você tem que se sacudir quando balança, benzinho, e
segurar aquele garoto lá no fundo.
— Se quer que eu peça desculpas, Mike, considere isso feito.
— Não quero. Frank, você se lembra de qualquer outra coisa que ela
possa ter dito naquela noite? Qualquer coisa mesmo?
— Ela disse que sabia como você descobriu a casa.
— Ela disse o quê?
— Disse que, quando a casa queria você, ela o chamava.
No início, não consegui responder, pois Frank Arlen tinha demolido
completamente uma das suposições de minha vida de casado — uma das
grandes, uma das que parecem tão básicas que você nem pensa a respeito
para questioná-las. A gravidade o mantém para baixo. A luz lhe permite ver.
A agulha da bússola aponta para o norte. Coisas assim.
Essa suposição era que Jo tinha comprado Sara Laughs quando vimos
o primeiro dinheiro real de minha carreira de escritor, porque Jo era a
“pessoa ligada a casas” em nosso casamento, exatamente como eu era a
“pessoa ligada a carros”. Foi Jo quem escolheu nossos apartamentos,
quando eles eram tudo com que podíamos arcar. Ela pendurava um quadro
ali e me pedia para colocar uma prateleira acolá. Foi Jo quem se apaixonou
pela casa de Derry e finalmente venceu minha resistência ante a ideia de
que era grande demais, ocupada demais e quebrada demais para ser
comprada. Jo foi a construtora de ninhos.
Ela disse que, quando a casa queria você, ela o chamava.
E provavelmente era verdade. Não, eu podia ir além disso, se estava
querendo pôr de lado o pensamento preguiçoso e a lembrança seletiva.
Certamente era verdade. Eu fui o primeiro a exprimir a ideia de uma casa
no Maine ocidental. Tinha sido eu quem colecionara pilhas de folhetos sobre
propriedades e as levara para casa. Eu comecei a comprar revistas
regionais como Down East e sempre iniciava a leitura de trás para a frente
(na parte de trás ficavam os anúncios imobiliários). Eu fui o primeiro a ver
o retrato de Sara Laughs num anúncio brilhante chamado Refúgios do Maine,
e eu telefonei primeiro para o corretor de imóveis do anúncio, e depois para
Marie Hingerman, após arrancar do corretor o nome de Marie.
Johanna também ficou encantada com Sara Laughs — acho que
qualquer um ficaria, vendo-a pela primeira vez ao sol de outono, com as
ruas flamejando à sua volta e rajadas de folhas coloridas sopradas pela
Rua, mas fui eu quem procurei ativamente o lugar.
Só que aquilo era mais pensamento preguiçoso e lembrança seletiva.
Não era? Foi Sara quem tinha me encontrado.
Como é que eu poderia ter ignorado isso até agora? E, em primeiro
lugar, como é que pude ter sido conduzido até ali, cheio de ignorância
desavisada e feliz?
A resposta às duas perguntas era a mesma. Era também a resposta
à pergunta de como Jo podia ter descoberto algo aflitivo sobre a casa, o
lago e talvez toda a TR, e depois ter partido sem me contar. Eu estava
desaparecido, só isso. Tinha estado na zona, em transe, escrevendo um de
meus livros idiotas. Estive hipnotizado pelas fantasias em minha mente, e é
fácil conduzir um homem hipnotizado.
— Mike? Ainda está aí?
— Estou aqui, Frank. Mas só Deus sabe o que pode tê-la assustado
tanto.
— Lembro que ela mencionou outro nome: Royce Merrill. Disse que
era um dos que mais coisas recordava, por ser tão velho. E acrescentou:
“Não quero que Mike fale com ele. Tenho medo de que aquele velho possa
deixar o gato escapar do saco e lhe conte mais do que ele deve saber.”
Alguma ideia do que queria dizer?
— Bem... dizem que um ramo da velha árvore familiar acabou aqui,
mas o pessoal de minha mãe é de Memphis. Os Noonan são do Maine, mas
não desta parte. — Mas eu já não acreditava inteiramente nisso.
— Mike, você parece doente.
— Estou bem. Melhor do que estava, na realidade.
— E entende por que não lhe contei nada disso até agora? Quero
dizer, se eu soubesse que ideias você andava tendo... se eu tivesse qualquer
pista...
— Acho que entendo. Para começo de conversa, as ideias não faziam
parte da minha cabeça, mas uma vez que essa merda começa a penetrar...
— Quando voltei a Sanford naquela noite e tudo tinha terminado,
acho que pensei naquilo como mais uma das coisas de Jo tipo “Porra, há
uma sombra na lua, ninguém sai até amanhã”. Ela sempre foi a
supersticiosa, você sabe; batendo na madeira, jogando uma pitada de sal
por cima do ombro, se deixava cair algum, os brincos de trevo de quatro
folhas que usava...
— Ou como não usava um pulôver se o tivesse vestido ao contrário
por engano. Afirmava que fazer isso transtornava todo o seu dia.
— E não transtorna? — Frank perguntou, e pude ouvir um pequeno
sorriso em sua voz.
De repente me lembrei completamente de Jo, desde o brilho especial
do seu olho esquerdo, e não quis mais ninguém. Ninguém ia adiantar.
— Ela achava que havia algo de ruim na casa — disse Frank. — Até
aí eu sei.
Peguei um pedaço de papel e rabisquei Kia.
— É. E então pode ter suspeitado de que estava grávida. Pode ter
ficado com medo de... influências. — Havia influências ali, sem nenhuma
dúvida. — Você acha que ela soube da maior parte disso por Royce Merrill?
— Não, esse foi apenas um nome que ela mencionou. Ela
provavelmente conversou com dúzias de pessoas. Conhece um sujeito
chamado Kloster? Gloster? Alguma coisa assim?
— Auster — eu disse. Abaixo de Kia, meu lápis desenhava compridos
laços que podiam ser a letra l cursiva ou fitas de cabelo. — Kenny Auster.
Era isso?
— Parece. De qualquer modo, sabe como era Jo quando entrava
realmente numa coisa.
Sim. Como um terrier atrás de ratos.
— Mike? Devo aparecer aí?
Não. Agora eu tinha certeza. Nem Harold Oblowski nem Frank. Havia
em Sara um processo em andamento, algo tão delicado e orgânico quanto
fazer o pão crescer numa sala tépida. Frank poderia interromper o
processo... ou ser ferido por ele.
— Não, eu só queria esclarecer a questão. Além disso, estou
escrevendo. É difícil para mim ter gente em volta quando estou escrevendo.
— Você liga, se eu puder ajudar?
— Claro que sim.
Desliguei o telefone, folheei a lista telefônica e encontrei um R.
MERRILL na estrada Deep Bay. Liguei para o número, ouvi o telefone
chamar uma dúzia de vezes e então desliguei. Nada de secretárias
eletrônicas modernosas para Royce. Eu me perguntei vagarosamente onde
ele estaria. Noventa e cinco parecia idade demais para se ir dançar no
Country Barn em Harrison, especialmente num final de noite como aquele.
Olhei o papel onde estava escrito Kia. Abaixo das formas gordas em
forma de l, eu escrevi Kyra, e lembrei que, na primeira vez em que tinha
ouvido Ki dizer seu nome, eu entendi “Kia”. Abaixo de Kyra escrevi Kito,
hesitei e depois escrevi Carla. Cerquei esses nomes com um quadrado. Ao
lado deles rabisquei Johanna, Bridget e Jared. O pessoal da geleira. O
pessoal que queria que eu fosse ao 19 e ao 92.
— Acredite, Moisés, você está rumando para a Terra Prometida —
falei para a casa vazia. Olhei em volta. Só eu, Bunter e o relógio oscilante...
mas isso não era verdade.
Quando ela o queria, chamava você.
Levantei para pegar outra cerveja. As frutas e os legumes estavam
num círculo novamente. No meio, as letras haviam escrito:
naoh
Naoh? Olhei para aquelas letras por muito tempo. Então lembrei que
a IBM ainda estava no deck. Trouxe-a para dentro, depositei-a na mesa da
sala de jantar e comecei a trabalhar no meu atual livrinho estúpido. Quinze
minutos e eu estava perdido, apenas ligeiramente consciente do trovão em
algum lugar sobre o lago, ligeiramente consciente do sino de Bunter
estremecendo de vez em quando. Quando voltei à geladeira cerca de uma
hora depois para outra cerveja e vi que as palavras no círculo diziam agora
na oh
eu quase não notei. Naquele momento, pouco me importava o que aquilo
queria dizer. John Shackleford tinha começado a lembrar de seu passado e
da criança cujo único amigo havia sido ele. O pequeno e negligenciado Ray
Garraty.
Escrevi até meia-noite. Já então os trovões haviam desaparecido,
mas o calor continuava, tão opressivo quanto um cobertor. Desliguei a IBM
e fui para cama... pensando, tanto quanto me lembro, em coisa nenhuma —
nem mesmo em Mattie, deitada na própria cama a alguns quilômetros de
distância. A escrita havia consumido todos os pensamentos do mundo real,
pelo menos temporariamente. Afinal de contas, acho que é para isso que
existe. Boa ou má, faz passar o tempo

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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